O martírio do preso número 44
José Manuel
Fernandes / 4-1-2014 / OBSERVADOR
Não sou hipócrita: um ex-primeiro-ministro será sempre julgado na praça
pública, e como se vê meios de defesa e palco não lhe faltam. Falta-lhe é
capacidade para nos fazer acreditar no inverosímil.
Existe em Portugal
um “poder obscuro”, de “puro arbítrio e despotismo”. Esse poder impõe uma
“limitação infundada e desproporcionada de direitos fundamentais” mas “não
durará”, pois “é precário como todos os poderes assentes no medo”.
Este diagnóstico
não foi feito por José Sócrates antes do 25 de Abril, período onde não se lhe
conhece nenhuma actividade de resistência ou de oposição. Foi feito agora, 40
anos depois da revolução, num regime em que as últimas modificações importantes
das leis penais foram feitos num período em que ele próprio era um
todo-poderoso primeiro-ministro, com mais poder concentrado no seu círculo de
íntimos do que qualquer outro primeiro-ministro da democracia.
Os sinais de que
José Sócrates estava a preparar-se para se apresentar como um mártir da
liberdade já estavam por aí, mas nunca se tinham manifestado de forma tão
aberta como nas respostas que, esta sexta-feira, deu a algumas perguntas da
TVI. Na carta que escreveu a Mário Soares, por exemplo, invocou por duas vezes
René Char, um poeta francês que também foi um resistente, e citou uma passagem
do seu diário dos tempos do maquis, “Feuillets d’Hypnos”. O paralelo com a sua
própria condição era óbvio, mesmo que ainda não explícito.
Certas almas
mostraram-se solidárias, quase atormentadas. Aconteceu mesmo a um colunista, ao
passar pelo Natal em frente à prisão de Évora, dar-lhe para recordar o destino
do seu pai, várias vezes preso pela PIDE. Faltou-lhe apenas dizer o que veio
agora proclamar o preso número 44: “este processo, pela sua natureza, tem
contornos políticos. E digo mais: este processo é, na sua essência, político”. Ou
seja, ele, José Sócrates, é um preso político, um resistente que se preocupa
com “o poder, os seus limites e o seu exercício”.
É sempre possível
haver inocentes presos. Direi mesmo que está sempre a acontecer. Há até
inocentes que são condenados. O que é mais raro é alguém sobre quem recaem
fortes suspeitas considerar que, no fundo, tudo não é mais do que política. Porque
é isso que está claramente escrito nas respostas que enviou para a TVI, até por
nelas referir que desconhece “as motivações deste estranho processo sem
indícios nem provas”. Mais: por insinuar a “suspeita de perseguição política”.
E aqui chegamos
ao ponto em que esta missiva acaba por ser um acto falhado. É que se é possível
admitir que neste processo não existam ainda todas provas, ou algumas provas
sejam frágeis, o país inteiro sabe que se há coisa que não faltam são indícios.
Na verdade só alguém como José Sócrates pode pretender que, depois de ter dito
que era a mãe que lhe pagava algumas despesas, depois de ter afiançado que
sobrevivera em Paris graças a um empréstimo da Caixa-Geral de Depósitos,
acreditemos agora que era afinal um benemérito amigo que lhe emprestava
dinheiro, empréstimo que tenciona pagar “apesar da informalidade da nossa
relação”.
O antigo
primeiro-ministro sempre foi assim (há mesmo quem testemunhe discussões na sua
adolescência em que já era assim): tem sempre um argumento novo, tem sempre uma
desculpa nova, passa sempre ao ataque, não tolera que não se aceite a “sua
verdade” mesmo quando a relação desta com a verdade verdadinha é muito, muito
longínqua.
