TAP: cortar as asas aos nossos
filhos?
RAQUEL VARELA
03/01/2015 - PÚBLICO
O manifesto Não TAP Os Olhos é porventura o mais amplo manifesto em termos
de espectro político português alguma vez assinado em Portugal.
No início da
década de 90, operou-se uma série de privatizações de empresas públicas. A
história, quase sem excepções, foi esta: banca, seguros, telecomunicações,
estivadores, Lisnave e outras empresas metalomecânicas, etc., mandaram para
casa, em situação de pré-reforma, dezenas de milhares de trabalhadores, que,
com 42, 50, 55 anos, foram declarados doentes – mentais, físicos ou
hipocondríacos, todas as mazelas e achaques foram aceites.
Veio depois a
energia, os transportes... Operou-se então a substituição destes por
trabalhadores em situação de precariedade ou com contratos débeis. No país
cresceram como cogumelos “empresas” em nome individual, já não a empresa da
pequena família, mas umas “empresas” excêntricas, em que os ex-trabalhadores
são “empresários”, mas o capital não se acumula nessa pequena empresa, só
circula – acumulam-se dívidas e baixos salários. Preços, produção, timings, é
tudo controlado na casa-mãe, na grande empresa, de que as pequenas são meras
subsidiárias. Na casa-mãe, os lucros acumulam-se a níveis inéditos, justamente
porque a grande empresa deixou de suportar a maior fatia de salários e
prestações sociais e esta pequena empresa suporta todos os custos. Em média,
numa empresa grande, o peso das contribuições para a Segurança Social, por
exemplo, pode ser de 3% a 5%, e numa pequena isso representa 25% ou mais.
A PT, por
exemplo, criou milhares de “heterónimos” e tem hoje 16.000 trabalhadores em
subcontratações assumidas e em condições de trabalho inadmissíveis para padrões
de produção do século XXI. Na EDP, o trabalhador electricista sofreu uma
metamorfose em pequeno empresário, que presta, por exemplo, serviços de
manutenção. Na EDP também, milhares de trabalhadores perderam as poupanças de uma
vida comprando acções da própria empresa.
A isto juntou-se
o trabalho precário mais móvel, um verdadeiro “exército industrial de reserva”
oitocentista, os recibos verdes, jovens que ganham 500 euros e que, para não
regredirem (ir viver para um subúrbio, alimentar-se mal, etc.), se mantiveram
em casa dos pais até aos 25, 30, 35, 40 anos, pagando com isso o preço de uma
infantilização histórica de toda uma geração que desconhece a palavra
independência – os filhos da geração que fez a revolução contra a ditadura e o
Estado social não têm liberdade sequer para sair de casa dos pais. Não têm
asas. Tudo isto tem como auge, decadente, a destruição da Segurança Social,
porque não há força de trabalho suficiente a ganhar e descontar.
A privatização da
TAP exige uma reflexão não contingente. A TAP SGPS, SA emprega um total de
12.856 pessoas. Os gastos com pessoal são na ordem dos 571.855 milhões de
euros, um valor normal para uma empresa que presta um serviço fulcral – o
transporte de pessoas e mercadorias. A TAP é essencial na ligação de uma
diáspora de cinco milhões de pessoas e assegura serviços que uma companhia
privada não asseguraria por não ter uma taxa de rentabilidade média desejada.
O manifesto Não
TAP Os Olhos é porventura o mais amplo manifesto em termos de espectro político
português alguma vez assinado em Portugal. Este dado é de grande relevância
porque mostra o isolamento total do Governo nesta opção.
Há três
sindicatos na TAP que representam 60% dos trabalhadores que têm até aqui
recusado a privatização. Mas nove dos 12 sindicatos assinaram um acordo com o
Governo, em que aceitam a privatização a troco de miríficas promessas,
demonstrando que o problema do país está longe de ser meramente governativo. A
maioria das estruturas dos trabalhadores, anquilosadas, reféns de interesses
corporativos ou agendas partidárias eleitorais, não contribui nem para a defesa
dos seus associados, nem do país. Talvez seja por isso também que as taxas de
sindicalização caem a pique, não ultrapassando hoje, nas empresas privadas, uns
optimistas – e quanto a mim inflacionados – 9% e, nas públicas, 18%... A TAP
está ameaçada de uma privatização que, na literatura de estudos do Estado,
classificamos de clássica ou não clássica, mas o que vai acontecer no futuro
está já em grande parte escrito no passado. Em todas as empresas que citei, da
banca aos estivadores, as estruturas sindicais aceitaram, na década de 90,
pré-reformas. Pensando talvez, como Keynes, que “no futuro estaremos todos
mortos”. Ora, hoje estão vivos, com cortes nas reformas e a cuidar de filhos
adultos como se de crianças se tratasse.
Só há duas
hipóteses no horizonte. A TAP mantém-se pública e tem de ser bem gerida, e
serve o transporte de pessoas e mercadorias de forma exemplar. Isso não pode
estar dependente do Governo de turno – tem de haver um controlo público sobre a
sua gestão, ético e irrepreensível; ou a TAP é privatizada e, na forma clássica
ou não clássica, isso vai representar uma destruição da empresa ou do orçamento
público, ou de ambos.
O memorando
assinado por nove sindicatos aceita a privatização da TAP, mantendo os direitos
laborais dos trabalhadores. Se não for cumprido, é mau; se for, é péssimo. Se o
acordo entre os sindicatos e o Governo não for mantido, é mau e é porventura o
mais provável, a empresa é privatizada, desmantelada, rotas canceladas,
trabalhadores precarizados. Quem acredita num acordo sem força jurídica
assinado por 10 anos por um Governo que deixa este ano funções?
Se for cumprido,
ainda é pior. A TAP passa a ser privada, a sua medida não são rotas, serviços,
condições laborais mas a alta remuneração dos seus accionistas, remuneração que
depende dos cortes salariais. Daí o absurdo da proposta dos pilotos de pedirem
20% de acções – para manter o valor alto dessas acções, ou vão cortar nos seus
salários ou nos dos seus colegas; ganham os pilotos, “queimam-se” os
engenheiros? Ganham os dois e despedem-se os comissários de bordo? Quem vai
pagar a factura da remuneração das acções? A única forma de uma TAP privada
manter os direitos laborais e rotas não lucrativas é injectar quantidades
massivas de dinheiro público numa empresa privada, é, no fundo, uma parceria
público-privada, que se for paga é asfixiando fiscalmente o país ou destruindo
o Estado social. Ou os dois em simultâneo. Numa metáfora firme: para que os
pilotos tenham acções, o Estado despedirá médicos e professores. A história
repete-se ad nauseam nesta gestão sem critério e imoral do orçamento público, e
não é de hoje – temos décadas de erros acumulados. Era altura de não os
repetir.
As sociedades não
têm resolvido os seus desafios históricos com uma visão tacticista de curto
prazo, que evita conflitos hoje para colher tempestades amanhã. Adiar problemas
não os evita, agiganta-os. Um dia ensinou-me um piloto da TAP que um avião
descola e aterra sempre… contra o vento.
Historiadora,
Universidade Nova de Lisboa e IISH (Amesterdão)
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