Denúncia anónima acusou juiz
Carlos Alexandre de violar segredo de justiça
Almoço de magistrado com
jornalista originou denúncia anónima, que acabou por ser arquivada. Juiz era
acusado de ter passado informações confidenciais sobre interrogatório judicial
de Ricardo Salgado
“Seria temerário da minha parte
fazer qualquer consideração a esse respeito num restaurante onde é impossível
ter qualquer tipo de privacidade”
Ana Henriques / 2-3-2015 / PÚBLICO
Visto a almoçar numa tasca de grelhados em Moscavide com um jornalista, o juiz Carlos Alexandre foi acusado, por carta anónima enviada à Procuradoria-Geral da República, de lhe ter passado informações confidenciais sobre o interrogatório judicial de Ricardo Salgado. O caso obrigou a abrir um processo, que o PÚBLICO consultou, e, antes de ter sido arquivado, em Janeiro passado, o magistrado por quem têm passado alguns dos mais mediáticos casos da justiça portuguesa teve de jurar em tribunal que não violou o segredo de justiça. Foi ouvido como testemunha pelo Ministério Público do Tribunal de Relação.
Não fora a
medicina chinesa e nada disto teria sucedido. Adepto da acupunctura desde que
um conterrâneo seu de Mação se tornou discípulo do conhecido médico Pedro Choy,
Carlos Alexandre concordou em almoçar no Verão passado com o jornalista da
Visão Francisco Galope, a pedido de um procurador das suas relações. O repórter
queria fazer um perfil do juiz e recorreu a este magistrado, que conhecera num
curso de medicina chinesa e sabia ser amigo do juiz. Há muito esquivo à comunicação
social, Carlos Alexandre declinou colaborar na elaboração do artigo, alegando
que vários jornais já tinham esmiuçado os seus hábitos, ao ponto de descreverem
aquilo que supostamente comia ao pequeno-almoço. Mas acabou por concordar em ir
à tasca de Moscavide um dia depois de Ricardo Salgado ter sido detido e de o
ter interrogado.
Por correio azul
A denúncia
anónima chegou em correio azul à Procuradoria-Geral da República um mês depois,
dirigida não a Joana Marques Vidal mas à procuradora-geral distrital de Lisboa,
Francisca Van Dunem, e a um membro do Conselho Superior do Ministério Público
eleito pelo distrito do Porto, Jorge Alves de Oliveira. “Nos dias seguintes à
detenção e inquirição do dr. Ricardo Salgado, o sr. juiz Carlos Alexandre
desmultiplicou-se em contactos directos e pessoais com jornalistas. Num dos
encontros falou com detalhe sobre o interrogatório de Ricardo Salgado e outros
detalhes do processo. Quem assistiu ao almoço, ficou a saber como Ricardo
Salgado foi confrontado com um documento que dava sem efeito o
contrato-promessa de venda da ESCON [sic] à Sonangol, mostrando desconhecer o
documento”, lêse na denúncia. A missiva assegura também que o magistrado teria
ainda revelado como houve 27 milhões de euros que “andaram num virote de um
lado para o outro” nos negócios do Banco Espírito Santo Angola, numa tentativa
dos suspeitos de lhes fazer desaparecer o rasto.
Sugerindo às
autoridades que usem o sistema de geo-referenciação dos telemóveis dos
envolvidos para comprovar aquilo que escreve, o autor da carta termina com um
recado: “Relativamente a esta violação, poderão lavar as mãos como Pilatos, mas
não poderão dizer que nada souberam”.
Na sequência da
denúncia, foram ouvidos jornalistas de vários órgãos de comunicação social no
Tribunal da Relação de Lisboa, onde o assunto foi parar por as suspeitas
recaírem também sobre um juiz. A maioria deles tinha escrito sobre a detenção
do banqueiro, uns inspirando-se em material já publicado por colegas, outros
recorrendo a fontes de informação judiciais. Recusaram-se a revelar que fontes
tinham sido essas, invocando o sigilo profissional, mas todos declararam que
Carlos Alexandre não estava entre elas. E chegaram mesmo a queixar-se do
carácter demasiado reservado do juiz. Um deles explicou de que forma havia
conhecido o magistrado, há muitos anos atrás: “Constituiu-me arguido pelo crime
de espionagem quando trabalhava para a Polícia Judiciária Militar”.
O Tribunal da
Relação também confrontou as declarações feitas no interrogatório a Ricardo Salgado
com o teor da denúncia. No dia em que um antigo deputado do CDS contou, na
comissão parlamentar de inquérito ao BES, que era ele quem preenchia o IRS do
banqueiro, e de graça, Carlos Alexandre foi finalmente prestar declarações à
Relação sobre a denúncia de fuga de informação.
Dispensa de advogado
Tal como as
restantes testemunhas, foi obrigado a jurar que falaria verdade e advertido de
que, caso o não fizesse, incorria em multa ou mesmo em prisão. Prescindindo do
direito de se fazer acompanhar por um advogado, disse à magistrada que o
interrogou que nunca tinha “refeiçoado” com os jornalistas em causa, à excepção
do da Visão, com quem não viu nenhum inconveniente em almoçar. Negou
peremptoriamente ter-lhe passado qualquer tipo de informação sobre o processo
de Ricardo Salgado. “Seria temerário da minha parte fazer qualquer consideração
a esse respeito num restaurante onde é impossível ter qualquer tipo de
privacidade”, observou, acrescentando que a carta anónima visaria “criar um
ambiente de suspeição” à volta da sua pessoa ou mesmo afastá-lo do processo ou
do próprio tribunal.
Além de tudo, os
dados que a denúncia dizia terem sido transmitidos ao jornalista não batiam
certo com os que constavam do processo: no interrogatório, “falou-se, sim, nuns
52 milhões de euros, e a venda não era feita nominalmente à Sonangol, mas sim a
entidades cuja beneficiária era a própria Sonangol, ou administradores seus”. Não
fosse a denúncia anónima e o juiz reservar-se-ia o direito de processar o seu
autor.
Embora admitindo
que alguns dos artigos publicados sobre a detenção do banqueiro indiciavam
violação do segredo de justiça — não sendo o caso do trabalho do jornalista da
Visão, que,
naquela altura, nem sequer escreveu sobre este tema —, a procuradora encarregue
deste inquérito acabou por arquivar o processo, até por o denunciante
desconhecer o teor das respostas dadas por Ricardo Salgado durante o
interrogatório. Este não será o único processo do super-juiz envolvendo
violação do segredo de justiça.
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