Cinco Estrelas: a romanização dos bárbaros
Jorge Almeida
Fernandes
18 de Setembro de
2021, 7:00
https://www.publico.pt/2021/09/18/mundo/analise/cinco-estrelas-romanizacao-barbaros-1977851
O voto de
confiança do Movimento 5 Estrelas (M5S) no governo Draghi, em Fevereiro,
assinalou a definitiva institucionalização da força que representou a
antipolítica durante mais de uma década. Com o “assalto a Roma” nas eleições de
2013, lançaram o caos no Parlamento. Após a vitória eleitoral de Março de 2018
e a consequente formação de um governo de coligação com a Liga de Matteo
Salvini, o movimento viu-se colocado perante duros dilemas. O que é governar? E
hoje, em pleno processo de institucionalização, o “movimento nem de esquerda
nem de direita” tem de escolher os seus novos alinhamentos. São questões que os
fundadores, Beppe Grillo e Gianroberto Casaleggio (1954-2016), nunca se
puseram: bastava-lhes a rebelião anti-sistema.
Lenta mas
inexoravelmente, o M5S teve de encarar a realidade. Logo a seguir às eleições
de 2018, Beppe Grillo proclamava: “Devemos compreender que a democracia
[representativa] está superada.” E Davide Casaleggio, filho e herdeiro político
de Gianroberto, declarava ao Washington Post: “A democracia directa, tornada
possível pela Internet, deu centralidade aos cidadãos e levará, a seguir, à
desconstrução das actuais organizações políticas e sociais. A democracia
representativa – a política com representantes – está a perder significado.”
Foi um momento de glória para Davide, que o New York Times denominou
“Feiticeiro de Oz italiano” e “o homem potencialmente mais poderoso de Itália”,
embora raros soubessem que ele era.
Grillo manobra
A
institucionalização, na prática a transformação em partido, tem sido um
processo agitado e doloroso. Com o maior grupo parlamentar e implantados em
várias regiões a nível local, os “grillini” foram-se tornando respeitáveis e
passaram a apreciar as “poltronas do poder”. A grosseria foi metida na gaveta.
Beppe Grillo, o expoente máximo do desbragamento de linguagem, é o mesmo homem
que liderou a operação de apoio ao governo Draghi, como meio de sobrevivência
política. E, no Verão de 2019, foi também Grillo quem fomentou a mudança da
aliança de governo: ruptura com Salvini e acordo com o centro-esquerda.
A primeira
experiência governamental foi um desastre. A aliança com Salvini serviu para
promover a Liga: na sua “guerra aos imigrantes”, o ministro do Interior ocupava
todo o espaço mediático e, ao contrário dos seus colegas de governo, tinha um
programa.
O primeiro-ministro
designado pelo M5S, Giuseppe Conte, funcionava como um “notário” das decisões
geralmente contraditórias dos dois partidos, representados pelos seus dois
vices, Luigi Di Maio e Salvini. Isto paralisava o governo, mas Salvini agia. A
sua demagogia funcionou demasiado bem e depressa inverteu a situação nas
sondagens. Em Agosto de 2019, exigiu eleições e pediu aos italianos “plenos
poderes”. Julgava dar um xeque-mate ao M5S. Enganou-se. O centro-esquerda,
apavorado com o risco de uma vitória de Salvini, mostrou-se aberto. Uma
coligação com o PD era difícil de engolir pelas bases “grillinas”, que até
então tinham o Partido Democrático como adversário principal e símbolo da
“casta”.
Foi uma manobra
brilhante de Grillo que, contra a ala fundamentalista do movimento e contra o
próprio Davide Casaleggio, imaginou a solução “Conte-2”. O PD e a esquerda
entravam em força no executivo, mas a manutenção de Conte tranquilizava os
“grillini”. Também este segundo governo foi um fiasco. Perante a impotência
partidária, e com aplauso geral, Mattarella nomeou Draghi. Grillo voltou a ser
decisivo na posição do M5S. Depois de ganhar as suas credenciais europeias com
o voto em Ursula von der Leyen para presidir à Comissão Europeia, o voto de
confiança em Draghi traduzia a institucionalização do movimento.
É um processo
difícil. Passou pela ruptura com Casaleggio. Giuseppe Conte foi escolhido pelos
notáveis do M5S para liderar o novo partido. Mas as suas relações com Grillo
são tensas: ambos desejariam monopolizar o poder. O significado desta
transformação é lapidarmente resumido pela imprensa italiana: “a romanização
dos bárbaros”.
A revolta das
formigas
O M5S, fundado em
2009, procurou sempre apresentar-se sob a forma de enigma. Dizia ser, e queria
ser visto, como uma rebelião espontânea contra os malefícios das elites, em
especial da “casta política”. A ideia nasceu num encontro entre o comediante
Grillo e o programador informático Casaleggio, no dia 1 de Abril de 2004 no
Teatro Goldoni em Livorno. Falaram horas. “Claro que era um louco”, dirá mais
tarde Grillo. “Louco de uma loucura nova, para quem tudo vai mudar para melhor
graças à Rede.” Casaleggio irá fornecer as ideias e Grillo será o líder no terreno.
Tornou-se no mais eficaz demagogo de Itália. O seu carisma passou a arrastar
multidões.
Mas a organização
vem de cima para baixo, não é o fruto de um espontaneísmo de base como
geralmente se crê, escreveu Jacopo Iacoboni, jornalista de La Stampa e autor de
uma investigação sobre o M5S (L’Esperimento, Laterza, 2019). Gianroberto
Casaleggio não era propriamente um anarquista. Queria “reprogramar” a
sociedade.
“Era uma
experiência de engenharia social”, explica o informático Carlos Baffé que
trabalhou na sua equipa. Ele usava muito o termo “vaga de consenso”. A rede,
mesmo sem ser centralizada, “pode ser orientada e parcialmente controlada a
montante”. E produzir vagas de consenso na direcção desejada.
Todo o movimento
era controlado pelo Blog de Grillo e tinha o seu “sistema nervoso” na
plataforma informática Rousseau, propriedade da empresa Casaleggio &
Associati. A organização horizontal encobria um poder altamente centralizado e
pessoal.
Davide Casaleggio
expôs, no livro Tu Sei Rete (Tu És Rede, 2013), a sua teoria das
organizações. “Quando um sistema aumenta a sua complexidade sem ser guiado por
uma fonte externa, tende com o tempo a organizar-se por si mesmo. (...) Os
formigueiros representam o melhor exemplo de auto-organização. As formigas seguem
uma série de regras aplicadas aos indivíduos, através das quais se determina
uma estrutura muito organizada, mas não centralizada. O sistema começa a
adquirir a sua identidade e a influenciar os seus componentes.
(...) É
necessário que os componentes sejam em número elevado, que se encontrem
casualmente e não tenham consciência do sistema no seu complexo. Uma formiga
não deve saber como funciona o formigueiro, de outro modo todas as formigas
ambicionariam desempenhar os melhores papéis e os menos fatigantes, criando um
problema de coordenação.”
Conclusão: desta
vez, as formigas revoltaram-se.
tp.ocilbup@sednanrefaj


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