terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Presidente aceita manutenção de Centeno “por estrito interesse nacional” / Centeno garante que não houve troca de correspondência com Domingues e não mostra SMS / “House of Cards” na Caixa Geral de Depósitos /A penosa conferência de imprensa de Mário Centeno



Presidente aceita manutenção de Centeno “por estrito interesse nacional”
Numa nota, Marcelo confirma ter recebido o ministro da Finanças e ter ouvido a sua admissão de “eventual erro de percepção mútuo na transmissão das suas posições”.
Leonete Botelho
LEONETE BOTELHO 13 de Fevereiro de 2017, 23:57 actualizada às 0:30

O Presidente da República aceita que o ministro das Finanças se mantenha em funções “atendendo ao estrito interesse nacional, em termos de estabilidade financeira”. Disso mesmo dá conta numa nota publicada na noite desta segunda-feira (23h47) no site da Presidência, em que confirma ter recebido Mário Centeno em Belém e dele ter ouvido a admissão de um “eventual erro de percepção mútuo na transmissão das suas posições”.

Em cinco pontos, Marcelo Rebelo de Sousa põe os pontos nos ii no caso da polémica em torno das declarações de rendimentos dos ex-administradores da Caixa Geral de Depósitos. Depois de confirmar ter recebido o ministro das Finanças “a pedido do senhor primeiro-ministro”, afirma que Mário Centeno lhe “deu conhecimento prévio da comunicação que iria fazer ao país”.

Depois, enuncia os pontos que considera essenciais. O primeiro é ter registado as explicações do ministro, “bem como a decorrente disponibilidade para cessar as suas funções, manifestada ao senhor primeiro-ministro”. A este ponto regressa no fim da nota, onde afirma “aceitar” a posição de António Costa, que lhe comunicou manter a confiança em Mário Centeno.

Mas deixa claro que apenas “aceitou tal posição, atendendo ao estrito interesse nacional, em termos de estabilidade financeira”.

Da conversa com o ministro das Finanças, Marcelo diz ter tomado “devida nota, em particular, da confirmação da posição do Governo quanto ao facto de a alteração do Estatuto do Gestor Público não revogar nem alterar o diploma de 1983, que impunha e impõe o dever de entrega de declarações de rendimento e património ao Tribunal Constitucional”.

Posição essa que afirma ter sido “desde sempre perfilhada pelo Presidente da República – aliás, como óbvio pressuposto do seu acto de promulgação – e expressamente acolhida pelo Tribunal Constitucional”.

No terceiro ponto, o chefe de Estado sublinha ter retido também a admissão, por Mário Centeno, de “eventual erro de percepção mútuo na transmissão das suas posições”, o mesmo argumento que o ministro reproduziu na conferência de imprensa desta tarde.

Já o quarto ponto serve para Marcelo responder às críticas de que foi alvo nos últimos dias, sobretudo no PSD, por se ter entendido que saiu em defesa do ministro das Finanças. “A interpretação autêntica das posições do Presidente da República só ao próprio compete”, lê-se na nota presidencial.

Com esta nota, o Presidente tenta pôr um ponto final a uma polémica que também já o atingia. Por um lado, deixa claro que a manutenção de Mário Centeno se deve apenas ao interesse nacional, ou seja, que não ficou convencido com as explicações por ele dadas.

Por outro, afirma que sempre foi seu entendimento que a subtracção dos administradores da CGD ao estatuto de gestor público não os dispensava de apresentar as declarações de rendimentos ao Tribunal Constitucional. Algo que já sugeria em Novembro, quando emitiu uma nota a deixar claro que entendia que se mantinha a obrigatoriedade das declarações.

Por último, com o quarto ponto, vem sugerir que aqueles que entenderam as suas afirmações da semana passada sobre o caso como um apoio inequívoco a Centeno podem estar enganados. E assim tentar estabelecer algumas pontes com o PSD, que depois daquelas declarações se desdobrou em críticas ao Presidente da República.


