Garagem da Rua da Palma despejada até ao fim de Agosto para
avançarem obras da mesquita da Mouraria
Samuel Alemão
Texto
6 Agosto, 2018
“Não sei se vou conseguir sair daqui. O prazo que nos estão
a dar termina no fim do mês, mas é quase impossível cumpri-lo. Não temos a
solução resolvida. Não sei o que vamos fazer da nossa vida”. A voz tranquila de
David Carvalho, 53 anos, sentado do outro lado da secretária, no escritório
repleto de papelada, não denuncia o grande aperto por que o empresário e a sua
família passam por estes dias. O gerente da garagem Almeida Navarro, Lda, firma
que ocupa o número 256 da Rua da Palma desde 1917, não sabe ainda como lidar
com o que parece a inevitabilidade de uma saída forçada, até 31 de Agosto.
Existia uma ordem para abandonar o local até ao fim de Julho, mas foi
conseguido o adiamento por um mês.
O prazo imposto pelo senhorio, a Câmara Municipal de Lisboa
(CML), para que libertem o velho edifício está relacionado com os planos de
demolição do mesmo com o objectivo de levar por diante a construção da polémica
obra de construção da Praça da Mouraria e da mesquita que se lhe sobreporá –
projecto cujo estudo prévio, da autoria da arquitecta Inês Lobo, foi aprovado
por unanimidade em reunião de vereação, a 25 de Janeiro de 2012. Na mesma
situação encontram-se, pelos menos, dois comerciantes e a Confederação
Portuguesa das Colectividades de Cultura, Recreio e Desporto (CPCCRD). Outro
comerciante e um gabinete de contabilidade terão, entretanto, chegado a acordo
com a edilidade para abandonar voluntariamente os espaços que ocupavam.
Desde que o projecto foi tornado público, em 2013, era ainda
a presidência da autarquia da capital ocupada por António Costa, têm-se feito
ouvir as vozes da contestação à Praça e Mesquita da Mouraria. Primeiro, pelo
facto de a construção do futuro templo islâmico da comunidade bangladeshi,
orçado em cerca de três milhões de euros – incluindo o valor das expropriações
– , vir a ser suportada pelos cofres do município. E, mais tarde, a partir do
final de 2015, pela oposição de António
Barroso, proprietário de dois imóveis situados na Rua do Benformoso – também
eles condenados à demolição, tal como outros dois prédios no mesmo arruamento,
um municipal e outro de um particular -, descontente com o valor da
indemnização que lhe coube. A CML oferecia 530 mil euros, mas Barroso reclamava
cerca de 1,9 milhões.
Apesar da sua frontal recusa em resignar-se aos valores
propostos, ambos os prédios de António Barroso foram alvo, a 23 de Maio de
2016, da posse administrativa por parte da Câmara de Lisboa, justificando-se
tal acto com o “inquestionável interesse público” do projecto que ali se
pretende levar por diante – prerrogativa legal legitimada, um mês e meio
depois, a 14 de Julho, pelo Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, que
assim declinou os fundamentos de uma providência cautelar então entreposta pelo
empresário.
Passados dois anos, porém, o dono dos imóveis continua a
dirimir argumentos com a câmara através de via judicial, com processos de cariz
administrativo e cível. E a ocupar os prédios dos quais já foi formalmente
expropriado. Isto apesar de, desde então, a câmara ter disponibilizado os
613.700 euros estipulados, por tribunal arbitral, como valor justo de
indemnização ao inconformado senhorio.
Já após tomar conhecimento dessa decisão, ainda no verão de
2016, a Câmara de Lisboa ainda chegou a fazer uma proposta de compensação
financeira a António Barroso, aproximando-se um pouco mais dos montantes
pretendidos pelo proprietário expropriado: oferecia então 953.800 euros, dos
quais haveria ainda que deduzir 90.700 euros de indemnizações para os
inquilinos. O valor foi, todavia, recusado pelo empresário, por o considerar
ainda escasso, face ao investimento por si feito ao longo dos anos e ao valor
de mercado dos imóveis, naquele momento.
Uma avaliação solicitada, naquela altura, a uma instituição
bancária, garantia o senhorio a O Corvo, havia estimado um imóvel em 170 mil
euros e o outro num montante ligeiramente superior a 900 mil euros. As razões
para o descontentamento mantinham-se, dessa forma, inalteradas. Por isso, em
paralelo à contestação do processo administrativo de declaração da utilidade
pública invocada na expropriação, António Barroso apresentou também uma queixa
judicial cível visando impugnar a decisão da Câmara de Lisboa. Ambos os
processos mantêm o seu curso.
