segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Garagem da Rua da Palma despejada até ao fim de Agosto para avançarem obras da mesquita da Mouraria





Garagem da Rua da Palma despejada até ao fim de Agosto para avançarem obras da mesquita da Mouraria
Samuel Alemão
Texto
6 Agosto, 2018

“Não sei se vou conseguir sair daqui. O prazo que nos estão a dar termina no fim do mês, mas é quase impossível cumpri-lo. Não temos a solução resolvida. Não sei o que vamos fazer da nossa vida”. A voz tranquila de David Carvalho, 53 anos, sentado do outro lado da secretária, no escritório repleto de papelada, não denuncia o grande aperto por que o empresário e a sua família passam por estes dias. O gerente da garagem Almeida Navarro, Lda, firma que ocupa o número 256 da Rua da Palma desde 1917, não sabe ainda como lidar com o que parece a inevitabilidade de uma saída forçada, até 31 de Agosto. Existia uma ordem para abandonar o local até ao fim de Julho, mas foi conseguido o adiamento por um mês.

O prazo imposto pelo senhorio, a Câmara Municipal de Lisboa (CML), para que libertem o velho edifício está relacionado com os planos de demolição do mesmo com o objectivo de levar por diante a construção da polémica obra de construção da Praça da Mouraria e da mesquita que se lhe sobreporá – projecto cujo estudo prévio, da autoria da arquitecta Inês Lobo, foi aprovado por unanimidade em reunião de vereação, a 25 de Janeiro de 2012. Na mesma situação encontram-se, pelos menos, dois comerciantes e a Confederação Portuguesa das Colectividades de Cultura, Recreio e Desporto (CPCCRD). Outro comerciante e um gabinete de contabilidade terão, entretanto, chegado a acordo com a edilidade para abandonar voluntariamente os espaços que ocupavam.

Desde que o projecto foi tornado público, em 2013, era ainda a presidência da autarquia da capital ocupada por António Costa, têm-se feito ouvir as vozes da contestação à Praça e Mesquita da Mouraria. Primeiro, pelo facto de a construção do futuro templo islâmico da comunidade bangladeshi, orçado em cerca de três milhões de euros – incluindo o valor das expropriações – , vir a ser suportada pelos cofres do município. E, mais tarde, a partir do final de  2015, pela oposição de António Barroso, proprietário de dois imóveis situados na Rua do Benformoso – também eles condenados à demolição, tal como outros dois prédios no mesmo arruamento, um municipal e outro de um particular -, descontente com o valor da indemnização que lhe coube. A CML oferecia 530 mil euros, mas Barroso reclamava cerca de 1,9 milhões.

Apesar da sua frontal recusa em resignar-se aos valores propostos, ambos os prédios de António Barroso foram alvo, a 23 de Maio de 2016, da posse administrativa por parte da Câmara de Lisboa, justificando-se tal acto com o “inquestionável interesse público” do projecto que ali se pretende levar por diante – prerrogativa legal legitimada, um mês e meio depois, a 14 de Julho, pelo Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, que assim declinou os fundamentos de uma providência cautelar então entreposta pelo empresário.

Passados dois anos, porém, o dono dos imóveis continua a dirimir argumentos com a câmara através de via judicial, com processos de cariz administrativo e cível. E a ocupar os prédios dos quais já foi formalmente expropriado. Isto apesar de, desde então, a câmara ter disponibilizado os 613.700 euros estipulados, por tribunal arbitral, como valor justo de indemnização ao inconformado senhorio.

Já após tomar conhecimento dessa decisão, ainda no verão de 2016, a Câmara de Lisboa ainda chegou a fazer uma proposta de compensação financeira a António Barroso, aproximando-se um pouco mais dos montantes pretendidos pelo proprietário expropriado: oferecia então 953.800 euros, dos quais haveria ainda que deduzir 90.700 euros de indemnizações para os inquilinos. O valor foi, todavia, recusado pelo empresário, por o considerar ainda escasso, face ao investimento por si feito ao longo dos anos e ao valor de mercado dos imóveis, naquele momento.

Uma avaliação solicitada, naquela altura, a uma instituição bancária, garantia o senhorio a O Corvo, havia estimado um imóvel em 170 mil euros e o outro num montante ligeiramente superior a 900 mil euros. As razões para o descontentamento mantinham-se, dessa forma, inalteradas. Por isso, em paralelo à contestação do processo administrativo de declaração da utilidade pública invocada na expropriação, António Barroso apresentou também uma queixa judicial cível visando impugnar a decisão da Câmara de Lisboa. Ambos os processos mantêm o seu curso.