Centeno garante que não houve troca de correspondência com Domingues e não mostra SMS

Centeno revela que colocou o lugar “à disposição” do primeiro-ministro, explica por que razão entende que não mentiu à comissão de inquérito sobre a CGD e admite que houve "erros de perceção mútuos" no acordo que fez com Domingues

13.02.2017 às 17h53

O Ministro das Finanças, Mário Centeno, disse ter colocado o seu lugar "naturalmente à disposição" do primeiro-ministro António Costa. "Reiterei que o meu lugar está à disposição desde o dia em que assumi funções", afirmou esta segunda-feira em conferência de imprensa, em reação à polémica em torno dos compromissos assumidos com António Domingues e a sua equipa quando estes foram convidados para administrar a Caixa Geral de Depósitos (CGD).

"Não pedi a minha demissão. Reiterei que o meu lugar está a disposição", repetiu Centeno em resposta aos jornalistas. "A verdade é que nunca neguei que houvesse acordo [sobre a alteração do estatuto do gestor público], só que ele não envolvia a eliminação do dever de entrega das declarações de rendimentos [ao TC]", disse o ministro. "Acordo do Governo para alterar o estatuto claro que houve, acordo para eliminar aquele dever não houve."

O ministro das Finanças fez ainda referência especificamente à entrega das declarações de rendimentos, admitindo "um eventual erro de perceção mútuo" com António Domingues, que o tenha levado a entender que o acordo "poderia cobrir de alguma forma a eliminação do dever de entrega da declaração ao Tribunal Constitucional".

Centeno garante que deu conhecimento da situação ao primeiro-ministro e ao Presidente da República, explicando "detalhadamente o processo".

O ministro rejeitou ainda ter mentido à comissão de inquérito parlamentar da CGD. Isto porque, a 13 de janeiro, o ministério das Finanças disse que "inexistiam" trocas de comunicações com António Domingues. A resposta surgiu depois de o CDS, em novembro, ter pedido toda a "correspondência e documentação trocada, nomeadamente por correio electrónico, entre o Ministério das Finanças e o dr. António Domingues, após a reunião de 20 de Março de 2016, de alguma forma relacionadas com as condições colocadas para a aceitação dos convites para a nova administração" do banco público.

"A resposta que demos correspondia ao entendimento que tínhamos desse mesmo requerimento e, por isso, referíamos a não existência de comunicações no âmbito e escopo da questão que nos foi levantada", respondeu esta segunda-feira. Quer isto dizer que, segundo Centeno, não houve troca de correspondência. Para Centeno, a receção de uma carta, a de Domingues, não é "troca" porque não foi respondida, apenas rececionada. E será este entendimento que reitererá quando na quarta-feira, no Parlamento, for, como tudo indica, questionado pelo CDS.

O ministro diz ter tido "várias reuniões de trabalho" com António Domingues e nelas foi discutida "a substância" do que seria o decreto-lei que iria alterar o estatuto público. "Esse foi um ato legislativo público, escrutinado, do perfeito e total conhecimento do dr. António Domingues." E confirmou que esse trabalho foi feito com uma equipa de "técnicos, juristas e consultores financeiros, que estavam a colaborar em todo o processo e com o perfeito conhecimento do Ministério das Finanças".

CARTAS E SMS COM DOMINGUES
O tema da Caixa Geral de Depósitos assumiu novos contornos na semana passada, depois da divulgação de uma carta enviada por António Domingues a Mário Centeno, avançada pelo jornal "Eco". Nela, o gestor fazia referência à não entrega das declarações como “uma das condições acordadas para aceitar o desafio de liderar a gestão da CGD e do mandato para convidar os restantes membros dos órgãos sociais”.

Desde então, Mário Centeno tem sido confrontado com várias perguntas sobre quais foram de facto os compromissos assumidos com António Domingues. Ainda na semana passada, o CDS pediu acesso aos SMS trocados entre ambos, para além das cartas e emails anteriormente requeridos.

Sobre as suas comunicações com Domingues, Mário Centeno lembra que são "privadas", mas que em todas o que fez foi "garantir que o estatuto ia ser alterado, que a Caixa iria ficar isenta de implementação do estatuto, sem nenhuma restrição adicional", respondeu o ministro aos jornalistas, esta segunda-feira. "Isto valia para questões como as remunerações, avaliação, incompatibilidades que estão contidas no decreto-lei sobre o estatuto."

Outra das questões levantadas recentemente surgiu no domingo, quando Marques Mendes acusou o Governo de ter manipulado a data de publicação do decreto-lei para alteração do estatuto do gestor público para que passasse despercebido aos deputados.