Do outro lado quarteirão que a autarquia quer deitar abaixo,
para construir uma praça e a Mesquita da Mouraria, entre os números 248 e 262
da Rua da Palma, prevalece também a indefinição. Apesar de, nesse caso, a
Câmara de Lisboa ser a senhoria, também ali há que realizar o processo de
expropriação – com a respectiva compensação financeira – dos inquilinos da
designada “Parcela Nº1” deste processo urbanístico. E se, em teoria, tal se
assemelharia mais fácil de conseguir do que no caso da Rua do Benformoso –
onde, além de António Barroso, houve que indemnizar um outro particular -, na
realidade, o processo tem-se revelado de difícil prossecução. Até porque alguns
dos inquilinos se queixam de uma alegada postura pouco dialogante por parte do
município.
A começar pela Garagem Almeida Navarro, Lda, da qual David
Carvalho e a família dependem para sobreviver. “Da parte da Câmara de Lisboa,
temo-nos deparado com uma atitude de quero, posso e mando e que não parece ter
abertura para mudar e perceber a nossa situação. Onde é que, neste momento, com
a indemnização que nos querem dar, vou conseguir encontrar uma garagem como
esta?”, questiona, apontando para o recinto com cerca de 1200 metros quadrados,
repleto de automóveis. São à volta de sete dezenas e ocupam quase toda a
superfície, garantindo um lugar de estacionamento a muitos particulares e
empresas da zona. “Muita gente aqui à volta não tem alternativa de
parqueamento”, assegura David, que assegura nem sequer saber qual o tarifário
do parque subterrâneo do Martim do Moniz, situado a poucas dezenas de metros.
Mas tem ideia que é bem mais caro.
Uma situação que se deverá agravar, diz, se se concretizar o
encerramento deste negócio, do qual a sua família tomou conta em 1992, depois
de o progenitor, Armando Carvalho, regressar de terras brasileiras, onde David
nasceu. “O meu pai, de 87 anos, está em casa, doente com isto tudo. Ele
investiu todo o dinheiro de uma vida de trabalho lá no Brasil e agora acontece
uma coisa destas. Uma pessoa fica doente com isto tudo”, desabafa o empresário
garagista, sem, contudo, revelar a diferença financeira que impede o acordo com
a Câmara de Lisboa. “Neste momento, não é oportuno”, diz. “Durante anos e anos,
quem realizou obras de manutenção da garagem, quem aqui investiu, fomos nós.
Agora, querem tirar-nos daqui para fora desta forma. A gente precisa desta
espaço para trabalhar. Se isto acaba, o que é que vou fazer, com esta idade?”,
interroga-se.
Também Rui Xia, empresário luso-chinês do ramo da bijuteria,
diz não compreender o que considera ser “uma atitude estranha” neste processo
por parte da autarquia da capital. Ocupa desde há cinco anos a loja do número
262 da Rua da Palma e queixa-se que, desde que foi notificado da necessidade de
abandonar a fracção, em Janeiro de 2017, “nunca mais a câmara disse nada, não
dão uma resposta concreta”. O empresário assegura que o espaço é imprescindível
para a sua actividade comercial, pois “nesta zona da cidade já não se encontram
lugares como este”, sobrando como alternativa a deslocação para a periferia, o
que afectaria de forma substancial o negócio.
“Fizemos obras na loja, várias vezes, e agora até queríamos
realizar melhorias que iam deixar o espaço mais bonito, mas não podemos”,
lamenta Rui Xia, que diz pagara de renda “mais ou menos 300 euros”. Agora, e
apesar de ainda ter a mercadoria dentro da loja, será forçado a encontrar novo
local. “Isto é muito complicado”, desabafa. Uma outra comerciante chinesa,
ocupante da loja 254A da Rua da Palma, estará a passar por uma situação
idêntica, mas escusou-se a prestar declarações a O Corvo.
De igual modo, também os responsáveis pela direcção da
Confederação Portuguesa das Colectividades de Cultura, Recreio e Desporto
(CPCCRD) declinaram comentar a O Corvo a situação actual do processo de
expropriação em curso.
O Corvo questionou a Câmara Municipal de Lisboa, a 31 de
Julho, sobre o estado do projecto da praça e da Mesquita da Mouraria, mas não
obteve resposta às perguntas enviadas, até ao momento da publicação deste
artigo.
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