A viropolítica em que vivemos
António Guerreiro
31 de Dezembro de
2021, 8:28
https://www.publico.pt/2021/12/31/culturaipsilon/cronica/viropolitica-vivemos-1990163
A palavra mais
“viral” do ano, aquela que mais se propagou através dos meios de comunicação de
massa, é a mesma do ano anterior: a palavra “vírus”. A partir do momento em que
a propagação do coronavírus se tornou pandémica, a atenção mental e mediática a
este acontecimento ganhou uma escala mundial e “viralizou-se”. Se aos dois
estratos de viralidade mencionados — a viralidade biológica de um pedaço de
código genético que se infiltra numa célula e a viralidade mediática
responsável pela reprodução de certas imagens, ideias, palavras —
acrescentarmos a viralidade informática que enlouquece ou aniquila o software
dos nossos computadores, entramos numa sobreposição que nos conduz ao
“capitalismo viral”, um objecto de análise a que o imaginário político da
pandemia deu uma forma mais acabada. Para os meios informáticos, dotados de
ubiquidade e postos ao serviço de uma governação securitária, todos nós,
cidadãos, somos vírus, inimigos numa guerra permanente. O recente episódio da
detenção de João Rendeiro na África do Sul mostra bem a ingenuidade do
fugitivo, que pensava que não seria detectado e poderia reconstruir a sua vida
num lugar remoto, como o puderam fazer os nazis que fugiram para países da
América Latina, onde assumiram uma nova identidade civil.
Não é de agora
que os vírus desempenham um papel importante no imaginário que se desenvolveu em
torno de certas teorias políticas. Pensemos, por exemplo, na importância que o
conceito de imunidade tem nas elaborações teóricas da biopolítica. E se nos
ativermos a um domínio mais literário, anterior à actual “viropolítica”, é
obrigatório mencionar o escritor William S. Burroughs, que nos anos 60 do
século passado desenvolveu a tese de que a palavra, a linguagem, é literalmente
um vírus. A “viropolítica” compreende tanto o activismo viral dos hackers como
o império das plataformas e a propaganda ideológica que opera por propagação
viral (“propaganda” e “propagação”: a mesma etimologia).
Mas regressemos à
actual pandemia e à sua dimensão viropolítica. Ela está a fazer-nos descobrir
que uma comunidade de uma zona remota de África pode agir sobre a nossa
sociedade hiperprotegida porque o SARS-CoV-2, sujeito a mutações mais prováveis
em zonas onde faltam as vacinas, empreende rapidamente uma viagem através do
mundo e vem enfraquecer a imunidade que tinha sido alcançada nos países que
tinham administrado uma vacinação maciça às suas populações. Um dos mais
importantes pensadores actuais da ecologia política e dos efeitos sociais e
políticos das mudanças climáticas, o sueco Andreas Malm, faz esta pergunta num
dos seus livros (título da tradução inglesa: The Progress of this Storm): “Um
agricultor do Burkina Faso pode tomar de assalto os palácios de Inverno do
capital fóssil?”. A pergunta serve-lhe sobretudo para, a partir dela, refutar
violentamente o discurso sobre o Antropoceno, que atribui à humanidade em geral,
a “nós todos”, a responsabilidade pela “tempestade”. Ora, segundo ele, esse
discurso é uma mentira piedosa que acaba por ser o principal obstáculo no
combate às causas da catástrofe. A hipótese de um agricultor do Burkina Faso
ter uma acção directa sobre o mundo ocidental implica que as
“revoluções-contra-as causas” resultem de uma mudança de escala e deixem de ser
as tradicionais “revoluções-como-sintomas”, como lhes chama Andreas Malm.
Vemos assim como
é completamente anacrónica e ineficaz a tentativa de protecção de territórios
nacionais como se eles pudessem manter, face à ameaça da pandemia, uma
soberania que seria necessário circunscrever nos seus limites imanentes e
proteger contra as invasões e as contaminações. A cartografia da epidemia é uma
cartografia de propagação. O coronacionalismo não é certamente uma ideologia
política, é antes uma tendência inerente à imunidade viropolítica: todas as
reacções à globalização convergem para o Estado-nação como um centro de
atracção. Não há hoje nenhum território que não seja um espaço aberto, E este
processo de replicação viral sem limites territoriais tem uma afinidade
fundamental com o processo de reprodução económica inerente ao capitalismo.
A condição
viropolítica dos nossos espaços públicos e económico-políticos não se define
apenas pela situação pandémica em que vivemos desde há quase dois anos. De
certeza que este não será o último ano que a palavra “vírus”, ou as suas
variantes, terá uma propagação “viral”.
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