segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Lisboa e os parolos




Lisboa e os parolos
20 DE FEVEREIRO DE 2017
Fernanda Câncio

Cada um de nós tem os seus lugares numa cidade. Os seus bairros, as suas ruas, os seus miradouros, as suas árvores, os seus prédios. O meu bairro foi sempre a Baixa, desde que, miúda, a minha mãe me levava às compras e a lanchar na Brasileira (a da Rua Augusta, não a do Chiado; essa foi minha muito mais tarde). Nos mais de 40 anos que passaram desde esse amor à primeira vista muito mudou nas ruas do meu bairro - onde vivo desde 1996 - nem tudo para melhor.

Não, não vou fazer deste texto uma catilinária contra o turismo. Também sou turista nas cidades dos outros e a beleza de Lisboa não podia ser para sempre um segredo só nosso - aliás, um segredo só de alguns, porque a maioria até há três anos achava a Baixa, por exemplo, um sítio sem interesse nem para passear, quanto mais viver. Como é tão costume, foi preciso estrangeiros mostrarem-nos o que temos de bom face à "invasão" que está a "destruir o nosso património".

Lamento; quem está e esteve a destruir o nosso património somos nós, os portugueses. Primeiro quando o votámos ao abandono e à ruína - aqueles que agora se queixam do preço do imobiliário na zona mais nobre da cidade acaso repararam que até há três ou quatro anos se vendiam aí apartamentos, e até prédios, baratíssimos? Ninguém lhes pegava: não tinham elevador, não tinham garagem, eram "velhos". Sim: a maioria dos portugueses são saloios. Deliram com chão flutuante, recusam--se a subir sequer dois lanços de escadas e acham que o carro é um prolongamento de si. Não concebem sequer que é possível viver sem ele - como fazem milhões de pessoas nas capitais do mundo ocidental -, mesmo que essa incapacidade implique viver a quilómetros do trabalho e passar horas no trânsito. Quantos amigos e conhecidos me perguntaram ao longo dos últimos 20 anos: "Que horror, como é que consegues viver ali?"

Isto dito, vamos ao segundo ponto - a segunda razão pela qual somos nós que estamos a dar cabo do património. E que também tem tudo a ver com sermos saloios. E gananciosos. Mas sobretudo saloios - querendo dizer tacanhos, ignaros, não sofisticados, parolos. Claro que as coisas mudam. As lojas fecham. Os prédios têm de ser reabilitados, adaptados a novos usos. Tudo isto é assim, por mais que custe - e custa muito às vezes. Mas esse tudo não significa destruir, não significa desvirtuar, não significa o carnaval de horrores em que a Baixa está a ser transformada. Em cada dia que circulo pelo meu bairro vejo coisas inacreditáveis. Prédios de miolo completamente deitado abaixo numa zona classificada onde a classificação inclui o tipo de construção - pombalino não é só um tipo de fachada, sabiam? Lojas que, na maior impunidade, destroem as frontarias de pedra com anúncios e letreiros, inventam datas de abertura e põem decorações de plástico pintadas de dourado a "imitar antigo". E - descobri agora - um dos meus edifícios favoritos, o magnífico e romântico palácio dos Condes de Coculim, no Campo das Cebolas, cuja origem remontará ao século XVI (não há muitas casas, e ainda para mais palácios, no centro de Lisboa com esta idade) e cuja ruína lamento há décadas, acrescentado em altura de forma completamente atamancada, digna dos cataclismos algarvios dos anos 1970 e 1980.


Como é possível destruir assim a frente de rio na zona mais antiga da cidade? Já nem falo da cupidez dos promotores, que quiseram "rentabilizar" o investimento e fazer ali um hotel como se fosse, sei lá, na Praça de Espanha; nem do apuro estético e bom senso dos arquitetos. Falo daqueles que têm o dever legal de preservar a memória e integridade da cidade, os decisores públicos. Como raio justificam os responsáveis da Câmara e da Direção-Geral do Património Cultural o terem aprovado este crime? Enloucaram de vez ou agora assinam de cruz tudo o que diga "hotel" e "cinco estrelas"?

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