domingo, 30 de janeiro de 2022

Putin não teme a NATO. Teme a democracia

 



ANÁLISE

Putin não teme a NATO. Teme a democracia

 

O confronto que hoje se trava entre o Ocidente e a Rússia é sobretudo entre democracia e autocracia. Como aconteceu quase sempre ao longo do século XX europeu.

 

Teresa de Sousa

30 de Janeiro de 2022, 0:10

https://www.publico.pt/2022/01/30/mundo/analise/putin-nao-teme-nato-teme-democracia-1993580

 

1. No dia 27 de Janeiro, passaram 77 anos sobre a libertação do campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau. O primeiro-ministro francês Jean Castex, acompanhado por dois sobreviventes franceses, fez uma visita ao campo e falou do “dever de memória” contra os “falsificadores” da História. Emmanuel Macron visitou recentemente Vichy e Oradour, uma aldeia onde foram massacradas 600 pessoas quase no fim da guerra, para denunciar os revisionistas da História. O presidente do Parlamento israelita desfez-se em lágrimas no final do seu discurso no Bundestag. Antes de falar diante dos deputados – um gesto inédito –, tinha acompanhado os líderes alemães numa cerimónia no Memorial do Holocausto, em Berlim, entre blocos de pedra nua e um silêncio impressionante. Um longo ensaio do historiador ucraniano Serhii Plokhy, intitulado “O Império Regressa” e publicado no Financial Times de sábado, descrevia as raízes profundas da crise ucraniana – um pouco da história trágica do seu país, vítima dos confrontos e das jogadas entre impérios e entre regimes políticos.

 

Na Europa, a História, sobretudo a do século XX, continua à flor da pele, apesar de longos anos de paz e de democracia, conseguidos depois da II Guerra e depois da queda do Muro de Berlim. Ainda ajuda a explicar, em parte, algumas das divisões e nuances que se manifestam no seio da União Europeia. Putin também joga com a História para justificar as suas ambições expansionistas – a história secular da Rússia e a história mais recente da União Soviética. Devemos atender à História, mas é nossa obrigação olhá-la como pano de fundo e não como justificação para a guerra e a violência. E levar em conta, em primeiro lugar, que a História da primeira metade do século XX europeu não foi uma simples guerra entre potências rivais. Foi uma guerra entre a liberdade e o totalitarismo – entre duas visões oposta dos direitos inalienáveis de cada pessoa humana e da forma de nos organizarem em sociedade. A liberdade venceu, em 1945 e em 1989, porque as democracias conseguiram manter-se unidas, independentemente da sua História, graças aos valores que partilhavam.

 

2. Continuamos a não saber quais são as intenções de Putin para amanhã ou para depois de amanhã. Vai ou não invadir a Ucrânia; ocupar a região leste do país e declará-la “independente”, como fez com a Crimeia em 2014; tentar um golpe em Kiev; ou esperar por nova oportunidade? Mas sabemos que a coesão da frente ocidental na gestão desta crise será determinante para a estabilidade e a paz no continente nos próximos anos. Seja qual for o seu desfecho, Putin não vai modificar o seu comportamento em relação à sua “vizinhança próxima”, continuará a desestabilizá-la por todos os meios ao seu alcance, regressará ao uso da força militar para modificar as fronteiras saídas do fim da ordem de Ialta, que pôs em causa desde o seu primeiro dia no Kremlin.

 

Aparentemente, Moscovo aceitou um compasso de espera, depois de ter recebido por escrito a resposta dos EUA e da NATO às suas exigências sobre as fronteiras da Aliança Atlântica e sobre a retirada das forças aliadas dos países-membros que pertenceram ao Pacto de Varsóvia. Serguei Lavrov disse que essa resposta estava a ser “estudada”, embora “sem grandes razões de optimismo”. Um recuo ou apenas uma forma de ganhar tempo?

 

Ian Lesser, do German Marshall Fund, escrevia recentemente que “uma divisão entre os aliados transatlânticos é, pelo menos, tão importante para Putin como a própria Ucrânia”. E acrescentava que, sem coesão entre a União Europeia e os EUA, Moscovo sentirá que tem nas mãos “um cheque em branco”. Encontramos aqui a resposta mais credível para um eventual compasso de espera de Moscovo. As democracias ocidentais estão a revelar-se muito mais coesas do que seriam, provavelmente, os cálculos iniciais do Presidente russo. Continua a haver diferenças na forma como as capitais europeias olham para o conflito. Berlim ainda arrasta um pouco os pés. O Presidente francês insiste em reservar um papel para a Europa, o que quer dizer para a França. Os governos dos países nórdicos mais directamente expostos à ingerência russa continuam a elevar a voz para criticar as hesitações de alguns dos seus pares europeus. Mas as dissonâncias estão a desfazer-se rapidamente e a articulação entre os dois lados do Atlântico – a que se vê nas declarações públicas e a que acontece nos bastidores – é a cada dia mais forte. O mérito também é europeu, mas deve-se, sobretudo, à maneira como Joe Biden actua em relação aos aliados europeus – em consulta permanente.

