"Foi a ganância e nada mais que
a ganância que deu cabo da nossa serra"
Domingos Patacho, engenheiro florestal e especialista em política
florestal da Quercus: “Aqui pensou-se numa coisa e numa coisa apenas: o lucro.
Isto é um monumento à ganância.”
Nos montes mais escondidos do Algarve há pastores, lenhadores e
destiladores de medronho que viram a serra de Monchique ser destruída ao longo
de 15 anos. O pior incêndio de 2018 não foi surpresa para ninguém
Ricardo J. Rodrigues
12 Agosto 2018 — 06:31
Foi José Casimiro Duarte quem fez soar o alarme. Andava com
os gados ao pasto quando viu o primeiro núcleo de chamas eclodir mesmo em
frente ao lugar das Taipas, nos terrenos que hoje constituem um eucaliptal
chamado Perna da Negra. Era sexta-feira, 3 de agosto, e o homem rumava a casa
com 32 cabras para o almoço.
Ali não havia rede de telemóvel, por isso correu para o alto
do barranco para ligar aos bombeiros. A chamada passou, às 13.32 eram acionados
os meios de combate para um incêndio que acabaria por se tornar o pior deste
ano em Portugal. Sete dias de fogo deram conta de 27 mil hectares de terreno na
serra de Monchique. Quase três Lisboas.
"Então agora, vão dizer outra vez que o eucalipto não
tem culpa nenhuma disto?" Aqui, no lugar de ignição do fogo, não há grande
volta a dar-lhe. Tudo o que se vê à volta do pastor é uma paisagem densa de
árvores, e todas da mesma espécie. Eucalyptus globulus, milhões deles, cobrem
todo este vale da serra.
"Quando o vento levantava eu só via as cascas das
árvores começarem a voar para diante e isto espalhou-se num instante." A
aldeia onde vive foi evacuada mas ele, à conta do rebanho, chegou atrasado e já
não teve quem o levasse da Foz do Carvalhoso. José Casimiro viu o fogo marchar sobre
tudo, foram mais as casas aqui que arderam do que as que ficaram de pé. "E
eu agarrado às chibas, a ver se não nos tocava a morte." Salvaram-se,
homem e bichos. "O vento levou outro destino."
Nos últimos dias a conversa de Monchique tem-se centrado na
organização do combate às chamas e nas suas responsabilidades políticas. Mas
quando se desce ao lugar onde o fogo começou percebe-se que há uma discussão
para fazer antes dessa. A pergunta de um cuidador de cabras pode ser mais sábia
do que a discussão de um país inteiro. "Como é que deixaram plantar aqui
tantos eucaliptos depois de 2003?"
"Um monumento à ganância"
Quem sai de Monchique e atravessa a Estrada Nacional 266 em
direção a Odemira não percebe a densidade do mato que existe nos vales que não
se veem do alcatrão. Junto à estrada o eucaliptal está queimado, sim, mas
apresenta-se ordenado, há espaço entre as árvores, os terrenos estão limpos.
Quando se desce para a Perna da Negra, no entanto, um outro cenário revela-se.
É o sétimo dia de incêndio e Domingos Patacho, engenheiro
florestal e especialista em política florestal da Quercus, vem a Monchique para
ver aquelas propriedades. Fica impressionado: são quilómetros e quilómetros de
árvores plantadas com uma intensidade fora do comum e nenhuma preocupação com a
gestão do espaço. "Aqui pensou-se numa coisa e numa coisa apenas: o lucro.
Isto é um monumento à ganância."
Nas cumeadas a floresta está mais organizada, mas no vale,
precisamente o lugar mais perigoso para o fogo, chegam a ver-se 1500 árvores
por hectare, quando a gestão eficiente aconselharia metade. "Com o tempo
quente, com os níveis de humidade baixos e com esta densidade de arvoredo
estavam aqui reunidas as condições para uma tempestade perfeita. Foi o que
aconteceu."
Domingos Patacho, engenheiro florestal e especialista em
política florestal da Quercus: “Aqui pensou-se numa coisa e numa coisa apenas:
o lucro. Isto é um monumento à ganância.”
A maioria dos eucaliptos está na segunda gestação, o que
significa que foram plantados entre o final de 2003 e o início de 2004. Meses
depois do primeiro grande fogo em Monchique, semeou-se gasolina na serra.
José Raimundo, o pastor, ouve a conversa e anuiu. Começa a
apontar uma a uma as manchas enegrecidas. Este terreno era do senhor João,
aquele era da dona Antónia, o outro do Manuel Paiva. Tinham eucalipto? "No
alto do monte sim. Mas aqui em baixo só havia sobreiro e medronho."