Do outro lado quarteirão que a autarquia quer deitar abaixo, para construir uma praça e a Mesquita da Mouraria, entre os números 248 e 262 da Rua da Palma, prevalece também a indefinição. Apesar de, nesse caso, a Câmara de Lisboa ser a senhoria, também ali há que realizar o processo de expropriação – com a respectiva compensação financeira – dos inquilinos da designada “Parcela Nº1” deste processo urbanístico. E se, em teoria, tal se assemelharia mais fácil de conseguir do que no caso da Rua do Benformoso – onde, além de António Barroso, houve que indemnizar um outro particular -, na realidade, o processo tem-se revelado de difícil prossecução. Até porque alguns dos inquilinos se queixam de uma alegada postura pouco dialogante por parte do município.

A começar pela Garagem Almeida Navarro, Lda, da qual David Carvalho e a família dependem para sobreviver. “Da parte da Câmara de Lisboa, temo-nos deparado com uma atitude de quero, posso e mando e que não parece ter abertura para mudar e perceber a nossa situação. Onde é que, neste momento, com a indemnização que nos querem dar, vou conseguir encontrar uma garagem como esta?”, questiona, apontando para o recinto com cerca de 1200 metros quadrados, repleto de automóveis. São à volta de sete dezenas e ocupam quase toda a superfície, garantindo um lugar de estacionamento a muitos particulares e empresas da zona. “Muita gente aqui à volta não tem alternativa de parqueamento”, assegura David, que assegura nem sequer saber qual o tarifário do parque subterrâneo do Martim do Moniz, situado a poucas dezenas de metros. Mas tem ideia que é bem mais caro.

Uma situação que se deverá agravar, diz, se se concretizar o encerramento deste negócio, do qual a sua família tomou conta em 1992, depois de o progenitor, Armando Carvalho, regressar de terras brasileiras, onde David nasceu. “O meu pai, de 87 anos, está em casa, doente com isto tudo. Ele investiu todo o dinheiro de uma vida de trabalho lá no Brasil e agora acontece uma coisa destas. Uma pessoa fica doente com isto tudo”, desabafa o empresário garagista, sem, contudo, revelar a diferença financeira que impede o acordo com a Câmara de Lisboa. “Neste momento, não é oportuno”, diz. “Durante anos e anos, quem realizou obras de manutenção da garagem, quem aqui investiu, fomos nós. Agora, querem tirar-nos daqui para fora desta forma. A gente precisa desta espaço para trabalhar. Se isto acaba, o que é que vou fazer, com esta idade?”, interroga-se.

Também Rui Xia, empresário luso-chinês do ramo da bijuteria, diz não compreender o que considera ser “uma atitude estranha” neste processo por parte da autarquia da capital. Ocupa desde há cinco anos a loja do número 262 da Rua da Palma e queixa-se que, desde que foi notificado da necessidade de abandonar a fracção, em Janeiro de 2017, “nunca mais a câmara disse nada, não dão uma resposta concreta”. O empresário assegura que o espaço é imprescindível para a sua actividade comercial, pois “nesta zona da cidade já não se encontram lugares como este”, sobrando como alternativa a deslocação para a periferia, o que afectaria de forma substancial o negócio.

“Fizemos obras na loja, várias vezes, e agora até queríamos realizar melhorias que iam deixar o espaço mais bonito, mas não podemos”, lamenta Rui Xia, que diz pagara de renda “mais ou menos 300 euros”. Agora, e apesar de ainda ter a mercadoria dentro da loja, será forçado a encontrar novo local. “Isto é muito complicado”, desabafa. Uma outra comerciante chinesa, ocupante da loja 254A da Rua da Palma, estará a passar por uma situação idêntica, mas escusou-se a prestar declarações a O Corvo.

De igual modo, também os responsáveis pela direcção da Confederação Portuguesa das Colectividades de Cultura, Recreio e Desporto (CPCCRD) declinaram comentar a O Corvo a situação actual do processo de expropriação em curso.

O Corvo questionou a Câmara Municipal de Lisboa, a 31 de Julho, sobre o estado do projecto da praça e da Mesquita da Mouraria, mas não obteve resposta às perguntas enviadas, até ao momento da publicação deste artigo.

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