terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Lisboa: Queixa à justiça tenta travar projecto de Souto de Moura para a Praça das Flores / Arquitectos, património e a síndroma criadora ANTÓNIO SÉRGIO ROSA DE CARVALHO 27/11/2001 – PÚBLICO


Lisboa: Queixa à justiça tenta travar projecto de Souto de Moura para a Praça das Flores
Signatários de uma petição pedem a Fernando Medina que a câmara municipal "coloque o interesse público acima dos interesses privados" e questionam a "objectividade" da aplicação do Plano Director Municipal quando os arquitectos são famosos.

JOÃO PEDRO PINCHA 21 de Fevereiro de 2017, 8:12

Uma lisboeta decidiu lançar uma petição online para tentar travar a demolição de um prédio na Praça das Flores, entre a Rua de São Bento e o Príncipe Real, para onde está previsto um edifício projectado por Souto de Moura. Além disso, Mariana Villas-Boas já enviou queixas ao Ministério Público, ao Provedor de Justiça e à Ordem dos Arquitectos por considerar que a Câmara Municipal de Lisboa está a violar o Plano Director Municipal (PDM).

A aprovação do projecto de Souto de Moura – cinco pisos com fachada em ferro, vidro e alumínio – não foi consensual entre os serviços da câmara, tal como o PÚBLICO noticiou há um ano. Ao contrário do que sustenta o projectista na memória descritiva, os técnicos do Departamento de Projectos Estruturantes consideraram que a proposta não tem “qualquer relação com a linguagem arquitectónica dos edifícios confinantes” e que o prédio a demolir “possui características arquitectónicas com relevância”. Esse não foi, no entanto, o entendimento do director municipal do Urbanismo e do vereador com o pelouro, Manuel Salgado.

Na petição, apoiada pelo Fórum Cidadania Lisboa, os signatários afirmam que a demolição do edifício existente constitui uma “perda de identidade” da zona, que é “uma das praças mais emblemáticas da cidade”. Acrescentam que o projecto de Souto de Moura “prejudica fortemente a imagem da Praça das Flores” e pedem ao presidente da câmara, Fernando Medina, que “coloque o interesse público acima dos interesses privados”.

A petição também lança suspeitas sobre a “objectividade de aplicação do PDM” por parte da autarquia, ao referir que “entre a lista de projectistas dos novos edifícios a construir implicando demolições que dificilmente se enquadram na lei é notória a preponderância de arquitectos de renome”.

A autora da petição e das queixas, Mariana Villas-Boas, não tem dúvidas. Esta obra, “sendo assinada por qualquer outro arquitecto, não seria permitida pela câmara municipal”, diz ao PÚBLICO. A lisboeta, que não mora longe da Praça das Flores e por lá passa grande parte dos dias, diz-se incrédula. “Eu não quero ver o cenário encantador em que vivo ser destruído por motivos que não se entendem bem.”

Por isso mesmo enviou queixas a Maria José Morgado, procuradora-geral distrital de Lisboa, a Luís Vassalo Rosa, Provedor da Arquitectura, e a José de Faria Costa, Provedor de Justiça. A todos pede que se pronunciem sobre este caso concreto, mas requer também que “sejam investigados os processos” que “têm vindo a lesar o património e a identidade da cidade”.

“Como é que é possível que um PDM se aplique com rigor a uns, aos cidadãos anónimos, e a outros, os galardoados, tudo é permitido?”, questiona Mariana Villas-Boas, que acusa a câmara de “agir em perfeita desarmonia” com o disposto no artigo 45º do PDM.

Esse artigo é o que estabelece as condicionantes para que uma demolição seja aprovada. Tal operação admite-se, entre outros casos, em “situações de ruína iminente” e “quando os edifícios existentes não constituam elementos com interesse urbanístico, arquitectónico ou cultural” e “o projecto apresentado para a sua substituição contribua para a valorização arquitectónica, urbanística e ambiental da área”.

Ora, para Mariana Villas-Boas, as normas não estão a ser cumpridas e “num Estado de direito isso não pode acontecer”. A cidadã admite que talvez tenha agido um pouco tarde para evitar o derrubamento do prédio na Praça das Flores, mas acredita que a petição e as queixas ajudam a criar consciência sobre o assunto. E espera que sirvam para evitar situações semelhantes no futuro.

O director municipal do Urbanismo justificou a aprovação do projecto, em Julho de 2015, da seguinte forma: “A arquitectura, como qualquer das outras artes, tem esta espantosa característica de, perante uma intervenção, podermos ter vários olhares e todos eles válidos.”