Um namoro antigo
A serra de Monchique foi um dos primeiros lugares do país
onde as celuloses investiram, no final dos anos 1960. Uma boa parte do
eucaliptal que há na serra pertence às antigas Soporcel e Portucel, hoje
Navigator Company. Abastece a fábrica de Setúbal e, quem atravessar por estes
dias a A2, é provável que encontre na estrada vários camiões carregados de
madeira a transportar o que escapou ao fogo.
O facto é que é da Navigator a floresta mais cuidada e
vigiada. "O problema são muitas vezes os privados que se estabelecem à
volta para alimentar esta indústria", diz o ambientalista da Quercus.
"No país estima-se agora que exista um milhão de hectares de eucaliptos,
mas apenas 155 mil são propriedade das celuloses."
Nas últimas duas décadas do século XX a exploração tornou-se
dominante em Monchique, como em muitas outras zonas do país. Ao desenvolvimento
de sementes em laboratório aliaram-se as técnicas de cultivo intensivo, que
tornaram o eucaliptal na mina de ouro da região. "Houve muita gente nessa
altura a converter o seu montado e os seus medronhais para eucaliptal",
diz Domingos Patacho. "Mas havia apesar de tudo uma paisagem mais diversa
do que agora. E, também, mais imune ao fogo."
A chamada lei do eucalipto livre, aprovada pela então
ministra da Agricultura Assunção Cristas em 2013, abriu portas à plantação
intensiva em qualquer parte, sem autorização nem aviso prévio
Os 40 mil hectares que arderam em 2003 deram um novo fôlego
à produção florestal. No final de 2003, uma única empresa comprou três mil
hectares de terreno para ali plantar eucaliptal. Mas é impossível saber o
número exato da área tomada pela espécie australiana. O presidente da Câmara de
Monchique, Rui André, queixa-se disso constantemente.
"Mesmo que conheçamos os proprietários do terreno, a
lei não nos permite saber quais as densidades, quais as zonas de corte, quais
as áreas de replantação. O mercado do eucalipto funciona sem que ninguém o
controle", diz o autarca do PSD. "Se nós soubéssemos quais as zonas
que tinham sido cortadas, por exemplo, tínhamos podido levar para lá as
cisternas dos bombeiros e impedido as chamas de avançar."
A chamada lei do eucalipto livre, aprovada pela então
ministra da Agricultura Assunção Cristas em 2013, abriu portas à plantação
intensiva em qualquer parte, sem autorização nem aviso prévio.
"E é deste conjunto de fatores que chegamos aqui, a um
cenário como a Perna da Negra", diz Domingos Patacho. "E, se nada for
feito, ele voltará a repetir-se." O ambientalista teme que nada mude com
este fogo de Monchique. Uma coisa é certa: expansão do eucaliptal não haverá.
"Apesar de, depois dos incêndios de 2017, o governo ter
proibido que novas áreas sejam colonizadas, a replantação intensiva é permitida
nas zonas onde já existia eucaliptal. Agora olhe em volta e veja o que vai
acontecer quando esta densidade calamitosa de eucaliptos for substituída por
uma nova?" A única solução, afiança, é arrancar uma parte dos eucaliptos
de vez.
A renovação da dor
"Agora chega, vou-me embora", e Maria Martins
Fernando tem de engolir o choro se quiser continuar a falar. Era a última
habitante do Canivete, um ermo de cinco habitações ao fundo daquele vale
isolado. A casa ardeu e hoje a mulher veio retirar o que sobrou dos seus
haveres. Encontra umas panelas carbonizadas, talvez se safem. Há um mealheiro
cheio de moedas de escudo. Uma boneca com que a neta gostava de brincar.
Na zona de Canivete, onde começou o incêndio de 2003 - e que
agora voltou a arder -, Maria Martins Fernando sobrevive como a última
habitante.
© Orlando Almeida/Global Imagens
Tem 71 anos e mudou-se para esta casa aos 7. Ali se casou,
criou três filhos, ficou viúva, e sempre que a descendência tentava convencê-la
a mudar-se para a vila a mulher resistia. "Esta era a minha terra, o meu
chão. Foi aqui que construí tudo o que sou. E agora tudo ardeu."
As chamas entraram pelo telhado, destruíram primeiro a sala,
depois o quarto, por fim a cozinha. Vê-la agora a passear-se pelos escombros à
procura das memórias é como olhar para uma cria que perdeu a mãe. "Isto
era o meu chão", repete.
