Epístola de Sócrates aos
coríntios
Helena Matos / 5/1/2014 / OBSERVADOR
Ao querer transformar a sua prisão num caso político, Sócrates, muito mais
que destruir o juiz Carlos Alexandre, pretende sim comprometer o PS com a sua
defesa e destruir a estratégia de Costa
Estivesse
Portugal na América Latina ou no leste da Europa e José Sócrates seria muito
provavelmente candidato às próximas presidenciais. A cadeia de Évora
transformar-se-ia na sua sede honorífica de campanha e o preso 44 ia ainda a
tempo de se tornar no vigésimo Presidente da República Portuguesa. Blindado em
Belém pelos poderes presidenciais o futuro parecer-lhe-ia um lugar seguro e
cheio de oportunidades. Mas a Geografia não só conta como pode ser decisiva. E
por isso um dos mais interessantes dilemas da nossa actualidade é sabermos se
em Portugal, no século XXI, existe lugar para uma personagem como Sócrates,
sobretudo para a personagem em que Sócrates se está a tornar.
Assim nos
próximos meses a situação do antigo primeiro-ministro terá politicamente de se
clarificar: ou Sócrates perde influência política e vai-se tornando numa
personagem exótica mais adequada à Venezuela chavista ou à Argentina de
Kirchner do que a um país da UE. Ou, pelo contrário, consegue impor-se,
transformando o seu caso numa questão política e, dotado de uma linguagem
contra o sistema, mobiliza os seus fiéis para uma alteração desse mesmo
sistema, alteração essa feita à medida da sua vontade e sobretudo dos seus
problemas.
Qualquer uma
destas hipóteses passa em primeiro lugar pelo PS. Aliás já há algumas semanas
que Sócrates centra toda a sua pressão sobre o PS. A recente ‘entrevista que
não é uma entrevista’, tal como as cartas da prisão, não passam de peças desse
medir de forças entre Sócrates e a liderança socialista. Sócrates, que foi
mestre na capacidade política de acelerar o tempo e reproduzir o frenesi dos
processos revolucionários – era sempre mais um facto, mais um acontecimento,
mas uma causa, mais uma inauguração… –, está agora nas mãos do tempo dos
outros: o tempo das investigações e o tempo da agenda de António Costa. Essa
sim é a sua verdadeira prisão e é contra isso que escreve e protesta.
O que está em
causa para Sócrates é sobretudo a necessidade de ir dizendo publica e
notoriamente que o partido não se pode esquecer dele e não o pode deixar só nas
mãos da justiça, entregue a esse tempo e a esses formalismos que o exasperam. Caso
isso aconteça (ou Sócrates considere que tal está a acontecer, o que não é
necessariamente a mesma coisa) o Largo do Rato tem de se preparar para o pior. Por
exemplo, para uma divisão em torno do apoio à candidatura presidencial de
António Guterres. No limite, Sócrates pode acentuar as clivagens dentro do
próprio partido.
Ao querer
transformar a sua prisão num caso político, Sócrates, muito mais que destruir o
juiz Carlos Alexandre, pretende sim comprometer o PS com a sua defesa e
destruir a estratégia de Costa de separar o Sócrates da justiça do Sócrates da
política. Tudo foi e é política é o que dizem as cartas, as entrevistas, as
mensagens que chegam de Évora. Isto é aquilo que Costa menos queria ouvir. Mas
seja por carta, mensagem, entrevista que não é entrevista… os recados vão
continuar a chegar ao Largo do Rato. Tal como nas missas da nossa infância não
havia casamento, funeral ou baptizado em que São Paulo mais os seus recados aos
coríntios não fossem evocados também nos próximos tempos não haverá no PS
comunicação em que não paire a sombra de Sócrates.
Curiosamente este
acentuar da deriva populista de Sócrates pode estar a funcionar como um bom
serviço a Portugal. Afinal a reacção de Sócrates à sua detenção e em boa parte
toda a sua actuação desde o início do seu segundo mandato, levaram a que o
antigo primeiro-ministro ocupasse com estrépito o espaço da demagogia
geralmente ocupado pelos radicais. E por via dessa deslocação do populismo para
o centro podemos estar a ser poupados ao desgaste resultante da actividade de
partidos extremistas como o Podemos ou o Syriza.
Sócrates trouxe
as técnicas dos radicais para o centro. Afinal quem em Portugal senão Sócrates
levou e leva ainda ao limite o discurso do desconcerto praticado habitualmente
pelos líderes dos partidos radicais na Europa? Quem melhor do que Sócrates
procurou nos últimos anos subverter as regras de funcionamento das instituições
democráticas enquanto usava e abusava de todos os garantismos da democracia?
Só que com
Sócrates, e ao que contrário do que acontece com os líderes desses partidos
radicais, o objecto do discurso populista não é a economia ou a política mas
sim, como é característico da América Latina, o próprio líder. O que faz, o que
fez. O que disse: é a entrevista que não é uma entrevista mais a luta pela
liberdade de expressão. O empréstimo que não é um empréstimo mas sim um acto de
generosidade entre gente solidária. A casa de luxo em Paris que afinal não é de
luxo ou que sendo de luxo não era dele… E sempre aquela milícia de mão na anca
a justificar o injustificável mas que se vissem os mesmos actos a ser praticado
por outros logo exigiriam que rolassem cabeças. Qualquer semelhança com a
Argentina não é coincidência.
Sócrates precisa
de falar para mostrar que existe e que mantém poder de influência. Quando já
tiver dado entrevistas que não são entrevistas a todas as televisões, rádios e
jornais passará para qualquer outra coisa que mantenha o seu nome nas primeiras
páginas. No dia em que sair dos grandes títulos Sócrates sabe que já perdeu. Não
na guerra que mantém com a justiça mas sim na que trava pela sua sobrevivência
política. Mais do que a prisão o que lhe é intolerável é tornar-se
politicamente dispensável. Isso nunca esteve nem está
nos seus planos.
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