OPINIÃO
Quero alguém que saiba debater com o demagogo sem
maneiras
Ao invés de debates, tivemos uma espécie de entrevistas
hostis de Ventura aos seus oponentes. Foi penoso.
Maria João
Marques
5 de Janeiro de
2022, 6:01
Nestas
legislativas teremos pouca campanha de rua, à conta da quinta vaga de uma
pandemia que anda por aí. Donde, os debates entre candidatos são úteis –
essenciais mesmo – para passar mensagens, diferenciar projetos políticos,
confrontar ideias, arrebatar eleitores. Porém, desta feita, temos uma novidade:
o líder do Chega, repetindo a estratégia das presidenciais. A saber: estragar
os debates em que participa.
Dos dois debates
que vi com André Ventura, este portou-se como aquele miúdo parvo e abusador que
vê um colega no recreio a desenhar e vai lá e risca a folha e o desenho todo.
Há quem julgue esta estratégia vencedora. Não é. Os eleitores veem só o miúdo
parvo, nenhum génio político. Tirando o pequeno nicho que se deleita com
políticos comportando-se como orangotangos (sem ofensa para os orangotangos),
os restantes veem à légua a fanfarronice de fazer muito barulho para,
precisamente, não debater. O objetivo é por-se de fora e boicotar uma
característica do regime que alegadamente pretendem destruir: os debates (mais
ou menos esclarecedores) antes de cada eleição.
Claro que a
estratégia não é nova, nem foi inventada por Ventura, político que de resto não
tem muita criatividade própria e vai buscar quer o conteúdo quer a forma aos
seus superiores – copia o já desaparecido Trump e defende obedientemente o que
lhe mandam os seus financiadores. Trump, no primeiro debate com Biden para as
presidenciais de 2020, também transformou o exercício numa gritaria a que a
comentadora Dana Bash famosamente chamou shitshow. Nessa altura também houve
quem garantisse que os urros de Trump ganharam a um aparentemente frágil Biden.
Não percebem que estes produtos políticos como Trump e Ventura se derrotam a si
próprios nos debates (e na política em geral).
Em todo o caso,
se Ventura e Trump se arrumam a si próprios pelo nojo e desprezo que geram na
maioria, o certo é que os parceiros de debate também ficam com o desenho todo
riscado. Foi o que aconteceu a Catarina Martins e a Rui Rio. Em ambos, quem
determinou os temas dos debates foi Ventura – ao lançar as suas atoardas,
dislates, mentiras, ataques pessoais (estes só para Catarina Martins, que é
mulher, e os homens como Ventura sentem-se importantes quando atacam mulheres;
já com Rio, o desejado futuro chefe, convinha não atacar pessoalmente; e os
homens como Ventura também usualmente têm medo de atacar outros homens). As
duas contrapartes aceitaram passivamente responder a tudo o que Ventura lançava
para o debate, por mais alucinado que fosse. Ao invés de debates, tivemos uma
espécie de entrevistas hostis de Ventura aos seus oponentes. Foi penoso.
Catarina Martins
lá marcou o seu ponto aqui e ali. Falou da ambiguidade do Chega nos “vistos
gold” e offshores. Lembrou que a maioria dos que recebem apoios sociais são
mulheres pobres e crianças; e reputou de “cruel” a atuação do Chega nos Açores
ao cortar estas ajudas. Se esteve bem em não descer ao nível subterrâneo de
Ventura, é incompreensível não ter ripostado (perante as várias acusações de
ter faltado a votações) que Ventura está no pódio dos deputados faltosos. Foi
insuportável como permitiu ser interrompida constantemente, em pose de carneiro
sacrificial, ao invés de lhe dirigir um imperioso “não me interrompa”. Tendo em
conta o fenómeno estudado de mulheres permanentemente interrompidas em reuniões
(e debates), é intolerável ver tal coisa replicada sem resposta na televisão. A
moderadora (e bem) repreendeu Ventura, mas Catarina Martins perdeu a
oportunidade de dar uma de Kamala Harris com o seu “I’m speaking” quando Mike
Pence a interrompia no debate dos vice-presidentes.
Rui Rio foi ainda
mais surpreendente. Se rejeitou acordos e coligações, deu o exemplo do errático
Chega nos Açores, mencionou que votar no Chega em vez de no PSD era ajudar à
vitória do PS, no resto do tempo foi outro cordeirinho respondendo àquilo que
Ventura exigia. E assim tivemos um líder da oposição, candidato a
primeiro-ministro, com possibilidades de ganhar as eleições, falando de temas
inúteis como a diminuição do número de deputados (temos um número de deputados
perfeitamente adequado ao tamanho da população comparativamente às outras
democracias europeias) ou indo mesmo, todo contente, para assuntos perigosos
como os abusos dos apoios sociais (isto vindo do partido que votou para criar
apoios sociais para acudir a vários grupos afetados pela pandemia, numa
coligação negativa contra o Governo) ou prisão perpétua.
Das duas, uma. Ou
Rui Rio estava com grande vontade de irritar o eleitorado centrista que lhe
pode ganhar as legislativas, tudo para ir buscar meia dúzia de votos aos
simpatizantes da extrema-direita; ou está bastante confundido, julgando que os
problemas mais importantes do país são a quantidade de deputados, a
inexistência de prisão perpétua, os abusos das migalhas do RSI e quejandos.
Incompreensível como Rio, lá pelo meio do debate, não disse que julgava mais útil
debater economia, alterações climáticas (dois temas que lhe são caros), como
remendar o SNS, aplicação dos fundos de recuperação pós-covid, enfim, os
assuntos que de facto têm influência na vida das pessoas. Para explicar as suas
ideias. E para evidenciar que nestas áreas Ventura fica sem ter que dizer.
Nenhum atirou a
Ventura que discussões securitárias são pouco relevantes num dos países mais
seguros do mundo. Que a corrupção não se combate com medidas histriónicas de
faz de conta como a duplicação do tempo das penas – porque o problema não é a
duração destas mas praticamente não existirem acusações nem condenações por
corrupção (seja qual for a pena). As campanhas milionárias onde o Chega
desbarata dinheiro como se não houvesse amanhã. Um largo etc. Não. Passou sem
escrutínio.
Debater com
demagogos populistas, sem educação, maneiras ou escrúpulos, que querem
precisamente não debater, não é fácil. Concedo. De todo o modo, os que debatem
com Ventura ou se preparam para não deixar a conversa enredar-se nos temas de
estimação do Chega, e atacam as muitas fragilidades de Ventura, ou mais vale
seguirem o exemplo do PCP. Ventura é um político risível, cheio de
vulnerabilidades a que se pode atirar, o único talento que tem é para a
histeria, foi ao tapete em vários debates nas presidenciais. O problema nem é
Ventura ganhar votos com os debates, que não ganha. Mas os outros perderem
eleitores à conta da falta de habilidade.
Economista
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