No regresso, terra queimada, alívio e dor
Quando o fogo veio, deixaram as casas para trás com mais ou
menos vontade. Voltam satisfeitos por estarem vivos, mas rogando pragas ao
inferno que destruiu habitações, animais, terrenos, sustentos, o trabalho de
uma vida. “É que isto nunca mais se compõe!...”, dizem.
JOÃO PEDRO PINCHA (Texto) e RUI GAUDÊNCIO (Fotografia) 12 de
Agosto de 2018, 8:51
Um homem encapuzado aproxima-se e bate na janela do carro.
“Quem é você? De onde é que veio? O que faz aqui?” As perguntas surgem rápidas
e agressivas, quem as faz tem os olhos encovados e algo alheados. Dissipa-se a
desconfiança inicial com umas breves palavras e o nosso interlocutor
explica-se. Este homem, que ainda não terá 30 anos, vem de duas noites sem
dormir e passou a última a combater as chamas no alto da Fóia. Por ali há umas
quantas casas e restaurantes e uma faixa de floresta a que o incêndio não
chegou. Ele quer garantir que não vem por aí ninguém estragar o trabalho feito,
pôr fogo ao que ainda está de pé.
É quinta-feira, ainda não são 8h, e cai uma chuva miudinha
em Monchique. Na Fóia, que fica a menos de cinco minutos do centro desta vila
algarvia, o vento é forte e gelado. Apesar disso, é obrigatório estar alerta.
Já nos dias anteriores tinha havido humidade matinal e, mesmo assim, o fogo
voltara. Ainda no dia anterior de manhã se pensava que as chamas dariam
finalmente descanso a este local, mas à tarde regressaram com força. A ventania
era tão grande que os eucaliptos se inclinavam para cima da estrada e as
labaredas surgiam como que do nada. Enquanto os bombeiros e equipas do GIPS
(Grupo de Intervenção de Protecção e Socorro, da GNR) progrediam encosta acima,
junto ao Restaurante Teresinha os moradores socorriam-se de um tanque próximo
para conter reacendimentos.
O homem aponta para os eucaliptos que estão por trás desse
restaurante e conta como andou a guiar os bombeiros de fora por aqueles
caminhos. Depois pôs-se a carregar baldes de água de um lado para o outro, em
conjunto com alguns vizinhos. A dada altura, o fogo saltou lá de cima para uma
horta já a descer para o vale e foi preciso contê-lo enquanto consumia um
limoeiro, pois rapidamente podia progredir e encurralar toda a gente naquele
pedaço de estrada. Depois de uma noite de sobressalto, há que continuar a
vigia. Tão repentinamente como apareceu, o homem desaparece para um posto
invisível.
O regresso
Entretanto, nos lugares e aldeias em redor de Monchique, vão
regressando a casa os que fugiram quando as chamas se aproximaram. Desde
domingo que a GNR andou por toda a serra que ardia a retirar habitantes com uma
prioridade bem definida: evitar mortes. Não houve vítimas mortais, mas ficam
por resolver os prejuízos materiais, que podem ascender a dez milhões de euros.
“Fiquei com a minha casinha boa, graças a Deus, e safei-me.
O resto compõe-se”, comenta José Varela Duarte, que fez 78 anos precisamente no
domingo, o dia em que a guarda lhe bateu à porta. Acaba de voltar ao Brejo, um
lugar quase às portas de Monchique rodeado de vegetação, agora desaparecida. A
casinha de que fala está caiada de branco e azul, tem um pátio de cimento
virado à estrada nacional e uma gaiola com rolas a um canto. Apoiado em
muletas, José Duarte vai-se aproximando lentamente da habitação, onde ainda não
entrou porque primeiro quis olhar para a paisagem, enquanto a mulher — Maria —
conta as rolas para ver se estão todas. Ela depois afasta-se sem querer falar
com ninguém, atravessa a estrada e percorre com a vista o cenário desolador. “A
minha menina ficou muito abalada...”, desabafa o marido.
