A dispersão ideológica no
centro-esquerda europeu e a indefinição do PS
ANA RITA FERREIRA
04/03/2015 - PÚBLICO
O líder socialista não poderá entrar em promessas fáceis mas inexequíveis —
até porque os eleitores já não acreditam em quem tudo lhes promete.
A família
social-democrata/socialista/trabalhista europeia tem, desde há alguns anos,
dado sinais de falta de unidade ideológica e, por isso mesmo, tem dado sinais
de dispersão na acção política. A História mostra-nos que, até ao final do
século XX, apesar das naturais diferenças de estilo relacionadas com as suas
circunstâncias nacionais específicas, os partidos de centro-esquerda europeus
partilhavam uma matriz ideológica comum: todos se destacavam pela defesa de um
Estado social universal e gratuito, pela protecção do factor trabalho nas
relações laborais, pelo enfoque na tributação progressiva que permitisse uma
verdadeira redistribuição da riqueza entre grupos sociais, pela intervenção estatal
na economia, entre outras bandeiras.
Ora, desde a
década de 90, mas sobretudo durante o actual período de crise económica e
financeira, os partidos da família social-democrata europeia têm mostrado que
já não se encontram mais sintonizados em torno de uma série de causas comuns.
Ao contrário do que é comum afirmar-se, nem todos os partidos de
centro-esquerda aderiram acriticamente à Terceira Via, a corrente revisionista
da social-democracia que marcou indelevelmente o Partido Trabalhista britânico de
Blair ou o SPD alemão de Schröder. Não é possível dizer, por exemplo, que o PS
de Sócrates ou o PSOE de Zapatero tenham sido especialmente influenciados por
esta linha ideológica. A verdade é que os partidos de centro-esquerda foram
enveredando por caminhos políticos diferentes, aproximando-se uns mais do
centro político do que outros. Por isso, hoje temos, no seio da família
socialista europeia, quem se mantenha mais próximo da social-democracia
tradicional e quem, pelo contrário, teça loas ao funcionamento livre dos
mercados, quem considere que o Estado social se deva reduzir a uma rede de
segurança que apenas combata a exclusão social extrema, quem se oponha a
reformas fiscais que aliviem os mais pobres e reforcem a carga tributária dos
mais ricos, quem desconfie das reformas do sistema político que procuram
fortalecer o poder democrático dos cidadãos — e, naturalmente, estes diferentes
posicionamentos ideológicos reflectem-se em diferentes visões sobre o papel e a
organização da Europa.
É esta falta de
unidade ideológica na família social-democrata europeia que tem impedido a
unidade na acção política dos vários partidos que a compõem. Na semana passada,
João Cardoso Rosas dizia-nos, na sua crónica no Diário Económico, que o mais
surpreendente, no contexto europeu actual, era a social-democracia
auto-excluir-se do debate político. Efectivamente, o centro-esquerda tem
escolhido “não ir a jogo”, deixando a direita e a esquerda radical apresentarem
as suas propostas, sem definir, de forma conjunta, a sua própria linha
política, o seu diagnóstico dos problemas e as suas soluções. O que mais se
estranha desde a vitória do Syriza, há cerca de um mês, não é tanto que os
governos português e espanhol, ambos de direita, ambos ideologicamente
distantes, surjam como os principais críticos das propostas do Governo grego: o
que mais se estranha é que a social-democracia europeia, ideologicamente mais
próxima do Syriza, não surja como apoiante clara e inequívoca de algumas
medidas propostas (e, naturalmente, crítica de outras).
No entanto, não
era possível esperar outra coisa do centro-esquerda europeu, que se encontra de
facto dividido em discursos políticos antagónicos. Os sociais-democratas
alemães, que integram a coligação de governo com a CDU de Merkel, ou os sociais-democratas
holandeses, na chefia de um governo que une também centristas e liberais, mas
sobretudo com o seu ministro das Finanças na presidência do Eurogrupo, são as
faces mais visíveis de como há actualmente, na família social-democrata, quem
tenha um discurso muito próximo do dos conservadores e dos liberais —
sustentando, com estes últimos, as políticas de austeridade que vão, em grande
medida, contra a sua ideologia tradicional.
Apesar desta
dispersão ideológica na família social-democrata europeia, exige-se que cada
partido nacional escolha o seu caminho político e o afirme claramente. Esta é
provavelmente a maior dificuldade que o PS terá de enfrentar, mesmo antes de
apresentar um programa eleitoral: eleger uma direcção ideológica inequívoca, com
três ou quatro causas fortes e mobilizadoras, que passem a ser recorrentes no
discurso de António Costa.
As recentes
sondagens mostram que o PS não sofreu um processo de “pasokização”, mantendo
até o primeiro lugar nas intenções de voto. Mas fica claro que, para descolar
da direita, terá de arriscar mais. Como escreveu São José Almeida, no sábado,
aqui no PÚBLICO, o líder socialista não poderá entrar em promessas fáceis mas
inexequíveis — até porque os eleitores já não acreditam em quem tudo lhes
promete. Mas terá de abandonar o discurso generalista e afirmar de forma
taxativa, sem ambiguidades e sem receios, quais as principais metas específicas
que deseja atingir e qual a via para as alcançar.
Politóloga,
Instituto de Políticas Públicas TJ-CS e UBI
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