ANÁLISE
Um “bloco central” informal talvez não seja uma má ideia
Hoje, na Europa, a fragmentação política e a ascensão dos
extremismos têm recomendado coligações entre forças moderadas. Portugal não
pode ser uma excepção.
Teresa de Sousa
31 de Outubro de
2021, 6:10
https://www.publico.pt/2021/10/31/politica/analise/bloco-central-informal-nao-ma-ideia-1983124
1. Cabe aos
partidos adaptar as suas agendas às necessidades do país e é este o principal
critério que deve orientar o Presidente quando marcar a data das eleições
antecipadas. Aliás, foi ele próprio que disse que as convocaria, se o cenário
de chumbo do Orçamento se confirmasse, o mais depressa possível. O mais
depressa possível não é, naturalmente, amanhã. Temos o Natal. E seria
desejável haver uma campanha serena em que cada força política apresentasse os
seus programas e as soluções que tem para garantir a governabilidade, numa
paisagem política que está hoje muito mais fragmentada e volátil do que alguma
vez esteve em democracia. Ou seja, a clarificação do PSD é um dado importante.
Mas, ao decidir
receber Paulo Rangel no dia em que o destino do país se decidia no Parlamento,
Marcelo reduziu significativamente a sua margem de manobra. Percebe-se o dilema
que enfrenta. De todas as vezes que um Presidente optou pela dissolução do
Parlamento, o resultado das eleições provou o acerto da sua decisão, oferecendo
ao país um quadro parlamentar diferente do anterior e em condições de encontrar
uma solução governativa estável. Foi assim das sete vezes em que isso aconteceu
(1979, 1983, 1985, 1987, 2001, 2004, 2011). Desta vez, ou o PSD e a direita
democrática conseguem um resultado eleitoral que lhes permita constituir um
Governo com apoio parlamentar maioritário, ou o Presidente fica com um enorme
problema nas mãos por ter recorrido à “bomba atómica”, apenas prevista em caso
de estar em causa o bom funcionamento da democracia, sem conseguir uma nova
solução governativa.
Entretanto, a
forma como geriu este momento de crise, com iniciativas junto dos partidos
muito pouco avisadas para quem tem como dever manter a distância institucional
para ter total liberdade de acção (o caso da Madeira é mais grave do que o de
Rangel), a forma como “impôs”, muito antes do tempo certo, o cenário da
antecipação das eleições, a sua constante intervenção na esfera pública,
criando um ruído desnecessário que apenas desorienta a opinião pública, corroeu
bastante a imagem positiva que trazia do primeiro mandato. Paga agora um preço
pelo estilo que resolveu introduzir no exercício de funções – bastante
facilitado pela estabilidade política garantida pela “geringonça” e pela
fidelidade do Governo de António Costa aos compromissos europeus.
2. Acresce que a
desculpa de que apenas quis, com a ameaça de eleições, pressionar o PCP e o
Bloco a viabilizarem o Orçamento, revela uma coisa difícil de entender da parte
de alguém que sempre “respirou” a política nacional: um desconhecimento da
rigidez ideológica do PCP. O Partido Comunista não é igual aos outros partidos
políticos das democracias ocidentais, mesmo que tenha adoptado uma posição mais
realista, desde que os ventos da História condenaram o comunismo à
extinção. Continua, na sua essência, a ser um partido anti-sistema,
anticapitalista, anti-imperialista, antieuropeu e anti-NATO. Deixou algumas
dessas coisas de lado para poder ter um papel mais relevante na melhoria da
vida das pessoas que diz defender.
No PCP, os sindicatos ganharam a luta interna. Jerónimo
perdeu. Enquanto houver administração pública e empresas públicas, pode
paralisar sectores fundamentais
As sucessivas
derrotas eleitorais tê-lo-ão levado à conclusão de que a sua sobrevivência
depende de um governo de direita que lhe permita ocupar a rua de novo, devolver
o PS à “direita” e retomar as suas velhas bandeiras políticas. Conseguiu
sobreviver, ao contrário dos seus congéneres do Sul da Europa, porque manteve a
rigidez ideológica, que, aliás, já lhe vinha do passado soviético. Os
sindicatos ganharam a luta interna. Jerónimo perdeu. Enquanto houver
administração pública e empresas públicas, pode paralisar sectores fundamentais
– da CP à Saúde, passando pelas escolas.
O Bloco é outro
caso. A sua relação com o PS é mais conturbada porque lhe está mais próximo.
Talvez tenha ficado frustrado porque o PS, depois das eleições de 2019, não lhe
ofereceu uma solução “à espanhola” em que pudesse ocupar uma ou outra pasta no
Governo a partir de um acordo de legislatura. O partido-irmão Podemos faz
parte do Governo de Pedro Sánchez. Costa deveria ter-lhes oferecido essa
possibilidade? A resposta não é fácil. Seria preciso que o Bloco tivesse feito
um caminho mais visível em direcção à normalidade das democracias liberais,
incluindo abandonar a ideia de que é pró-europeu, mas de “outra
Europa”. Provavelmente, o primeiro-ministro sabia que um tal “programa”
não era compatível nem com os compromissos europeus do país – inegociáveis –
nem com a moderação necessária em questões fundamentais para a economia como,
por exemplo, a legislação laboral.