Em relação a essa demora, Mário Centeno aponta a "extrema dificuldade" das negociações em que o Governo se encontrava nessa altura "em várias cidades europeias". "A importância que teve obrigava a que todas as cautelas fossem mantidas."

Em entrevista ao jornal "Eco", esta segunda-feira, Pedro Nuno Santos afastou a responsabilidade de Mário Centeno, garantindo que o ministro não mentiu e mantendo a confiança no governante.

House of Cards” na Caixa Geral de Depósitos
José Manuel FernandesSeguir
13/2/2017, 18:31

Ao dizer que só com "alguma coisa assinada" por Centeno se poderá dizer que ele se comprometeu com os gestores da Caixa, Marcelo está a dizer que a palavra dada por um político não tem qualquer valor.

É como nas cebolas: por cada camada que se retire, há mais uma camada que surge. Todo o processo da Caixa Geral de Depósitos é feito de uma sucessão de disfarces e cinismos que nos recordam o pior do jogo político, ao estilo de uma “House of Cards” doméstica, onde já vimos que vale tudo.

O ponto em que hoje se encontra o debate é lamentável. E quem o fez descer a esse nível mais rasteiro foi o Presidente da República, em concubinato com o Governo. Disse o primeiro, corroborou o segundo: uma mentira só é mentira se houver uma assinatura. O que significa que, para os mais altos representantes do Estado português, a palavra dada não tem valor. Só vale a palavra escrita. Falta saber se, no fim do dia, ainda vão exigir reconhecimento presencial num notário.

Se logo na altura em que o caso se tornou público era evidente a hipocrisia e a manha patentes em todo o processo, agora ultrapassaram-se todos os limites da decência. Com a gravidade adicional de ser o Presidente da República “himself” a ultrapassar esses limites.

Mas recapitulemos o que se passou, pois já não há muitas dúvidas sobre como decorreu o processo do convite a António Domingues para presidir à administração da Caixa Geral de Depósitos:

1. António Domingues, que planeava reformar-se do BPI no final de 2016, aceitou o desafio de liderar a CGD colocando um conjunto de condições. Entre essas condições contava-se, formuladas logo em Março do ano passado, isentar a equipa de gestão das regras do gestor público, quer no que respeita aos limites colocados aos vencimentos dos gestores, quer sobretudo no que se refere à obrigatoriedade de depósito da declaração de rendimentos no Tribunal Constitucional.

2. A equipa do Ministério das Finanças – Mourinho Félix e Mário Centeno – aceitaram essas condições e agiram em conformidade. Como sabemos isso? Sabemos porque essas condições foram colocadas por escrito, por António Domingues, tal como consta dos mails já conhecidos. Sabemos porque não existe nenhum mail dos responsáveis do Ministério a contrariar os termos da combinação e porque Domingues aceitou o convite. Sabemos também porque, depois desta combinação, os advogados contratados por António Domingues começaram a trabalhar nas alterações legislativas, que fizeram seguir para o Ministério.

3. Desde o primeiro momento que o Governo tinha consciência dos problemas que esta alteração legislativa levantava, nomeadamente ao contrariar o disposto na lei de 1983. Nem se imagina que outra coisa pudesse suceder: o primeiro-ministro é um jurista, o Presidente da República até era ministro dos Assuntos Parlamentares na altura em que essa lei foi aprovada. No entanto alterar a lei de 1983 exigia que o diploma fosse ao Parlamento, e o Governo sabia que isso era politicamente delicado. Optou-se por isso por um decreto-lei, a ver se a coisa passava. E actuou-se com manha, adiando um mês a publicação do Diário da República desse decreto-lei para que tal só acontecesse no preciso dia em que a Assembleia entrava de férias.

4. O Presidente da República nunca esteve de acordo com esta solução, mas antes do Verão, quando o plano de recapitalização ainda não tinha obtido a primeira indicação de aprovação em Bruxelas, aceitou engolir o sapo. Em Outubro, já com a administração em funções e o plano pré-aprovado pelas autoridades europeias, liberta, via Marques Mendes, a bomba: o decreto-lei afinal não previa a obrigatoriedade da entrega da declaração de rendimentos. Como se de um anjinho se tratasse, Mendes interrogava-se melosamente: “Ou é um lapso, admito que seja, que tem de ser corrigido rapidamente, ou foi de propósito e é muito mais grave”.

