OPINIÃO
Os perigos do vazio
Entrámos num período em que a política portuguesa e o seu
centro de gravidade se encontram por definir e redesenhar. Os portugueses têm
agora de escolher entre dois princípios: o do afrontamento e o da agregação.
António Barreto
30 de Outubro de
2021, 6:25
https://www.publico.pt/2021/10/30/opiniao/opiniao/perigos-vazio-1983077
A realização de
eleições antecipadas é evidentemente a mais útil, menos prejudicial e mais
adequada solução para os problemas dos tempos que vivemos. Ou antes, não se
trata de uma solução, mas de um caminho. Que nem todos pretendem. Já há pressões
e alusões, sobretudo por parte dos que derrubaram o Governo (nomeadamente o
Bloco e o PCP), no sentido de encontrar vias de escape: segundo Orçamento,
governo minoritário, a prazo, por duodécimos, etc. Nunca aos portugueses faltou
a imaginação para o artificial excêntrico e a catástrofe inteligente!
Apesar de
inevitáveis, a verdade é que o derrube do Governo e a dissolução do Parlamento
foram gestos inúteis e nefastos. Provocaram instabilidade e desgaste político
interno. Criaram perplexidade e receio internacional. Perturbam o funcionamento
da economia, aumentam as carências sociais, dificultam os serviços de educação
e de saúde e atrasam as respostas aos mais urgentes problemas do emprego, do
investimento público e privado e da luta contra a corrupção. Em tempos de
grandes dificuldades decorrentes da pandemia, do nosso endividamento e da crise
internacional de abastecimentos, pior não se poderia inventar! Em vez de as
fortalecer, enfraquecem-se as instituições. Mas, depois da recusa do Orçamento,
forçada pela esquerda, desejada pela direita e não enjeitada pelos socialistas,
não há outra solução razoável. E todos, infelizmente, partilham
responsabilidades.
O que falhou com
esta dissolução e com este período estranho de coligação disfarçada e de aliança
implícita foi, em primeiro lugar, a crença numa solução de esquerda, isto é,
das esquerdas. Apesar de pouco recomendável, juntar todas as esquerdas,
considerando a democracia e a liberdade como secundários, ainda é o desejo de
alguns. Também falhou a esperança de criar um duelo entre esquerda e direita.
Como falharam os projectos seja de federar a esquerda, desejo longínquo do PS,
seja de submeter os socialistas, esperança dos seus quase aliados. Também não
vingou a expectativa de reduzir a extrema-esquerda do PCP e do Bloco a
entidades facultativas, anexas ou dependentes do PS.
Foi igualmente
defraudada a hipótese de uma grande federação de direita e de centro-direita.
Inibida, pelo menos por agora, ficou também a fé num grande Centro político, moderado,
socialista da variante social-democrata, liberal e democrata-cristão nas
franjas. Entrámos assim num período em que a política portuguesa e o seu centro
de gravidade se encontram por definir e redesenhar. Quer isto dizer que os
portugueses têm agora de escolher entre dois princípios: o do afrontamento e o
da agregação.
O princípio do
conflito parece ter falhado. Dado que falhou a federação das esquerdas, também
se tornou inviável o confronto clássico entre esquerda e direita. Outros
conflitos radicais parecem igualmente afastados ou, pelo menos, incapazes de
orientar o futuro político. Por fraqueza do trabalho e por debilidade do
capital, a luta entre capital e trabalho parece distante das perspectivas mais
próximas de nós. Outro conflito possível, entre Europa e nacionalismo, não
vinga nem alimenta um projecto de futuro. A luta entre democracia e não
democracia também não parece ter muitos adeptos: à esquerda e à direita, o
Bloco, o PCP e o Chega não são suficientes para ocupar os papéis cruciais da
vida política nacional. Outros conflitos tradicionais, como os da religião
versus laicismo, ou da República contra monarquia, estão de tal modo longe da
actualidade que não servem para perturbar, muito menos para reorganizar o
sistema e a vida política. A bipolarização, sonho de tantos políticos
portugueses, é um desejo impossível.
O princípio
alternativo, o de agregação ou de união, que também pode ser de convergência ou
de aliança, encara actualmente dificuldades. A federação das esquerdas parece
impossível. A federação das direitas também. O crescimento da extrema-direita,
da direita nacionalista ou da direita populista é muito improvável. Parece que
a união só seria viável ao centro.
Mas o centro da
vida política nacional está vazio. À espera… De quem o ocupe, pois claro. Ou de
quem o liquide, em caso de conflito radical. Os portugueses têm em geral uma
atitude marialva e sectária relativamente às soluções de centro. “Bloco
central” ou “Centrão” são expressões malditas na política e no comentário nacionais.
Na Academia, é de bom-tom afirmar que o Centro é um Centro de interesses e de
corrupção. Entre intelectuais, o Centro, por bruto e plebeu, é desprezado. É
pena que assim seja, dado que as soluções “de centro” (na forma ou no conteúdo)
têm sido benéficas e salvadoras. Mas é assim! O bairrismo fanático leva sempre
a melhor, sobretudo em tempos de eleições.
Mesmo antes de
ser uma hipótese ou um tema real em discussão, já há, na direita, no CDS e no
PSD, quem recuse liminarmente o bloco central. O mesmo na esquerda, seja entre
os irascíveis comunistas e bloquistas, seja entre os moderados socialistas.
Toda a gente contra o centro! A ponto de se verem transformados em virtudes os
mais básicos defeitos da política: o sectarismo e o fanatismo. É de tal modo
arreigada esta ideia que se chega a pensar que foram as experiências de bloco
central as que mais fomentaram a corrupção. Ora, a verdade é bem diferente:
foram os governos de um só partido à direita ou de um só partido à esquerda que
mais corromperam, que mais se deixaram corromper, que mais negócios ilícitos
promoveram e que mais usaram de favoritismo e nepotismo!
Toda a gente contra o centro! A ponto de se verem
transformados em virtudes os mais básicos defeitos da política: o sectarismo e
o fanatismo
Vivemos um
momento particularmente interessante, mas também arriscado, em que dois grandes
princípios de organização da vida política, o do conflito e o da agregação, se
confrontam, não sendo previsível o resultado. Em todas as sociedades em todos
os tempos, há sempre conflito e união, há sempre antagonismo e aliança. O
problema interessante é o das proporções ou das doses de cada um. Isto é, o
império do conflito sobre a união ou do antagonismo sobre a aliança. Sem um
princípio de reorganização da vida política, há um evidente risco de deriva, de
fragmentação excessiva e de desordem pública. E certamente de estagnação
económica e de carência social. E também há momentos em que nenhum dos dois
princípios prevalece. Parece ser o caso da actualidade em Portugal.
Há gente a mais à
direita. Há gente a mais à esquerda. E o centro está vazio. Mas é aqui que
estão as soluções. Em paz, claro.
António Barreto é
colunista do PÚBLICO
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