O Bloco continua
a ser um partido muito pouco transparente no seu funcionamento interno, o que
não ajuda. Sabemos muito pouco do que se passa lá dentro, ao contrário do que
acontece com a generalidade dos partidos das democracias. Acreditou até ao fim
que o PCP viabilizava o Orçamento? Porque não se vê que as eleições lhe
permitam recolher os votos suficientes para exigir mais ao PS, no caso de vir a
ser, de novo, o partido mais votado. Ou acreditou que uma eventual derrota de
Costa abriria mais depressa o caminho à ala esquerda socialista, encabeçada por
Pedro Nuno Santos, estendendo a passadeira vermelha que os levaria ao poder?
Esse risco existe, embora ténue. Diz a história do PS que sempre soube resistir
às tentações da sua ala esquerda.
3. António Costa
enfrenta as eleições, podendo apenas contar consigo próprio e com a sua
capacidade para mobilizar o voto útil dos que querem um governo de
centro-esquerda e dos que consideraram, à esquerda do PS, o comportamento do
Bloco e do PCP irresponsável. Como admitiu no Parlamento, viu frustrada a sua
ideia de pôr termo ao “muro” que desequilibrava a alternância democrática em
desfavor do PS, ao excluir do “arco da governação” dois partidos à sua
esquerda. Defendeu esta ideia muito antes de se concretizar. Acreditou,
porventura, que os ventos da História teriam uma influência positiva no PCP e
no Bloco, fazendo deles dois partidos capazes de conviver bem com o sistema
demo-liberal. Enganou-se?
Ficou de novo tudo em aberto. O primeiro-ministro joga
tudo nestas eleições. Continuará a ocupar o centro do palco? Marcelo gostaria
de lhe ficar com o lugar
Durante seis
anos, a experiência resultou, deu estabilidade ao país, permitindo-lhe gerir o
Governo sem nunca pôr em causa, no essencial, o programa socialista ou os
compromissos europeus. A credibilidade que conseguiu junto dos parceiros
europeus e dos mercados é indesmentível. Houve a pandemia, que suspendeu
internamente atitudes mais radicais. Houve uma mudança histórica na Europa,
quando, em Junho do ano passado, foram aprovados os novos mecanismos para
enfrentar esta crise gigantesca, dando a mão às economias mais frágeis e mais
vulneráveis e às suas consequências económicas e sociais, entre os quais o PRR.
Quando António Costa se preparava para colher os frutos do seu trabalho nas
duas frentes – interna e europeia –, a corda rompeu-se. Ficou de novo tudo
em aberto. O primeiro-ministro joga tudo nestas eleições. Continuará a ocupar o
centro do palco? Marcelo gostaria de lhe ficar com o lugar.
4. À direita, os
problemas não são menores. O PSD tem de resolver a questão da sua liderança,
mas tem também de esclarecer os eleitores sobre até onde está disposto a ir
para governar. Aceitar o apoio parlamentar do Chega? Rangel foi claro. Rio
talvez tenha começado a perder a sua liderança quando patrocinou a solução
encontrada nos Açores para tirar o PS do poder. O cordão sanitário em volta do
Chega é um imperativo democrático.
O PSD ficou
deslumbrado com a vitória de Moedas em Lisboa, acreditando que tinha o poder ao
alcance da mão. Não é bem assim. Até agora, ainda não conseguiu apresentar-se
ao eleitorado com uma base programática mobilizadora, que não seja apenas
diabolizar o Governo de Costa. Fará o que é preciso para voltar a atrair o
centro? A dúvida é legítima. O Governo de Passos Coelho não foi assim há tanto
tempo e os “passistas” rodeiam Rangel. Ora, Rangel e Rio não divergem em quase
nada na sua concepção do que deve ser um partido de centro-esquerda. Rangel
pode querer vestir um fato mais radical, convencido de que é isso que a direita
quer. Mas isso pode ter um preço, alienando parte do centro.
5. Entretanto,
com os sinais de crise que se começam a adensar sobre a retoma europeia, da
qual a economia portuguesa depende para respirar, manter o país em compasso de
espera, sem Orçamento e sem solução clara de governo, não é propriamente uma
ajuda. Talvez por isso – e só por isso –, seja qual for o partido vencedor, um
“bloco central” informal pode vir a ser determinante para o nosso futuro. Hoje,
na Europa, a fragmentação política e a ascensão dos extremismos têm recomendado
coligações entre forças moderadas. Portugal não pode ser uma excepção. Era uma
oportunidade para Marcelo, porque querer tirar partido de crises sucessivas de
ingovernabilidade é pura ilusão.
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