A arrogância dos “arquitectos famosos” sobrepondo-se a tudo e a todos os valores é uma velha tradição em Portugal. Como ilustração revisitem este artigo da minha autoria no Público datado de 2001. António Sérgio Rosa de Carvalho / OVOODOCORVO

Arquitectos, património e a síndroma criadora
ANTÓNIO SÉRGIO ROSA DE CARVALHO 27/11/2001 –

Foi-nos anunciado que, no próximo dia 29 de Novembro, irá tomar lugar no Laboratório Nacional de Engenharia Civil um encontro que pretende discutir o futuro da Baixa como conjunto patrimonial, eventualmente propor a sua classificação como Património Mundial e sensibilizar a opinião pública.Simultaneamente, fomos também confrontados com uma surpreendente proposta de arquitectos e engenheiros para cobrir a Baixa com uma estrutura retráctil. Será esta a melhor maneira de sensibilizar a opinião pública para o imperativo de uma recuperação da Baixa à altura da sua importância histórica e da urgência do seu repovoamento?Francamente, depois do programa de valorização de Lisboa Valis e do elevador do castelo, já nada nos surpreende. Mas pensávamos que os arquitectos e os engenheiros se tinham deixado destas coisas...Talvez a próxima proposta seja a concretização da utópica cúpula geodésica de Buckminster Fuller, mas agora cobrindo Óbidos, tipo campânula transparente a envolver bolo em confeitaria Pompadour.Tudo isto é ilustrativo da confusão que reina em terras lusas no que respeita às definições delimitadoras do que é um arquitecto de restauro e do que é um arquitecto criador. Dos limites impostos pela pertença colectiva do património arquitectónico, como teatro de memória, à síndroma criadora do arquitecto.É preciso dividir as responsabilidades. Uma parte da culpa reside nos arquitectos. Outra parte nas instituições oficiais de defesa do património, exercendo ou não a sua responsabilidade disciplinadora. Uma outra parte no sistema de ensino, onde a consciencialização histórica dos futuros arquitectos não é feita por historiadores de arquitectura (licenciados na perspectiva de Letras e, portanto, não sofrendo da síndroma criadora), mas por arquitectos subjectivamente autodidactas nas áreas históricas. Nos países do Norte da Europa, o ensino da História de Arquitectura é exercido por historiadores (de arquitectura). As outras áreas - projecto, estruturas - por arquitectos, engenheiros. Um arquitecto de restauro é formado exclusivamente com uma especialização nesse sentido, e geralmente só faz restauro. É detentor de um código que aplica com rigor ético.Em Portugal, a XVII Exposição Europeia deixou-nos com um festival de intervenções ambíguas. A Casa dos Bicos foi aumentada, baseando-se correctamente nas fontes iconográficas posteriores à época, mas não sem se ter feito um "abrilhantamento criativo" das janelas, num álibi "patrimonialmente correcto", mas que esconde atrás do argumento da Carta de Veneza uma síndroma criadora. Isto para não falar da fachada das traseiras, que apresenta a qualidade de uma agência bancária de província, ou do interior, "pioneiro" de simbolismos e dinâmicas protodesconstrutivas. Seguiram-se as irresponsáveis coberturas dos Jerónimos e da Torre de Belém.Para não nos alargarmos, ficaremos por um último exemplo: a própria Casa dos Arquitectos, templo ou cabana primitiva de exemplos e virtudes, emanando referências didácticas. Isto é, a transformação dos Banhos de S. Paulo em sede da ordem. Está bem, não se tratava propriamente das Termas de Caracalla, mas apenas de um modesto - mas raro - exemplo do neoclassicismo em Portugal. O "restauro", ou recuperação, levou à total destruição do interior do edifício e à total alienação do exterior. E eu que pensava que um pedimento era uma referência de virtudes cívicas e um arquétipo tectónico... afinal é uma moldura para espelhos de barbear. Ou será detentor de um simbolismo mais profundo, dirigido à memória das manipulações científicas e militares de Arquimedes ? Andávamos preocupados pelo misterioso caso da Quinta da Bacalhoa, que, na sua gravidade, só pode ser comparado à destruição de uma parte da Torre de Belém. Mas tranquilizaram-nos pela atitude firme no golfe das Amoreiras. Andávamos preocupados por nos sentimos secundarizados, desconvidados ou mesmo ignorados na Europa. Afinal, podemos consolar-nos com o reconhecimento da nossa criatividade única.Mal acabámos de acordar para o verdadeiro pesadelo, ao reconhecermos que os nossos centros históricos constituem o último reduto de resistência à destruição e ao caos que nos rodeiam, e já estamos a propor uma "Manhattan" de Cacilhas. Ainda não definimos a tal filosofia global, coerente, unificada e rigorosa para a intervenção na Baixa, e já estamos a propor coberturas surrealistas. Perante o desafio do caos urbanístico e das inqualificáveis periferias, verdadeiras "bombas-relógio", um programa de tertúlias resolveu convidar ilustres participantes.Num rasgo de criatividade, ilustrando uma leviandade pós-moderna própria daqueles que usufruem do dom da graça todos os dias, um dos seus representantes deixou-nos com uma conclusão profunda e uma imagem inspiradora. Referindo-se à superioridade das nossas cidades sobre as "civitas" do Norte da Europa, que estão prisioneiras e sofrem dos horrores da civilização, rematou: "As nossas são mais rascas, mais ordinárias, mais mulatas." Palavras para quê ? É um artista português.



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