quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Um retrato exaustivo das fraquezas europeias

 



ANÁLISE

Um retrato exaustivo das fraquezas europeias

 

Teresa de Sousa

15 de Setembro de 2021, 19:34

https://www.publico.pt/2021/09/15/mundo/analise/retrato-exaustivo-fraquezas-europeias-1977599

 

1. O momento não era para fazer ondas. A presidente da Comissão não diria nada que pudesse perturbar demasiado os dias finais da campanha eleitoral na Alemanha, que têm a particularidade de assinalar a saída de cena da chanceler que marcou, para o bem ou para o mal, a vida da União nos últimos 16 anos, afirmando Berlim como o centro de gravidade da Europa e aumentando significativamente a sua influência sobre a agenda europeia. Depois de Merkel, o futuro é ainda um livro que não está em branco, mas que tem ainda algumas páginas por preencher. Mesmo assim, não faltou uma aparente ambição no seu discurso sobre o estado da União. Ou melhor, não faltaram propostas e iniciativas tous azimuts, o que pode ter também a leitura contrária: a longa lista de coisas que a Europa ainda tem de fazer se quiser manter-se na liga dos grandes pólos de poder mundial.

 

Von der Leyen tinha com que se congratular. A campanha de vacinação começou mal, mas acabou bem, provando que a decisão de comprar vacinas em comum foi a certa. A recuperação económica está à vista, com bons prognósticos para o crescimento das economias europeias já neste ano. A rapidez com que a União, em boa medida graças aos esforços da Comissão, se dotou dos instrumentos financeiros para impedir que a pandemia se transformasse numa catástrofe económica, criando uma divisão ainda mais profunda entre os países com capacidade para “aguentar” as suas economias sem grandes danos a médio prazo e os que, no Sul, não tinham a mesma margem de manobra. Por uma vez, o eixo Paris-Berlim funcionou, o que nos últimos tempos tem sido uma raridade.

 

Von der Leyen não podia desenvolver demasiado dois temas polémicos na Alemanha que vão emergir no curto prazo. A possibilidade de uma nova vaga de refugiados, agora não da guerra na Síria, como em 2015, mas do Afeganistão. A Europa continua sem se conseguir entender sobre uma política comum de asilo e muito menos de imigração. O tema é escaldante, mas não desaparece só porque não se fala dele. O segundo tema tabu é a reforma da governação da zona euro, que já saltou para as manchetes da imprensa europeia com cada um dos lados da barricada a prepararem munições para a batalha. Só poderá vir a ser tratado com alguma hipótese de sucesso quando a situação política em Berlim voltar a estabilizar e quando se souber quem liderará a próxima coligação de governo e como será composta - provavelmente a três, o que torna tudo ainda mais complicado. Prometeu que a Comissão vai relançar a discussão nas próximas semanas. Não deu qualquer pista.

 

2. A presidente da Comissão escolheu dois temas actuais que, no geral, não seriam demasiado polémicos – uma União Europeia da Saúde que permita à Europa estar preparada para novos eventos pandémicos; uma União Europeia da Defesa, que voltou a subir nas prioridades da agenda com os acontecimentos recentes no Afeganistão. Com uma vantagem adicional: a defesa será um dos temas fortes da presidência francesa, cuja agenda Emmanuel Macron quer transformar num palco da sua própria corrida presidencial de 2022. Precisa de um bom entendimento com Von der Leyen para conseguir os seus objectivos. A presidente da Comissão já anunciou uma cimeira sobre a defesa para o semestre francês e adiantou algumas propostas, recuperando a velha ideia de uma “força expedicionária” capaz de agir fora do âmbito da NATO, que reemerge de cada vez que a Europa se confronta, na prática, com a sua dependência dos EUA. A questão é que nada mudou de essencial para que isso possa ser possível agora. Carl Bildt, antigo primeiro-ministro sueco e actual presidente do European Center for Foreign Relations, congratulou-se num tweet pelo facto de Ursula não ter pronunciado uma só vez a expressão “autonomia estratégica”. O problema é sempre o mesmo: qualquer missão militar mais exigente, mesmo que na vizinhança europeia, não dispensa o apoio americano.

 

Von der Leyen falou também da China e dos Estados Unidos – duas questões divisivas, embora haja hoje na Europa uma muito maior desconfiança em relação à China. Abriu as portas a uma maior cooperação económica e tecnológica com os EUA (há notícias de que as conversações entre os dois lados estão a correr bem). Manfred Weber, da CDU/CSU de Merkel e líder do PPE, foi mais longe, apelando a um novo acordo de livre comércio entre as duas maiores economias do mundo. “Só este é o caminho para fortalecer os sectores industriais fundamentais das economias ocidentais”. Tal como os EUA, a Europa ganhou consciência da sua excessiva dependência da produção de bens essenciais produzidos na Ásia e, em primeiro lugar, na China – que, entretanto, deixou de ser um “parceiro comercial” para passar a ser um “competidor estratégico”. O problema de fundo mantém-se: os europeus não conseguem acompanhar a corrida tecnológica entre a China e a América e há essa consciência nas palavras da presidente da Comissão e nalgumas das suas propostas – por exemplo, de apresentar um “European Chips Act”, à imagem do “Chips for America Act” que os EUA aprovaram no ano passado.

 

Em relação à China, a presidente Comissão teve pelo menos o mérito de mostrar que já passou a fase da “inocência” europeia. Anunciou uma iniciativa designada Global Gateway cujo objectivo parece ser competir com a Belt and Road Initiative, lançada por Pequim como um instrumento fundamental da sua crescente influência global. Von der Leyen não foi nada subtil: “Somos muito bons a financiar estradas, mas não faz qualquer sentido para nós construirmos uma estrada perfeita entre uma mina de cobre chinesa e um porto de propriedade da China”. Foi a primeira vez que que se ouviu falar desta iniciativa. Entre a teoria e a prática, teriam de ir milhões e milhões de euros e uma perspectiva comum sobre como conter a influência chinesa - que não há.

 

Regressando ao princípio: foi um bom diagnóstico das fraquezas europeias. Teve propostas para quase todos os gostos. Não foi um discurso mobilizador. 

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