O fogo andava lá longe, na outra encosta. “Fui à cozinha
comer um pedacinho de pão e quando voltei já tinha a guarda à porta”, relata
Varela Duarte. Naqueles cinco minutos, diz, o incêndio apareceu-lhe ao caminho
como se tivesse havido um truque de magia. Foram com a GNR, primeiro para o
quartel dos bombeiros de Monchique, depois para casa do irmão, na Mexilhoeira
Grande. “Ainda ficámos ali com as tangerineiras e o diospireiro”, diz Alexandre
Marques, o irmão, que faz contas às perdas. Arderam pessegueiros, laranjeiras,
cerejeiras e ginjeiras. “Comi tantas ginjas este ano, parecia que me estava a
despedir delas”, comenta, com uma risada, a mulher de Alexandre.
O estado das coisas já lhes permite alguma satisfação. José
e Maria saíram vivos, mantiveram a casa intacta e até o velho rafeiro, já cego
e surdo, sobreviveu enfiado numa pipa.
Mário Fernandes não teve tanta sorte. Descendo de Brejo para
o vale chega-se ao lugar da Bica Boa de Baixo, onde a casa deste octogenário é
uma das afectadas. A cozinha ficou um monte de escombros porque rebentou uma
bilha de gás. “Eu queria tirar dali a bilha e o guarda disse: ‘Deixe estar que
os bombeiros estão a chegar e já tratam disso’. Então não podia ter gasto dois
minutos a tirar dali a bilha?”, questiona-se. Com o rebentamento ficou sem
fogão, frigorífico, arca, máquinas de lavar, louça. A sala de estar e os
quartos resistiram, mas as janelas e a porta de entrada não. Agora, anda um
filho de Mário a tirar medidas para pôr caixilhos novos, enquanto na rádio toca
uma canção que contrasta com a realidade em volta: O Anzol, dos Rádio Macau.
Como a restante vizinhança, Mário Fernandes também se foi
embora no domingo à tarde, à pressa, só com a roupa que tinha vestida, nem o
cartão de cidadão pôde levar. “Eu não sabia bem onde o fogo andava, sabia que
ele andava perto e, por isso, pus-me a regar por aí acima”, diz. A casa fica no
sopé de um morro inclinado onde havia algumas árvores de fruto e um arrumo para
a lenha. “Tinha aí umas 30 arrobas de batatas”, comenta.
A família mudou-se para casa de um filho em Monchique, a
muito pouca distância. Depois, o fogo chegou perto e tiveram de ir todos para
casa do neto. Andaram nisto três dias. Só agora, no regresso, é que viu que
tinha onde dormir, mas não onde cozinhar e comer. Ainda não teve coragem de
fazer contas ao que lhe vai custar recompor isto, nem sabe se alguém vai
ajudar. “Já não tenho cabeça. Tenho 85 anos, criei quatro filhos e ergui esta
casa. Tenho de lhes pedir que se informem.”
”Tão forte como este, nunca vi”
No dia em que Mário Fernandes e José Varela Duarte
respiraram fundo para encarar a realidade que o fogo lhes deixara, as chamas
corriam lestas para Silves, onde chegaram a tocar ao de leve. Quarta-feira foi
dia de aflição em Enxerim, evacuada ao final da tarde. Os lugares de Pedreira,
Pinheiro e Garrado, Gregórios e Canhestros seriam também evacuados à medida que
o incêndio para ali crescia, acompanhando mais ou menos o trajecto da N124, que
atravessa todo o concelho.
O bombeiro Mário André, da corporação de Silves, diz que
nunca se tinha deparado com algo assim. “O fogo desceu este barranco que vem da
Barragem do Arade e encontrou-se aqui com o que vinha dali, de Enxerim”,
descreve. Foi ali à porta da sua casa, em Pedreira, que as duas frentes se
juntaram. Aparecer tão de repente o fogo vindo de Silves “foi uma surpresa”,
afirma. “Ele trazia um vento à frente, com uma temperatura tão alta, tão alta,
que gerou uma coisa absolutamente anormal”, comenta.
Ironicamente, quarta-feira foi a primeira noite da semana em
que foi à cama. Entre segunda e terça esteve 24 horas seguidas a combater as
chamas na serra de Monchique, depois o comando autorizou-o a vir para casa. Andou
a regar a moradia toda a tarde, a cuidar dos cães e dos animais da capoeira,
enquanto a GNR levava a população dali para fora. A mulher e o filho foram dos
últimos a ir embora, num autotanque dos bombeiros de Silves, quando estes viram
que ali já não se podia fazer mais nada. “A GNR foi impecável, nada a apontar.
Desde anteontem que andavam aqui a tirar o número de pessoas que cá havia”,
diz.
