Ricardo Araújo
Pereira escreve a José Sócrates
POR: PORTUGAL
GLORIOSO 22.12.14 / http://portugalglorioso.blogspot.nl/2014/12/ricardo-araujo-pereira-escreve-jose.html
Caro eng. José
Sócrates,
Espero que esta o
encontre bem. Li com atenção as suas cartas e foi apenas por falta de tempo que
não respondi mais depressa. Lembro-me de, no fim do liceu, ter mantido alguma
correspondência com antigos colegas mas, por uma razão ou por outra, a troca de
cartas foi-se tornando cada vez mais rara, até que parou completamente. Não
gostaria de cometer esse erro outra vez. Parece-me importante manter o contacto
com as pessoas do nosso passado, como antigos colegas e antigos
primeiros-ministros.
Tenho pensado
bastante nas observações que vai fazendo. Esta última carta sensibilizou-me
especialmente, na medida em que criticava a cobardia dos políticos, a
cumplicidade dos jornalistas, o cinismo dos professores de Direito e o desprezo
das pessoas decentes. Como creio que sabe, não pertenço a nenhuma das
categorias citadas, e por isso fui deixado de fora do seu olhar crítico, pelo
que lhe agradeço.
As críticas que
faz ao funcionamento da justiça parecem-me muito pertinentes. Portugal
precisava que um homem como o sr. estivesse, digamos, sete anos à frente do
Governo, talvez quatro dos quais com maioria absoluta, para fazer uma reforma
séria do sistema judicial. É uma pena não termos essa possibilidade. Na minha
opinião, os primeiros-ministros deviam ser presos antes, e não depois dos
mandatos. Estagiavam durante dois meses numa cadeia, três num hospital e um
semestre numa escola. O contacto directo com a realidade dá-nos perspectivas
novas, mais informadas, e acirra o ímpeto reformista.
Julgo que é
possível estabelecer um paralelo entre o processo de Josef K., a personagem de
Kafka, e o de José Sócrates, ou Josef S. - sendo que a sua história é mais complexa:
tanto Josef K. como Josef S. se vêem confrontados com decisões judiciais
autoritárias e, em certos aspectos, até grotescas, mas Josef K. nunca teve
amigos como Alberto Martins e Alberto Costa a tutelar a justiça, nem governou o
seu país. Era apenas vítima. Ser simultaneamente vítima e carrasco deve ser
mais perturbador. Ao contrário do que muitas vezes se diz, Joseph-Ignace
Guillotin, o inventor da guilhotina, não foi guilhotinado. Essa ironia foi
reservada para si, que é agora acusado por um sistema que ajudou a conceber e
conservar.
Compreendo quase
todas as suas queixas. Na verdade, a ironia que identifiquei acima não é a
única do seu caso. Ao que parece, o facto de um amigo lhe ter disponibilizado
um apartamento de 225 metros quadrados em Paris fez com que o Ministério
Público lhe disponibilizasse um apartamento de 9 metros quadrados em Évora. Obrigam-no
a aceitar aquilo que o acusam de ter aceitado. É duro. E irónico. Uma pessoa
tolera tudo, menos figuras de estilo.
Considero, no
entanto, que algumas das suas análises são menos acertadas. Por exemplo, quando
diz, sobre a intenção da prisão preventiva: "(...) já não és um cidadão
face às instituições; és um 'recluso' que enfrenta as 'autoridades': a tua
palavra já não vale o mesmo que a nossa." Aqui para nós, se lhe roubaram o
valor da palavra não terão levado grande tesouro, uma vez que a sua palavra já
não valia o mesmo que a nossa desde aquela promessa dos 150 mil empregos.
Espero que não
leve a mal esta franqueza. Estou certo de que voltaremos a falar.
Cumprimentos,
Ricardo
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