5. Na terça-feira seguinte, ingenuamente (ou credulamente?), Mourinho Félix começou por esclarecer que se tratava de “uma solução combinada” com a Direção Geral da Concorrência da Comissão Europeia e que “os gestores da CGD terão obrigações de escrutínio de idoneidade maiores do que os políticos ou os titulares de altos cargos públicos”, mas sem acesso do público em geral às suas declarações de rendimentos. O próprio Ministério das Finanças começaria por, numa nota, reafirmar essa interpretação, para corrigir o tiro horas depois. Rapidamente o spin governamental tratou de virar o bico ao prego e construir uma outra narrativa. A que tem vigorado desde então.

6. O cinismo de algumas declarações públicas atingiram então níveis capazes de tirar a respiração mesmo aos argumentistas do “House of Cards”. António Costa, que tinha reunido a 2 de Junho com Domingues antes de este avançar com mais convites, que chegou a interromper um conselho de ministros para lhe dar luz verde, e que não podia senão estar por dentro das condições colocadas pelo gestor, tratou de tirar o corpo da polémica com a declaração mais sibilina de todo este processo: “Eu entreguei a minha declaração…” Sim, e depois? Não era isso que estávamos a discutir. Mas como facada nas costas não ficou nada mal. Lembra a cena, logo no início de “House of Cards” em que Frank Underwood esgana um cão que tinha sido atropelado, concluindo que, em política, não se pode ter hesitações ou piedade. António Costa não diria melhor.

7. Devo dizer, contudo, que Marcelo Rebelo de Sousa conseguiu ir ainda mais longe. Depois de, em Junho, ter estendido o tapete a António Domingues ao assinar o decreto-lei que o Governo lhe enviou, depois de em Outubro lhe ter tirado o tapete por interposto Marques Mendes, faz o que nenhum Presidente antes dele fizera: um comunicado que é, ao mesmo tempo, um parecer jurídico à atenção do Tribunal Constitucional e uma sugestão ao Parlamento para que legisle em conformidade.

Tudo isto, ou quase, já se sabia antes de, na Assembleia da República, se ter aprovado a lei que tornou claro que os gestores da Caixa teriam mesmo de entregar a sua declaração de rendimentos. E de estes se terem demitido. O que agora vamos conhecendo são novos pormenores e a certeza de que Mário Centeno mentiu quando disse aos deputados que nada tinha combinado com António Domingues. Não só combinou, como isso decorre dos emails já conhecidos, nos quais se chega ao detalhe de perguntar ao gabinete de advogados que estava a trabalhar com o gestor qual a melhor versão para o texto que estava a ser preparado para o decreto lei. E não só combinou as combinou as condições, como combinou a melhor estratégia para as fazer passar, algo que ficará claro quando se conhecer o conteúdo dos SMS.

O Presidente terá perguntado ao primeiro-ministro se havia algum papel assinado por Mário Centeno, e quando lhe disseram que não, atravessou-se pelo ministro. Talvez não considere “papel assinado” trocas de SMS. Talvez não considere que o facto de “inexistirem” mails de resposta à listagem das condições colocadas por António Domingues representa, implicitamente a sua aceitação. Talvez também ache que a palavra do ministro vale tanto como uma vichyssoise, por muito estranho que isso possa parecer.

O secretário de Estado combinou, o ministro fechou o acordo, o primeiro-ministro deu o aval e a garantia, o Presidente colocou a sua assinatura num decreto-lei sem desconhecer as intenções de quem o redigira. Depois o Presidente puxou o tapete, o primeiro-ministro fez uma finta e tirou o corpo fora, o ministro atrapalhou-se e mentiu no Parlamento e o secretário de Estado meteu os pés pelas mãos. Todos, com a maior das friezas e requintes de cinismo, trataram de deixar todo o ónus nos gestores que tinham convidado para a Caixa e com os quais se tinham comprometido.

Há quem aprecie esta forma de fazer política. Eu prefiro ficar-me pela ficção do “House of Cards”.