Apesar do susto, o fogo queimou o que havia para queimar com
rapidez e seguiu adiante, no sentido de São Bartolomeu de Messines, em cuja
escola básica foram instaladas as populações deslocadas. “Ao anoitecer, às nove
e meia, dez horas, já estávamos mais sossegados. Descansar, descansar foi lá
para as 2h”, conta Mário André, que já tinha estado, como bombeiro, no grande
incêndio quem em 2003 assolou esta região. “Tão forte como este, nunca vi”,
diz, peremptório. E não quer que se leia uma crítica no que diz a seguir,
apenas uma constatação: “Em 2003 atacava-se o fogo directamente, íamos-lhes aos
cornos. Agora o combate é diferente...”
Os companheiros da corporação merecem-lhe elogios. Aponta
para o cimo de um monte, ali a 500 metros, e diz: “Aquela casa foi salva por
uma equipa de Silves, foi extraordinário.” Sobe-se a encosta por um caminho de
terra batida, de um lado e do outro só há negrume e árvores periclitantes. A
casa lá está, impávida, uma cama de rede a balouçar com a brisa da manhã.
Apenas um arrumo saiu chamuscado. Até a piscina insuflável se salvou — e ainda
tem água.
“A estrada estava a arder. Se nos enfiássemos lá era outro
Pedrógão”
Com o incêndio mais controlado, na quinta-feira já se
consegue circular pela estrada que liga os concelhos de Silves e Monchique pelo
cimo da serra. São quilómetros e quilómetros de terra queimada e ainda
fumegante, uma desolação total. Num certo ponto, ultrapassada uma curva,
vêem-se na encosta do outro lado dezenas de fileiras de pinheiros ainda jovens,
agora calcinados, e as marcas da passagem das máquinas de rasto durante a
noite.
Mais à frente avista-se um reacendimento com alguma
dimensão, numa zona completamente inacessível por terra. Tanto que, do sítio em
que se olha para o fumo espesso a subir e a tomar a direcção das praias
algarvias, estão dois carros dos GIPS e um de bombeiros parados, só a ver. Dois
helicópteros e dois aviões atacam repetidamente aquele foco. É boa sorte o fogo
ter-se reacendido mesmo à beira da Barragem de Odelouca, o que permite
controlá-lo em pouco tempo.
Por toda a serra se encontram carros de bombeiros
espalhados. Vieram do país inteiro — Almeirim, Camarate, Dafundo, Alcobaça,
Lisboa, Albufeira, Algés, Benedita, Barreiro, Montemor-o-Velho, Queluz e outros
— e trabalharam quase ininterruptamente durante uma semana.
As populações reconhecem-lhes o esforço, mas criticam o
comando das operações. “Estavam os bombeiros à beira da estrada, mas não
apagavam nada porque não lhes tinham dado ordem”, denuncia José Sequeira Lucas,
que explora um minimercado em Alferce. Esta aldeia fica num dos cabeços da
serra e ficou rodeada por chamas no domingo. Era o dia em que a terra celebrava
o seu santo, São Romão, com procissão solene, quermesse e conjunto musical, mas
a festa foi cancelada e a população recolheu à casa do povo para suportar
aquelas horas longas. “Foi a nossa sorte, se tivéssemos saído daqui tínhamos
morrido todos. A estrada para São Marcos [da Serra] estava toda a arder. Se nos
enfiássemos lá era outro Pedrógão”, comenta o lojista.
Em Alferce houve danos em 20 casas e por um triz não ardeu o
cemitério, no ponto mais alto da terra. O pomar de limoeiros, mesmo atrás do
cemitério, ficou destruído. As árvores estão carregadas com limões verdes e
pequenos, nenhum chegará a dar sumo. José Lucas, nervoso, com a voz a sumir-se,
conta que “tinha lá em cima um terreninho” que lhe “dava um rendimentozinho” e
que o cunhado “tinha uns três mil limoeiros ou mais e ardeu tudo”. Ao
minimercado chegaram ainda outras histórias: “Um homem esteve seis horas
enfiado dentro de um tanque, safou-se assim. Diz que não apareceu lá ninguém.”
Um bombeiro, que prefere não se identificar, reconhece
falhas na coordenação do combate. Sobretudo nos primeiros dias, no que toca à orientação
das corporações vindas de longe, que não conheciam os caminhos nem os terrenos
e andaram frequentemente a reboque dos moradores, que os arrastavam de um sítio
para o outro consoante as necessidades.
