sábado, 28 de fevereiro de 2015

O problema de António Costa é bem mais fundo do que um soundbyte / Manuel Carvalho

Como escrevia ontem Pedro Guerreiro no Expresso, “o problema de António Costa não é escorregar numa frase em frente de chineses nem ter Sócrates preso. É não saber o que fazer ao país”.

O problema de António Costa é bem mais fundo do que um soundbyte

Quando uma liderança é abalada por tão pouco, algo de profundo está a correr mal

 Manuel Carvalho 1-3-2015 / PÚBLICO

O PS entrou em estado de sítio por causa de um “factóide” – a designação do Diário Económico para as declarações de António Costa na abertura do Ano Novo chinês. Houve a demissão de um militante histórico, avisos à navegação, velados ajustes de contas entre seguristas e costistas, houve uma torrente de conselhos à liderança feitos sob o conforto do anonimato e, para que a novela ganhasse consistência narrativa, não faltou ansiedade. A verdade é que, como notava o mesmo DE na sua coluna “sobe e desce”, os “factóides” têm importância e “este, em concreto, acabou com o que restava do estado de graça do secretário-geral do PS”. Não, não foi a dificuldade em articular um discurso alternativo ao Governo, não foi a navegação à bolina na crise grega nem o lamentável perdão fiscal da Câmara de Lisboa ao Benfica a ditar o castigo a António Costa nas páginas da imprensa ou nas declarações da maioria: foi um pseudoacontecimento – a admissão do líder do PS de que o país está numa situação “bastante diferente daquela em que estava há quatro anos”. Quando uma liderança é abalada por tão pouco, algo de profundo está a correr mal.
A questão só é relevante porque serve para demonstrar a vulnerabilidade de António Costa a um banal discurso de circunstância. Se na sua alocução à comunidade chinesa António Costa dissesse que o país está de rastos e deixasse no ar o aviso de que investir em Portugal é um risco, seria criticado por estar a fazer a apologia do derrotismo e de surgir perante estrangeiros como o arauto de uma sociedade falhada; como admitiu que o país está diferente, Costa foi criticado por se desdizer.
No mundo real, porém, é possível dizer que o país está melhor do que há quatro anos e, ao mesmo tempo, dizer que o país está mal. Há um ano, o líder parlamentar do PSD, Luís Montenegro, subscrevia essa contradição ao dizer que “a vida das pessoas não está melhor, mas o país está”. Ao falar para uma plateia de investidores ou potenciais investidores estrangeiros, António Costa ou não dizia nada ou, a dizer, tinha a obrigação de admitir que, apesar de tudo, deixámos de andar em permanente sobressalto com a eventualidade de o país entrar em incumprimento financeiro ou de ter de sair do euro. E essa constatação óbvia não põe em causa o reconhecimento também óbvio de que o ajustamento foi um desastre que demorará anos a superar. A sobreposição do “factóide” à análise complexa da realidade é a consequência da pobreza do debate público, mas é também a prova de que António Costa perdeu a aura do herói romântico com que se afirmou no PS e em parte da opinião publicada.
Até porque nesta semana Costa deixou no ar uma declaração política que, essa sim, põe a nu a fragilidade da sua posição e ajuda a perceber a sua liderança errática nos 100 dias que está à frente do PS. Foi quando admitiu, na conferência da revista britânica The Economist, que “não é possível prometer um resultado que depende da negociação com várias instituições, múltiplos governos, de orientações diversas”. Ou quando avisou que, “como se tem visto nas últimas semanas, é um erro definir uma estratégia nacional que ignore a incerteza negocial e se bloqueie numa única solução”. Nessas duas simples frases António Costa atesta que os limites à soberania não são exclusivos da acção do Governo: também a oposição que aspira conquistar o poder vive num regime de “protectorado”, como diria Paulo Portas. “O líder do PS disse aquilo que é uma evidência, mas que é um acto raro, até porque se expôs à acusação de ser hesitante”, registava ontem São José Almeida no PÚBLICO.
Essa constatação é suficiente para explicar as razões pelas quais o PS se recusa a apresentar propostas alternativas em matérias sensíveis como as políticas fiscais, as medidas sociais ou os estímulos ao crescimento. Bem se sabe que Costa avisou há meses que a apresentação ao país de medidas concretas só aconteceria por altura da convenção do partido, lá para Junho. Mas o que o paralisa é muito mais do que o cumprimento de uma agenda: é o receio de correr riscos de desenhar políticas que se suspeita estarem condenadas à censura europeia. Como escrevia ontem Pedro Guerreiro no Expresso, “o problema de António Costa não é escorregar numa frase em frente de chineses nem ter Sócrates preso. É não saber o que fazer ao país”.
Sem margem de manobra para liderar a agenda política, sem ser capaz de apresentar caras novas que levem ao PS uma lufada de futuro, António Costa ligou o piloto automático e deixa-se andar. Ele “é, por vezes, cauteloso e prudente de mais”, como reparou o socialista Álvaro Beleza, e essa cautela é o atestado implícito da sua insegurança e o certificado evidente de que, como notava ontem Passos Coelho na entrevista ao Expresso, nada pode fazer de “radicalmente diferente”. Com o raio de acção limitado, resta-lhe tentar “ficar bem na fotografia”, como escreveu Daniel Oliveira, limitando-se a esperar que o poder lhe caia nas mãos por falta de mérito dos adversários.

Ora é essa pose que deixa muitos socialistas à beira de um ataque de nervos e torna a gestão de António Costa alvo fácil de “factóides” como o das palavras aos chineses. “Houve uma dinâmica que se perdeu”, avisa António Galamba. António Costa tem dificuldades em travar batalhas que vão para lá das escaramuças com o ministro Poiares Maduro. Tornou-se um alvo fácil da contrapropaganda do Governo – neste particular, a revelação do vídeo manhoso a reconhecer o país “diferente” por parte do eurodeputado Nuno Melo acontece no exacto momento em que a Comissão Europeia apontava para os graves “desequilíbrios macroeconómicos” do país.

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