 

Não faltam hoje títulos de jornais europeus e americanos que “agradeçam” a Putin o facto de ter dado um contributo “inestimável” para a coesão da NATO. É este o factor decisivo que poderá fazê-lo recuar, pelo menos por agora. E, mais uma vez, os EUA voltaram a desempenhar um dos seus papéis mais importantes desde a II Guerra – contribuir para a unidade e para a segurança europeia. Apesar dos esforços de Biden para estabelecer um modus vivendi com Putin e concentrar a estratégia americana na contenção da China, Putin “obrigou-o” a regressar à frente europeia. Mais um erro de cálculo? Talvez.

 

Há três dias, Putin ouviu, finalmente, de Paris, Berlim e Washington a mesma mensagem: um ataque conta a Ucrânia poria imediatamente em causa o Nord Stream 2. O Governo de Olaf Scholz levou algum tempo a chegar até aqui? Talvez, mas acabou por chegar. Convém recordar que a Alemanha se limita a cumprir o acordo estabelecido entre Merkel e Biden sobre o Nord Stream 2: os EUA deixariam de se opor, nomeadamente através de sanções, à entrada em funcionamento do gasoduto na condição de Berlim aceitar que seria suspenso caso Moscovo o viesse a utilizar para objectivos geoestratégicos. Por exemplo, cortar o gás à Ucrânia (como fez em 2009) ou reduzir o fluxo de abastecimento à Europa, como aconteceu recentemente. Simultaneamente, a imprensa noticia que há dezenas de cargueiros americanos transportando gás liquefeito a navegar em direcção à Europa e que outras tantas dezenas, com outro destino, estão a ser desviados para os portos europeus. Não chega? Pois não, até porque a Europa ainda não dispõe de portos com capacidade para receber e armazenar o gás liquefeito (Sines é um deles) em número suficiente. Mas não deixa de ser um aviso a Moscovo onde mais lhe pode doer. Também neste domínio, a articulação entre Bruxelas e Washington tem sido constante.

 

3. Quer isto dizer que tudo caminha sobre rodas? Não, evidentemente. Na Alemanha, há ainda um debate sobre as relações com a Rússia, acarinhadas por demasiado tempo, sobretudo por razões económicas. Em França, Macron tem de executar um delicado exercício de equilíbrio político: afirmar a liderança francesa no confronto com a Rússia, sem pôr em causa a articulação constante com Washington, quando enfrenta em casa uma parte da direita que olha para o regime autocrático de Putin com bastante tolerância. O mesmo se pode dizer em relação a uma parte da esquerda radical.

 

Putin não teme a Ucrânia nem sequer as forças da NATO instaladas nos países europeus da aliança, cuja presença é apenas defensiva e dissuasora. Teme, acima de tudo, ver a Rússia rodeada de democracias por todos os lados

 

E isto leva-nos à questão fundamental: é preciso olhar para o confronto que hoje se trava entre as democracias ocidentais e a Rússia, não como uma questão de ajuste de contas da História ou de equilíbrio de poder entre grandes potências, mas fundamentalmente como um confronto entre democracia e autocracia. Como aconteceu quase sempre ao longo do século XX europeu.

 

Putin não teme a Ucrânia nem sequer as forças da NATO instaladas nos países europeus da aliança, cuja presença é apenas defensiva e dissuasora. Teme, acima de tudo, ver a Rússia rodeada de democracias por todos os lados. De cada vez que ameaçou ou interveio na Ucrânia – em 2004, 2014 e agora –, os governos de Kiev e a opinião pública estavam em rota de aproximação às democracias europeias com o objectivo de consolidarem a própria democracia ucraniana.

 

Começamos a ouvir com demasiada frequência políticos ocidentais a classificar Putin como um líder “sério” que deve ser respeitado por defender os interesses do seu país. Mike Pompeo, que foi secretário de Estado de Trump, disse-o com toda a clareza há meia dúzia de dias. O risco de divisão do Ocidente está hoje mais no interior das suas democracias do que entre as duas margens do Atlântico.

 

“Putin acredita que o Ocidente está mergulhado numa crise multiforme, com as suas sociedades polarizadas, elites alérgicas ao risco, uma Europa centrada nos seus próprios problemas e que, portanto, uma reacção seria limitada”, diz Marek Menkiszak, especialista polaco da Rússia, citado no Monde por Sylvie Kauffmann. É preciso provar-lhe que se enganou nos cálculos.

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