No mercado de José Sequeira Lucas, praticamente o único
comércio que está aberto em Alferce, cruzam-se relatos, queixas e críticas. “No
outro incêndio, em 2003, não arderam casas e praticamente não morreu gado”,
comenta um vizinho enquanto escolhe uma melancia. “Ardeu tanto animal agora! É
que isto nunca mais se compõe!... Nem uma folhinha verde aí há. Malandros d’um
cabrão...”
Saindo de Alferce, a estrada continua a subir até um lugar
chamado, acertadamente, Alto. A terra está deserta de gente, a excepção é uma
moradora já idosa que espera pela vinda do padeiro no pico do calor. “Estava a
ver meios de não sobrar aqui nada”, desabafa.
PÚBLICO -Foto
Estrada entre Silves e Monchique
”Até mete pavor lá de cima”
Na Bica Boa, ao fundo do vale monchiquense, moram Amândio
Luz e a mãe. “Comprei este pedacinho, era um desporto de fim-de-semana”, conta
o algarvio, que foi camionista durante mais de 20 anos. Nos intervalos das
viagens lá vinha, cuidar da pequena horta, das galinhas e das cabras, mas não
fazia disto vida. Aliás, o pai era rendeiro em Aljezur e a agricultura não lhe
dizia nada. “Nunca gostei daquilo, de andar no meio da terra, a arrancar
ervinhas.”
Um dia estava a transportar carga de Torres Vedras para
Portimão e ficou parcialmente cego, sem motivo óbvio. Mudou-se definitivamente
para este sítio do Brejo, onde — não disfarça — tem pouco para fazer. “Agora
estou aqui entretido. As cabras e esta bicharada [galos e galinhas] são um
entretém. Aquilo só me dá prejuízo, mas vou fazer o quê? Ver televisão todo o
dia?”
Quando o fogo se chegou a Monchique, “apareceram aqui uns
dois carros da GNR e eu disse que não, que se a gente abalasse perdia tudo”,
relata Amândio. A guarda não terá insistido muito. “Reguei tudo à volta, ainda
consegui apagar um lume que deu ali no quintal do vizinho e cá nos aguentámos.”
Naquela zona “nem um carro de bombeiros apareceu”, diz José
Manuel Albano, que anda a ajudar o vizinho Orlando a ter água em casa.
Corticeiro no Verão, limpador de matas no Inverno, Albano estima que a terra
demore a recompor-se. “Só daqui a 12 ou 13 anos é que volta a haver cortiça por
aqui, o medronho só dentro de uns três ou quatro. O que pega aí bem é o
eucalipto, mas isso é a maior praga que anda aí”, comenta.
Ainda no sábado tinha andado a tirar cortiça de uns
sobreiros, quando o fogo vinha longe. Domingo à tarde a GNR apareceu para
recolher toda a gente e ele obstinou-se. “Andei a regar tudo. Horta, árvores de
fruto, capoeira. Nem uma galinha me morreu. O fogo é uma guerra e temos de nos
defender dele como podemos”, diz. Um vizinho não conseguiu salvar os animais.
“Ainda me arrepio todo só de pensar no barulho que faziam os cães e os porcos a
morrer, sem poderem sair.”
O vizinho que está a tentar ajudar, Orlando Custódio, é
rendeiro de uma quinta e mora num anexo à casa principal. Ficou sem água, nem
banho pode tomar. “Levei uma tarde inteira aqui com esta mangueira, de uma
ponta à outra, de uma ponta à outra.” A guarda levou-o para o quartel de
bombeiros, no topo da encosta, e ele não pregou olho. “Não me deitei. Estive
toda a noite numa cadeira a ver o fogo. Até mete pavor lá de cima.”
Tem a casa cheia de cinza, tudo num desalinho. Cá fora ainda
vai havendo umas manchas de verde, mas o preto é a cor dominante. “Rocei esta
erva três vezes este ano, veja bem o tamanho dela”, diz, pisando o restolho.
Orlando precisa do que a terra lhe dá para viver, é-lhe urgente que os donos da
quinta decidam o que fazer. Por ele, repunham-se os tubos de água ardidos,
limpava-se tudo e recomeçava-se rapidamente. Mas está à vista que o
renascimento desta serra será difícil. E lento.
Sem comentários:
Enviar um comentário