Foi aqui, neste fim do mundo, que começou o grande fogo de
2003. Maria Fernando lembra-se bem, estava deitada a dormir a sesta quando
ouviu um barulho que parecia chuva. "Foi ali, naqueles eucaliptos atrás do
montado", e um dedo coberto de fuligem aponta para norte. "A não mais
de 200 metros."
Nessa altura ainda era vivo o marido, e tinham uma neta a
seu cargo. Apesar de o fogo ter consumido tudo, safaram-se porque à volta da
casa só existiam sobreiros, árvores que ardem mais lentamente e lhes deu tempo
para salvarem a vida à mangueirada.
Neste ano andava fora de casa quando o fogo chegou.
"Tinha ido a Monchique ter com o meu filho e já não me deixaram passar a
estrada de volta." O seu problema, mais do que a casa, eram as galinhas e
os coelhos. "Pobrezinhos dos bichos, morreram todos queimados. Eram a
minha companhia." Desmancha-se, fica uns minutos em silêncio, depois lá se
recompõe. "Sabe porque é que isto ardeu? Foi a ganância e apenas a
ganância. Foi isso que deu cabo da nossa serra."
De repente aparece António Fernando, 53 anos, o seu
primogénito. A mãe corre a mostrar-lhe o mealheiro e o homem agacha-se para
contar as moedas, era da sua infância aquele tesouro. "Foi a ganância,
pois foi", diz com uma raiva que ecoa nos montes em volta. "Foi o
eucalipto, e eu estava farto de dizer à minha mãe que aqui havia demasiado. Não
quero pensar o que seria dela se nesse dia estivesse para aqui sozinha."
Ao longo da área ardida, resta apenas uma reduzida crosta de
vegetação verde junto ao rio, refúgio para os animais sobreviventes
© Orlando Almeida/Global Imagens
António deixou a escola aos 13 anos e, desde então,
tornou-se lenhador. Trabalha apenas com sobreiro e medronheiro, não que tenha
uma paixão particular por estas árvores - é que estas foram as que conheceu
toda a vida e são as únicas que sabe trabalhar. A família tinha um hectare no Canivete,
dava para tirar uma arroba de cortiça a cada sete anos, dava para fazer licor
de medronho para consumo familiar. Foi-se.
"Em 2003 tentaram comprar-me isto para fazer
eucaliptal, mas o meu pai sempre disse que o medronho é que era o produto da
nossa terra - e eu sou teimoso. Então nunca vendi." Os vizinhos venderam
todos.
Até há 15 anos, o vale do Canivete tinha apenas um pequeno
eucaliptal a 200 metros da casa dos Fernando, o tal onde começou o fogo. Agora
está carregadinho de uma ponta à outra, e as únicas árvores que resistiam à
monotonia eram as que rodeavam aquela casa. Foram sobreiros, foram
medronheiros, agora são só toros carbonizados, parecem enormes lápis que alguém
enfiou no solo.
"Agora chega, vou-me embora", anuncia Maria
Martins Fernando com uma cara fechada. Ela e o filho carregam a carrinha com as
sobras das labaredas, entram e despedem-se de vez. A vida que sempre conheceram
acabou agora.
Uma estratégia certeira
Quando, em setembro de 2003, se extinguiram as últimas
chamas do mais imponente incêndio a que o Algarve assistiu, um novo ator entrou
no terreno. "Nessa altura, a ENCE, a maior celulose espanhola, comprou uma
série de terrenos na serra de Monchique para plantar eucalipto. Tinham uma
fábrica de transformação em Huelva e aqui adquiriam a matéria-prima",
explica Rui André, presidente da câmara. A maior parte dos negócios foi firmada
através de uma empresa chamada IberFlorestal, que ainda hoje opera na região.
Possui uma série de terrenos e assegura o corte e o transporte da madeira que
antes ia para a ENCE - e hoje ruma à Navigator. Há dias, em entrevista ao
Público, o gestor da empresa descartava responsabilidades na sobreprodução de
Eucalyptus globulus. "Não são os eucaliptos que provocam os
incêndios", disse Rui Oliveira, explicando que a empresa tinha o seu
próprio corpo de combate aos incêndios e tinha limpo os terrenos. "Ao lado
das nossas propriedades, os terrenos estavam por limpar."
Mesmo ao sétimo dia do fogo que fustigou a serra de
Monchique, na zona de Pedra Negra, onde começou o grande incêndio de 2018, era
visível a paisagem preenchida por uma grande área de plantação de eucaliptos
© Orlando Almeida/Global Imagens
Durante dez anos, nunca ninguém soube quantos hectares de
terreno ao certo a ENCE adquiriu. A resposta só chegou em 2013, quando a
celulose espanhola decidiu terminar a sua unidade de produção na Andaluzia e
anunciou num comunicado "decidir vender os três mil hectares que possuía
em Monchique a um fundo internacional." O Jornal de Negócios, nessa altura,
tentou apurar a propriedade do fundo de investimento, mas nunca conseguiu.