PS. Foi penoso assistir à conferência de imprensa de Mário Centeno, onde procurou demonstrar o indemonstrável. Em nenhum momento explicou como foi possível chegar a acordo com António Domingues sem cumprir a sua principal exigência, a de que não haveria “obrigações de publicidade, transparência ou de declaração” dos rendimentos, como está escrito, preto no branco, nos mails trocados com o Ministério. Foi também penoso repetir a desculpa invocada para o atraso na publicação do decreto-lei, referindo as negociações em curso com Bruxelas. Uma lei já pronta e assinada pelo Presidente à espera de “retoques”? Não faz sentido. Uma lei à espera do fim das negociações nas instâncias europeias publicada no fim de Julho quando estas só acabaram no fim de Agosto? Não faz sentido. Porque não falam com verdade, ao menos por uma vez?

A penosa conferência de imprensa de Mário Centeno
Essa postura de cadafalso poderá ser-lhe útil, na medida em que serve como um acto de semicontrição que o pode aguentar no Terreiro do Paço.

João Miguel Tavares
14 de Fevereiro de 2017, 6:58

Aquilo não foi bem uma conferência de imprensa. Foi mais uma sessão de tortura transmitida em directo, com a curiosidade de o torturado ser, ao mesmo tempo, o torturador. Nunca tinha visto nada assim. Mário agredia Centeno, Centeno pontapeava Mário, Mário esmurrava Centeno, Centeno espancava Mário. Foi uma conferência de imprensa onde o ministro das Finanças abria a boca e a gente via, como nos desenhos animados, um Mário angelical a segredar-lhe ao ouvido direito “diz a verdade, diz a verdade, diz a verdade”, e um Centeno diabólico a berrar-lhe ao ouvido esquerdo “esconde, esconde, esconde”. No meio disto, estava um homem perdido, dois hemisférios cerebrais em conflito, a tropeçar a cada três palavras, com uma cadência de discurso semelhante ao de uma professora primária em dia de ditado, constantemente alimentado por uns papelinhos que lhe eram passados pelos colegas de mesa, com as frases que deveria dizer.

Há um lado bonito nisto: o ministro das Finanças é um péssimo mentiroso, e, portanto, esforçou-se ao máximo para se equilibrar na finíssima linha que separa a verdade da mentira – se ele fosse demasiado verdadeiro, iria admitir o que andou a negar durante meses; se fosse demasiado falso, daria o flanco a uma futura divulgação de correspondência comprometedora. É por isso que já vimos pessoas em funerais bastante mais animadas do que Mário Centeno naquela penosa conferência de imprensa, misturando uma espécie de mea culpa (a custo, lá admitiu que possa ter havido um “erro de percepção mútuo” entre ele e António Domingues) com uma espécie de clamor de inocência. Centeno garante que aquilo que foi acordado entre ambas as partes foi a exclusão do Estatuto de Gestor Público e não a dispensa de declarações de património junto do Tribunal Constitucional. É verdade. Só que, como é evidente, ambas as partes pressupunham que a exclusão do Estatuto de Gestor Público tivesse como consequência a dispensa de declarações de património junto do Tribunal Constitucional.

Aliás, toda esta minha argumentação acerca da consistência argumentativa de Mário Centeno é relativamente supérflua perante as imagens da conferência de imprensa – em cima da cara de Centeno estava o peso inteiro da sua consciência. Daí a longa sessão de tortura para a qual o próprio se voluntariou. Contudo, e em última análise, essa postura de cadafalso poderá vir a ser-lhe útil, na medida em que serve como um acto de semicontrição que o pode aguentar no Terreiro do Paço. Substancialmente, Centeno está a mentir, claro, mas formalmente é possível que tenha descoberto uma nesga de terreno (a ausência do tal “papel” que Marcelo exigiu como prova da sua culpabilidade) onde, mantendo-se em bicos dos pés, consiga evitar uma demissão. E se os famosos sms aparecerem? Bom, se aparecerem, também para isso o ministro deixou uma resposta digna de La Palice: “Todas as comunicações privadas que tenho com o dr. António Domingues são privadas.”

Neste jogo do esconde-esconde à vista de todos, há, contudo, dois aspectos relevantes aos quais ninguém pareceu dar o devido valor. Em primeiro lugar, a própria situação da Caixa, que levou meses paralisada devido a um conflito inútil. Em segundo lugar, a maneira como o Governo deixou nas mãos de um escritório de advogados a feitura de uma lei à medida das exigências do seu cliente. Tudo isto é muito mais grave do que o psicodrama Centeno-Domingues. Só que perguntas sobre isso, infelizmente, houve zero.

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