ANÁLISE
Mario Draghi devora os partidos
Para levar a cabo as reformas estruturais, Mario Draghi
mudou a lógica de funcionamento do sistema político. O governo forte prevalece
sobre partidos débeis
Jorge Almeida
Fernandes
17 de Setembro de
2021, 6:50
https://www.publico.pt/2021/09/17/mundo/analise/mario-draghi-devora-partidos-1977717
Reina uma
estranha paz na política italiana, observam os analistas. A batalha contra a
covid está a ser vencida. Para lá da pandemia, Mario Draghi concentrou-se na
realização de reformas estruturais eternamente adiadas. A partir de agora, a
grande curiosidade é a mudança de método de governo que está a introduzir em
Itália. Toca num ponto nevrálgico: a premência de uma reforma do sistema
político, exigida desde há quase 30 anos e sempre por fazer. E torna difícil
imaginar que se possa voltar atrás, “à política como se fazia antes”.
As reformas da
justiça, do sistema fiscal, da administração pública ou a transição energética
são vitais. A reforma das reformas, de que depende o sucesso das outras, é a
reforma do sistema político. Serão os partidos capazes de empreender a revisão
constitucional que todos proclamam urgente? Ou, dito de forma mais directa,
serão os partidos capazes de se reinventar? “A política está moribunda”, avisava
em Dezembro o politólogo Giovanni Orsina. “A crise dos partidos ameaça a nossa
democracia.”
Ao nomear Mario
Draghi primeiro-ministro, em Fevereiro passado, o Presidente Sergio Mattarella
foi forçado “a tomar nota da virtual desintegração do sistema de partidos”,
escreve no Corriere della Sera o colunista Ernesto Galli della Loggia. “Draghi
está a dar vida a uma espécie de semipresidencialismo sui generis”, que faz
lembrar aspectos do gaullismo.
O Governo foi
investido com o apoio de todos os partidos, à excepção do Irmãos de Itália
(extrema-direita), e todos eles estão representados no Executivo. “O Governo
continua a ser nominalmente um governo parlamentar, mas os actores
parlamentares, isto é, os partidos, abdicam de facto da sua soberania, decretando
desse modo a sua tendencial irrelevância.”
O estilo de
Draghi pode ser resumido numa troca de palavras sobre a obrigatoriedade do
“certificado verde” (vacinas). A Liga, de Matteo Salvini, levantou objecções e
alimentou uma polémica interna. O primeiro-ministro respondeu: “Os partidos
travam os seus próprios debates, mas o governo vai avante.” O consenso foi
decidido no Conselho de Ministros, onde todos participam. Salvini resignou-se.
O
constitucionalista Sabino Cassesse resume assim o método Draghi: “Move-se em
passos rápidos, consultando, mas sem se deixar bloquear pelas excessivas
divergências políticas nem por negociações demasiado longas. (…) Os italianos,
que experimentaram várias vezes a recusa de acção do governo, estão satisfeitos
com este misto de realismo, pragmatismo e idealismo que são o elemento
característico da via traçada por Draghi.”
O activismo do
primeiro-ministro é a resposta ao mecanismo de auto-bloqueio em que se transformou
o sistema constitucional italiano. A “Primeira República” funcionava, com os
seus defeitos, porque assentava em dois grandes partidos de massas, dotados de
fortes elites, a Democracia Cristã e o Partido Comunista Italiano.
“Não é
preciso um De Gaulle”, escrevia na semana passada Marco Damilano, director do
semanário Espresso. “A Itália precisa de normalidade, uma democracia com
partidos fortes, com visões alternativas e com participação da base,
aproxima-se o momento das escolhas decisivas.”
A aceleração da
mudança
A “tomada do
poder” pelo Movimento 5 Estrelas (M5S), nas eleições de 2018, e a sua aliança
com a Liga de Salvini parecem-nos já factos remotos. Um ano depois, e sem mudar
de primeiro-ministro, Giuseppe Conte, o M5S trocou a aliança com a
extrema-direita pelo centro-esquerda. Em Fevereiro, perante a inacção do
governo e um desaire parlamentar de Conte, Mattarella nomeou Draghi.
Os efeitos foram
imediatos. O M5S, que denunciava a “casta” política, resolveu
institucionalizar-se para sobreviver. Salvini renegou o soberanismo e
converteu-se ao europeísmo. De um dia para o outro, a Itália viu mudada a sua
política externa, deixando os flirts com Pequim e Moscovo, reforçando o seu
enraizamento europeu. Floresceram as relações com Berlim e Paris.
Tudo isto se
passa na mesma legislatura, que deve durar até ao fim, em Março de 2023. Em
Fevereiro próximo será eleito o Presidente da República. É possível que
Mattarella seja forçado a recandidatar-se. A hipótese de uma candidatura de
Draghi parece mais longínqua. E nenhum bloco político reúne a maioria
presidencial.
Até 2023, Mario
Draghi está seguro. Tem o consenso da grande maioria da sociedade. Não é o
“homem providencial”, é o “homem imprescindível” para manter as contas em
ordem, receber os fundos do PRR, fazer a transição para a fase pós-covid. A
simples ideia de mudar de cavalo provocaria pânico, na Itália e nos mercados.
Nenhum partido ousará derrubá-lo: nenhum tem força para isso e, de resto,
nenhum dos blocos políticos, à esquerda ou à direita, pode permitir-se oferecer
a bandeira Draghi ao campo adversário resume o analista Ugo Magri.
A questão das
elites
Há mudanças
subterrâneas muito importantes. Uma delas é a visão das elites. A ascensão do
Movimento 5 Estrelas baseou-se na exploração da “cólera dos excluídos” e na
percepção de falência das elites italianas, não só a “classe política”,
designada “casta”, como empresários e tecnocratas. A degradação da vida
política favoreceu o populismo.
O M5S não assumiu
a responsabilidade de apresentar uma nova elite. Os mecanismos de selecção de
candidatos a partir “de baixo” produziram resultados desastrosos. Anota Orsina:
“Nas últimas duas décadas, deitámos fora a criança com a água do banho: por
ódio à casta, destruímos a elite e os lugares em que se formava. (…) Fiámo-nos
na antipolítica, que também faliu.”
Em Fevereiro
passado, ao ler as sondagens sobre o novo governo, assinalava o analista
Antonio Polito: “Agora é o povo que procura uma elite para nos guiar e tirar do
sarilho em que nos metemos. É o que explica o amplo favor com que os italianos
acolheram a nomeação de Draghi. E o apoio quase unânime das forças políticas é
uma consequência disso.”
Não é só uma
questão de competência. “É necessária a capacidade de interpretar o interesse
geral, de colocar a própria capacidade ao serviço da nação e de a manter unida
em torno de uma meta.”
A paisagem
política europeia está em mutação. As eleições alemãs de 26 de Setembro ou as
presidenciais francesas de Abril de 2022 terão impacto a todos os níveis,
incluindo o geopolítico. A Itália será outro teatro vital.
“Depois do
governo Draghi, o sistema partidário italiano não voltará a ser o mesmo”,
profetiza o politólogo Roberto D’Alimonte. Mas se Draghi deixa a ideia de que
será difícil retroceder, a sua acção não assenta em regras sólidas e
“escritas”. E faltam os referidos partidos fortes. A pergunta é sempre a
mesma: que sucederá depois de 2023?


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