OPINIÃO
TAP: o buraco negro
Ou paramos com isto, ou vamos matar a economia toda e
transformar toda a população da aldeia em zombies. Como no filme do Miguel
Angel Viva e do Filipe Melo.
Susana Peralta
1 de Outubro de
2021, 0:16
Só há um filme de
zombies português. Chama-se I’ll see you in my dreams, foi produzido por Filipe
Melo e realizado por Miguel Angel Vivas. Numa conversa com o PÚBLICO em 2003,
Filipe Melo explicou que no filme “quem morre, acaba por aparecer novamente
pouco tempo depois, com o objetivo de chatear e matar os humanos todos e
transformar a população da aldeia em zombies”. O Filipe Melo é um ótimo
economista acidental, porque não disse isto pensando em empresas, mas parece. É
que as empresas zombie são como os zombies do Filipe. Querem ver?
Os zombies do
I’ll see you in my dreams são humanos que morreram e regressaram como
mortos-vivos, ou walking dead, na expressão inglesa que traduz na perfeição a
ideia dos mortos que andam por aí. As empresas zombie também são assim. Estão
mortas, mas alimentam-se do sangue (que é como quem diz, dinheiro), alheio para
não morrerem (que é como quem diz, falirem). Uma empresa zombie vive de dívida:
sabemos que temos uma zombie nas mãos, se a empresa tiver um montante de dívida
elevado, quando comparado com o lucro operacional. Esta definição é incompleta,
porque a maior parte das empresas criadas há pouco tempo estão muito
endividadas e porque temos de distinguir empresas com problemas pontuais das
que vivem cronicamente de sugar sangue dos vivos. Por isso, para ser zombie, a
empresa tem que ter dívida em excesso durante um determinado número de anos
consecutivos e também tem de ter uma certa idade (por exemplo, a OCDE considera
três anos consecutivos com dívida excessiva em empresas com mais de dez anos).
Há um artigo na
série de estudos sobre produtividade da OCDE sobre zombies portuguesas.
Chama-se Fear the walking dead: zombie firms, spillovers and exit
barriers e foi escrito pela Ana Fontoura Gouveia e pelo Christian
Osterhold. Os autores calculam que entre 2008 e 2015 a percentagem de zombies
na economia variou entre 6% e 8,5%. No entanto, estes números não revelam a
dimensão do problema, porque as zombies são maiores do que as outras empresas.
No período analisado, o número médio de trabalhadores de uma zombie era de 23
(comparado com 15 nas restantes), os ativos valiam o triplo e as vendas eram
70% superiores. Por esta razão, há setores de atividade onde mais de 30% do
capital e 25% do trabalho estão enterrados em zombies.
Os zombies do
Filipe Melo têm o objetivo de chatear os vivos, tal como as empresas zombie.
Ana Fontoura Gouveia e Christian Osterhold estimam que o investimento das
empresas não zombie é afetado negativamente nos sectores de atividade nos quais
as zombie têm maior peso. E mais: mostram que este efeito negativo também afeta
as empresas mais produtivas de cada sector. A razão é simples. Por cada
trabalhadora cujo esforço e criatividade está ao serviço de uma empresa zombie,
há uma empresa viva que perde a oportunidade de beneficiar desse talento. Por
cada euro que os bancos ou o orçamento de estado canalizam para uma empresa
zombie, há uma empresa viva que perde uma oportunidade de investir ou de fazer
face a uma necessidade de tesouraria que lhe permite resistir a uma adversidade
pontual e, quem sabe, crescer.
O artigo sobre as
zombies portuguesas estima que o sector com maior peso de capital e trabalho
enterrados em empresas zombie é (ou era, até 2015) o têxtil. E não, não fala de
empresas individuais; nem podia, porque usa dados anónimos disponibilizados à
comunidade académica para fins de investigação. Eu é que me tenho lembrado do
estudo nestes dias, em que nos preparamos para inscrever no Orçamento do Estado
para 2022 uma injeção de mil milhões na TAP, anunciada por João Leão esta
semana.
Uma empresa
zombie é sempre má, mas estas que vivem de dinheiro dos contribuintes são ainda
piores. O Governo bem pode tentar convencer-nos de que as dificuldades da
companhia se devem à pandemia, mas os factos não corroboram essa versão. A
pandemia não ajudou certamente, porem a verdade é que a TAP é cronicamente
deficitária. Entre 2008 e 2019, teve 900 milhões de prejuízos acumulados.
Aliás, no século XXI contam-se pelos dedos de uma mão os anos de resultados
positivos (2003, 2004, 2006, 2007, 2017). Já nos anos 90 andava de vermelho em
vermelho. De resto, este não é o primeiro resgate que fazemos à TAP com os
nossos impostos. Em 1994, injetámos mil milhões. Na altura, a TAP tinha
capitais próprios negativos desde 1980. Esta injeção pública foi acompanhada do
indispensável plano de reestruturação da companhia, que ia rapidamente
encaminhá-la para uma rota de resultados positivos. Onde é que já ouvimos isto?
Chegou 2015, ano da privatização decidida pelo Governo de Passos Coelho, e a
TAP tinha (supresa!) 500 milhões de capitais próprios negativos e uma dívida
superior a mil milhões.
Veio a pandemia.
Em julho de 2020, o Governo chegou a acordo com os acionistas privados e
aumentou a participação na TAP de 50% para 72,5%. Este acordo envolvia um
empréstimo de 1,2 mil mihões de euros, para além do pagamento imediato de 55
milhões. Em maio de 2021, foram mais 460 milhões. Em troca, passámos a deter
92% do capital social da empresa. Parabéns a nós todos: somos donos de uma
empresa com valor negativo. Em julho, o Governo voltou a pedir autorização a
Bruxelas para injetar mais 300 milhões. De ajuda em ajuda, a conta de 2021
salda-se em 970 milhões. É engraçado que no relatório do OE 2021 a única
menção à contingência de injetar dinheiro na TAP falava de 500 milhões de
euros a título de “valor previsto para garantia”, sem detalhe de cenários de
reestruturação, nem de mercado, nem de nada. Nem sequer o valor certo. O que me
leva a duvidar da razoabilidade dos mil milhões anunciados por João Leão para
2022. Aliás, a UTAO já avisou que andamos em terreno arriscado: “é plausível
afirmar que o processo de reestruturação da TAP, nos próximos anos, constitui
um risco orçamental e financeiro descendente não negligenciável”.
Esta estratégia
de ir ajudando a TAP só-mais-esta-vez, utilizando pretextos vários, sempre à
espera de que daqui a três ou quatro anos ela volte aos lucros, porque vai ser
reestruturada e desta-vez-é-que-é-mesmo-um-plano-infalível, tem um nome.
Chama-se falácia do custo afundado, ou falácia do concorde. Consiste em pensar
“já gastámos isto tudo, não vamos desistir agora”. Com base na mesma falácia,
os governos inglês e francês foram despejando dinheiro em cima do Concorde,
projeto cronicamente deficitário, até descontinuarem a operação comercial deste
avião supersónico em 2003. Estima-se que os contribuintes britânicos tenham
subsidiado cada passageiro num voo comercial do concorde em 3300 libras.
Numa entrevista
ao jornalista Jorge Eusébio, da agência Lusa, eu disse aqui há dias que a TAP é
um buraco negro. Um sorvedor eterno dos nossos escassos recursos. Ou paramos
com isto, ou vamos matar a economia toda e transformar toda a população da
aldeia em zombies. Como no filme do Miguel Angel Viva e do Filipe Melo.
A autora escreve
segundo o novo acordo ortográfico
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