"O que se passou foi que, depois do fogo de 2003,
muitas famílias desistiram de viver na serra e os terrenos iam ficar ao
abandono. Então, perante a hipótese de venda ou aluguer, não hesitaram",
diz Emílio Vidigal, presidente da Associação de Proprietários Florestais do
Barlavento Algarvio - ASPAFLOBAL. A história que Maria Fernando conta em 2018 -
"agora acabou" - é o terreno fértil para as plantações de eucalipto
florescerem. À medida que se abandona o interior, ganha-se espaço para a
produção.
Emílio Vidigal representa 500 produtores. Diz que 70% são
pequenos proprietários, é a floresta explorada em minifúndio. "Os outros
30 são as empresas de celulose e duas ou três grandes famílias que têm aqui
terrenos." Foram essencialmente estes que ficaram com os terrenos que eram
da ENCE e lançaram semente de eucalipto à Perna da Negra, o lugar de ignição de
2018.
Também há dias, e também no Público, Vidigal acusou o
governo de ter há sete meses um plano de ordenamento florestal para aprovar
naqueles precisos terrenos, e do qual não obtivera resposta. O Ministério da
Agricultura não respondeu ao jornal, mas emitiu no dia seguinte um comunicado
dizendo que o que havia era uma candidatura a fundos europeus para montar esse
projeto.
Mas porque é que os produtores não construíram à partida um
eucaliptal seguro? "Estão a ser mal geridos, efetivamente. Mas o Estado
não pode continuar a não querer investir numa produção que traz riqueza ao
país. E, muito mesmo, à economia local", respondeu ao DN.
O sonho do medronho
Há um ano, João Rochato e Amanda Baganha mudaram-se para uma
casa na Taipa, mesmo em frente à Perna da Negra. Têm dois filhos, Theo e
Aurora, ambos nascidos em casa. São naturalistas e acreditaram que podiam
transformar a sua casa numa habitação autossustentável. A luz vem de um painel
fotovoltaico, a água do poço, depois tinham a horta e os animais que arderam. O
fogo trocou-lhes as voltas.
É na Taipa, zona da Pedra Negra, que João Rochato e Amanda
Baganha vivem com os filhos há um ano. Viveram um cenário de horror.
© Orlando Almeida/Global Imagens
"A horta ardeu toda, animais só sobraram os cães, e os
terrenos que tenho aqui atrás de casa estão reduzidos a cinzas", diz João
- e um desconsolo sem fim. Trabalha como técnico de manutenção na barragem de
Odelouca, mas o seu sonho era outro, era fazer uma destilaria para o medronho.
"Tenho um terreno de eucalipto, já estava plantado
quando cheguei. Deram-me 7500 euros por ele e eu, sim senhor, levem. Queria
plantar medronheiros, mas a pressão é muito grande." Ele explica: os
madeireiros andam atrás dele a dizer que lhe põem as sementes, tratam das
árvores, fazem os cortes e vendem os troncos. Ele não precisa de ter qualquer
trabalho, é esperar sentado e receber capital a cada dez anos. "É preciso
muita força de vontade para fazer outra coisa. Ainda mais que a população aqui
é envelhecida, ou então mora longe. O que é que esta gente há de fazer?"
Em junho, a Navigator anunciou um programa especial para os
proprietários dos terrenos em Monchique. Pagava 500 euros por hectare para
replantar de forma eficiente os terrenos que não atingiam a melhor
produtividade. "Esses fundos já quase se esgotaram", diz Emílio
Vidigal, "mas contamos que na próxima semana a empresa de celuloses
estabeleça um programa de apoios para continuarmos a produção."
Passaram 15 anos desde um fogo que deu cabo de tudo e agora
veio outro, que o povo diz ter sido ateado pela ganância. O presidente da
Câmara de Monchique, Rui André, diz que esta é uma oportunidade única para
inverter os erros do passado. Fala de uma série de projetos com árvores
autóctones, diz que o sobro e o medronho são futuro para o seu concelho.
Ao fim da tarde do dia em que o fogo foi dominado, quando se
preparava para levar novamente as cabras para o curral, José Casimiro, o
pastor, levantou o cajado em despedida e atirou toda a sua sabedoria para os
ares. "Queira Deus vocês não tenham de vir cá outra vez daqui a dez anos
para contar a mesma história." Deu meia volta e rumou com as chibas para
casa.
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