O que este “preso
político” nos conta agora é que está a ser perseguido porque as autoridades
judiciais não acham normal que um seu amigo de mais de 40 anos tenha acumulado
tantos milhões apesar de não se perceber como; que não acham natural que esse
amigo lhe tenha emprestado, sem recibo ou qualquer documento ou registo,
centenas de milhares de euros para despesas correntes, dívida que certamente
pagará apesar de ele, José Sócrates, garantir que não tem fortuna; que não
acham normal que as transações entre estes dois velhos amigos tivessem tomado
por regra a forma de notas dentro de um envelope (as malas de dinheiro são um exagero,
meu deus!), apesar de no país, no século XXI, mesmo os remediados dos
remediados utilizarem cheques, cartões e transferências bancárias (o
primeiro-ministro do “choque tecnológico” é afinal um conservador que prefere
guardar o dinheiro no colchão); que também não acham normal que um empresário
com negócios banais em Portugal tenha oportunamente decidido realizar um
investimento num andar “a precisar de obras” em Paris, mesmo a tempo de o
emprestar ao amigo que, parece, estava com “algumas dificuldades de liquidez”;
e por aí adiante.
Haverá gente
capaz de acreditar sempre na verdade do engenheiro, haverá gente capaz de negar
sempre mesmo os mais gritantes indícios, haverá gente capaz de jurar sempre
pela sua inocência. Não faço parte desse grupo. Não creio que esteja inocente. Não
acredito na história da carochinha.
Mas adiante, que
há mais pontos importantes nas suas respostas. Em especial a ideia de que há em
Portugal um poder intolerável: “o poder de deter para interrogar” e “o poder de
prender preventivamente”. Ora aqui mistura-se o que é razoável debater – será
que em Portugal o processo penal dá demasiados poderes às polícias, aos
procuradores e aos juízes, apesar de por regra sempre se ter dito que dava era
muitas garantias aos acusados? – com o disparate atoleimado e pessoalizado.
É por isso que.
apesar de estes momentos nunca serem os mais indicados, pela sua carga
emocional, para discutir reformas no sistema, não posso deixar de acrescentar
umas breves notas:
Não sei se se
deve restringir mais as condições da prisão preventiva, mas noto que, ao
contrário do que tem sido sugerido, se trata de um regime menos utilizado hoje
do que no passado: em 1996 havia 4.977 reclusos em prisão preventiva, em 2013
já só havia cerca de metade, 2.592.
Não me parece
correcto dizer que em Portugal, e neste caso concreto, se “prende para
investigar”: José Sócrates estava a ser investigado há mais de um ano e nesse
período nunca teve qualquer limitação à sua liberdade de movimentos.
Repugna-me a
ideia de qualquer limitação à liberdade de expressão, mesmo de um preso, mas
antes de formular juízos definitivos recomendo que se dê atenção à leitura mais
cautelosa de Francisco Teixeira da Mota (um advogado da liberdade de expressão
por excelência), que escreveu que, “provavelmente – ignoramos as diligências de
prova em causa – haverá motivos para justificadas restrições na liberdade de
expressão do ex-primeiro ministro enquanto durar a prisão preventiva”. Só que,
“em abstracto, parece duvidoso que tais motivos possam justificar uma total
proibição das entrevistas”. Pelo que se está ver, também de pouco serviu.
Cinco quilos por
mês é uma limitação intolerável do direito a um recluso receber encomendas? Talvez.
Mais intoleráveis pareceram-se as declarações incendiárias de um advogado que,
afinal, desconhecia a lei.
Vivermos num
regime que pode ser aperfeiçoado, num regime imperfeito como são sempre os
regimes democráticos, não autoriza ninguém a atacá-lo como se fosse uma
ditadura só porque, afinal, “eles”, “essa gente”, teve “a coragem” de o
prender.
Neste caso,
muitos antes de qualquer violação do segredo de justiça, o que nunca faltaram
foram indícios, alguns deles deixados de forma impante, quase exibicionista,
como se a impunidade estivesse garantida para todo o sempre, como se certas
cúpulas amigas da máquina judicial estivessem lá para a eternidade. E se não
sei se “falta provar rigorosamente tudo” (mas desconfio que não), essa
fanfarronada só reforça o meu desejo, a minha exigência, de que a investigação
criminal e a justiça actuem de forma rigorosa e competente.
De resto, não sou
hipócrita: um ex-primeiro-ministro será sempre julgado na praça pública, e como
se está a ver meios de defesa e palco não lhe faltam. Falta-lhe é capacidade para
nos fazer acreditar no inverosímil.
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