terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Mudou alguma coisa? Sim e não. / TERESA DE SOUSA


Mudou alguma coisa? Sim e não
TERESA DE SOUSA 24/02/2015 - PÚBLICO

Tsipras e o Syriza tiveram de aprender a lição. Schäuble podia tentar fazer o mesmo.

Lendo o documento que o Governo de Atenas apresentou em Bruxelas, a primeira sensação é de que se trata de um programa de reformas que qualquer Governo europeu de centro-esquerda não enjeitaria subscrever. É ambicioso no médio e longo prazo, prometendo enfrentar algumas das mais graves “doenças” do funcionamento do Estado grego. É razoável nas medidas imediatas e nos compromissos já assumidos. Comenta Robert Peston, o editor económico da BBC World, que “o Syriza trocou Marx por Blair”. Ou seja, num mês, um partido de esquerda radical (e um ministro das Finanças que se definia a si próprio como um “marxista errático”) transformou-se num partido social-democrata, disposto a aceitar as regras do jogo europeias e o reconhecimento implícito de que o caminho para melhorar a vida dos gregos tem de incluir ainda algumas “dificuldades” (citando Tsipras), para não pôr em causa a presença da Grécia no euro. O dramatismo ficou para trás, mas também alguns erros de avaliação do Syriza sobre a forma como funciona a Europa.

Dito isto, alguma coisa terá mudado na Europa com a entrada em cena do Syriza? À primeira vista, a resposta é não. Mas, na Europa, nada é simplesmente preto ou branco.

Olhando para a forma como Wolfgang Schäuble vergou o braço a Atenas, dir-se-ia que a Alemanha continua dona e senhora da situação e não abdicou nem um milímetro na sua intenção de aproveitar a crise do euro para reconfigurar a união monetária à sua imagem e semelhança. É verdade? É e não é. Berlim continua a ditar no essencial as regras do jogo, mas ninguém pode dizer que domina inteiramente os jogadores. Nos últimos tempos, Angela Merkel teve de “engolir” um conjunto vasto de medidas tomadas pelo BCE (fundamentais para restaurar a confiança e a estabilidade do euro) que, do ponto de vista alemão, violam o seu estatuto: garantir a estabilidade dos preços. A última foi, porventura, a mais difícil de engolir porque toca no papel do BCE como credor de último recurso, pondo em marcha o chamado quantitative easing para contrariar a deflação e animar a economia. Ou seja, o que fizeram os EUA e o Reino Unido, com os resultados que estão à vista, mas nada que faça parte da ortodoxia alemã.

Segunda questão: em que medida a hipótese de uma saída da Grécia do euro deixou de ser demasiado perigosa para sequer ser considerada? Aqui as opiniões dividem-se. Há na Alemanha muitas vozes que argumentam que essa saída não teria grandes implicações para o euro. Mas também há outras que consideram o "Grexit" como um mero instrumento de pressão de Berlim sobre Atenas. Verdadeiramente, ninguém sabe. Mas há sempre o risco de, com a saída da Grécia, haver outro país (neste caso, o nosso) na linha da frente da desconfiança dos mercados. A queda do Lehman Brothers em Setembro de 2008, à qual ninguém deu importância, desencadeou uma crise de proporções inimagináveis. E, como lembram os Estados Unidos, não se trata apenas de uma questão de números. A Grécia esta na linha da frente de uma região onde a instabilidade ameaça directamente a segurança europeia.

Terceira questão: o Syriza ajudou a pôr em causa a forma como Berlim e Bruxelas geriram os programas de resgate? A única pequena vitória que Tsipras conseguiu foi o reconhecimento de que os programas de ajustamento impostos aos países periféricos estavam mal feitos. Desta vez, um novo “acordo” (como os gregos gostam de dizer) entre Atenas e Bruxelas é da iniciativa nacional, mesmo que tenha de ser negociado. Hoje, já quase ninguém duvida da inadequação desses programas, fabricados por tecnocratas sem a mais leve ideia das realidades nacionais. A mudança pode não ser significativa, mas é simbólica e foi expressa pelo desabafo de Jean-Claude Juncker sobre o respeito pela dignidade dos países sujeitos a resgates. 
E isso leva-nos ao papel da nova Comissão. Juncker prometeu que não seria um “yes-man” de Berlim. Tentou ter um papel de intermediação (e não de imposição) nas negociações com a Grécia. Acabou por ver a sua iniciativa esmagada pelas decisões de Berlim (e do Eurogrupo, onde mandam os Governos), acentuando a ideia nefasta de que a Alemanha é quem manda. Espera-se para ver até que ponto o presidente da Comissão consegue reafirmar a sua liderança. Na segunda-feira, Juncker teve de criticar a “fórmula incorrecta” usada no debate grego para descrever a Alemanha. “Quando um primeiro-ministro insulta os alemães duas vezes por semana, isso não me parece uma forma sofisticada de governar”. Uma no cravo, outra na ferradura.

Finalmente, a vitória do Syriza, apesar das cedências enormes, representa uma forte reacção popular aos programas de resgate que devia ser levada em conta. Cinco anos e uma queda de 25 por cento do PIB não poderiam levar a outra coisa. O que é que faltou e continua a faltar? O crescimento económico sem o qual todos os problemas se tornam mais difíceis de resolver.

Nesta terça-feira, François Hollande recebeu Matteo Renzi no Eliseu para uma cimeira bilateral cujo ponto fundamental foi a necessidade de pôr as economias a crescer. Os dois países, a segunda e a terceira economias do euro, não hesitaram em proclamar que a austeridade acabou (Tsipras quis dizer o mesmo), considerando-se os protagonistas desta mudança. Ambos têm de aplicar reformas em países difíceis de reformar e ambos precisam de tempo para o conseguir fazer. 


Dominique Moisi diz que os dois futuros possíveis da Europa se cruzam na Grécia. Um deles passa pela proliferação dos movimentos populistas e nacionalistas, acelerando o caminho europeu para a irrelevância geopolítica. O outro passará necessariamente por mais integração política e económica. Mas, para isso, é necessário levar em consideração que os países do euro são democracias. Tsipras e o Syriza tiveram de aprender a lição. Schäuble podia tentar fazer o mesmo.

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