ANÁLISE
O PCP e a “geringonça”
Os comunistas cortaram o galho em que estavam pendurados.
Regressam ao seu “esplêndido isolamento”. Continuarão a viver na obsessão do
declínio.
Jorge Almeida
Fernandes
30 de Outubro de
2021, 7:00
https://www.publico.pt/2021/10/30/mundo/analise/pcp-geringonca-1983070
A ruptura da
“geringonça” foi inesperada, mas não pode ser considerada uma surpresa. Estava
de certo modo inscrita na sua própria fundação, em 2015. Manifestou uma notável
capacidade de duração. A iniciativa partiu, também inesperadamente, do Partido
Comunista Português (PCP) e foi fervorosamente adoptada pelo Partido Socialista
(PS), de António Costa, a quem oferecia uma solução para chegar ao poder depois
de um revés eleitoral.
Costa explicou o
carácter histórico do facto: “É como se estivéssemos a deitar abaixo o que
resta do Muro de Berlim.” Os restos do muro eram a incompatibilidade das duas
esquerdas, a socialista e a comunista, após o 25 de Novembro. Mudança também
importante era o anúncio de uma nova polarização política entre duas
coligações, a da esquerda e a da direita.
Depois da Guerra
Fria, os partidos comunistas europeus seguiram percursos dispersos. Penso nos
que nos são ou foram mais vizinhos. O italiano dissolveu-se numa formação
social-democrata. O francês conheceu, a partir da era Mitterrand, uma rápida
agonia: em 2007, já só valia 2 ou 3 por cento dos votos. O espanhol teve um
papel fulcral durante a transição democrática de 1978, mas foi devorado pelos
socialistas. Hoje é um pequeno partido, dentro duma frente, Esquerda Unida, que
por sua vez se integrou no Unidas Podemos.
Depois das
aventuras do PREC, o PCP redefiniu a sua estratégia: aposta no poder
autárquico, na força sindical e, a nível nacional, numa linha tribunícia.
A função
tribunícia
O que é a função
tribunícia? O politólogo Georges Lavau definiu-a em 1981 num livro intitulado À
quoi sert le Parti Communiste Français? (Para que serve o Partido
Comunista Francês?). O PCF pretende representar a classe operária, mas a sua
influência e o seu poder são “negativos”, à semelhança do tribuno da plebe
romano, cujo poder assentava no veto. Era o porta-voz do descontentamento
social, organizava o protesto mas não queria partilhar responsabilidades de
governo. Só teria interesse em governar se pudesse ter uma posição hegemónica.
A função
tribunícia era uma alternativa à incapacidade de exercer o poder e um método de
garantir a influência política. Pode ser ao mesmo tempo perturbadora e útil à
estabilidade do sistema político: funciona como válvula de segurança para as
tensões sociais.
Em França, uma
enérgica estratégia de Mitterrand inverteu a relação de forças na esquerda, em
que o PCF era o maior partido. Convenceu o PS a aceitar um programa radical que
tornasse impossível a recusa de um “programa comum”. Impôs uma União de
Esquerda que interessava aos comunistas para alargar a representação
parlamentar via desistência mútuas: nessa altura ainda falavam em “depenar as
aves da capoeira socialista”.
E, depois, venceu
as presidenciais de 1981. O PCF não queria ir para o governo numa relação
de forças favorável ao PS, mas a radicalidade do programa de Mitterrand, no
campo social e nas nacionalizações, não lhe deixava margem para escapar e
nomeou quatro ministros. Nas legislativas que se seguiram, o PS ganhou uma
maioria absoluta esmagadora. Dois anos depois, veio o tempo das vacas magras, e
Mitterrand impôs a “viragem do rigor” do seu ministro das Finanças, Jacques
Delors, e os comunistas tiveram de continuar no executivo até 1984.
Na Itália, o
Partido Comunista escolheu ser poder, através de fusões que culminaram no
Partido Democrático (hoje no Governo Draghi). O Partido Comunista de Cunhal
tirou a lição inversa: reassumiu a função tribunícia e reforçou a ortodoxia
doutrinal. É um partido tacticamente flexível, mas nunca pensou em rupturas de
estratégia. E, até agora, sobreviveu. Mas anuncia-se o declínio.
A “geringonça”
criou junto de muitos socialistas a ideia de que o PCP estaria a mudar de
natureza. Note-se que o PCP podia fazer um acordo parlamentar com o PS, mas não
podia entrar para o governo. Colocou entre parênteses as suas teses sobre a
União Europeia, a NATO e a relações internacionais ou sobre o equilíbrio
orçamental ou sobre economia capitalista em geral. A mudança de natureza do PCP
era uma miragem. Escreveu há anos Vital Moreira: “Pelos exemplos alheios por
esse mundo fora, [o PCP] receia que mudar pode significar morrer depressa. Por
isso prefere não mudar, na esperança de adiar continuamente o fim, ou morrer
devagar.”
A exclusão do PCP
do “arco da governação” é um equívoco. Trata-se de facto de uma
“auto-exclusão”, decorrente do seu programa, da estratégia tribunícia e do
marxismo-leninismo. No já citado livro, Lavau insiste na deliberada
auto-exclusão praticada pelos dirigentes comunistas franceses, graças à sua
fixação dogmática no modelo de organização leninista, na ligação à URSS, na
retórica da construção do socialismo, no papel hegemónico da classe operária,
“o que impede as alianças políticas indispensáveis para atingir um poder positivo”.
O partido procura
sobretudo sobreviver e reforçar a suas posições, escreve Lavau. Ao mesmo tempo
condena a classe operária ao isolamento e a “um fantástico desperdício da sua
energia e da sua inteligência”.
A consequência
final da cultura tribunícia, que dificultou a integração política da classe
operária, foi perversa. Aos poucos, o seu eleitorado foi sendo atraído pelo
discurso de Jean-Marie LePen. Hoje, a União Nacional, da sua filha Marine, é o
maior partido na classe operária.
Em 2015, pela voz
de Jerónimo de Sousa, o PCP não escondeu que a sua proposta era a de uma
coligação negativa: “Uma solução política para isolar e travar a ofensiva da
coligação PSD-CDS.” O PCP conseguiu algumas “conquistas”: entre outras coisas
conseguiu travar a ameaça de privatização dos transportes colectivos, chave da
capacidade grevista da CGTP, e outros projectos que o debilitariam. E fez estas
e outras “conquistas” sem se comprometer no governo ou abdicar da sua liberdade
de acção.
O argumento que
garantia a “geringonça” – “se nos dividimos vamos todos ao fundo”– tinha um
valor muito relativo. É possível que as eleições autárquicas tenham funcionado
como um irresistível sinal de alarme para os comunistas.
Agora? O PCP
regressa ao estilo tribunício. Que ganha com isso? Os restos do muro de Berlim
voltam a erguer-se.
tp.ocilbup@sednanrefaj
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