quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

É mais fácil emigrar do que ser enfermeiro “num país sem sonhos”



“Quero sobretudo dar o meu contributo para o doente e sei que serei reconhecida. Não vou dizer que não gostava de voltar, mas sinceramente não acredito que as coisas mudem. Claro que isto deixa um sabor agridoce, pois é triste ter de ir para fora para me sentir valorizada, quando sei que em Portugal sou necessária. Não são só os acabados de formar que estão a sair do país. É a experiência que está a sair.”

É mais fácil emigrar do que ser enfermeiro “num país sem sonhos”
ROMANA BORJA-SANTOS 31/12/2014 – PÚBLICO

Sara Ribeiro não encontrou emprego em Portugal. Cláudia Vieira vai trocar o lugar que tem no Hospital de Valongo pelas perspectivas que encontrou na Irlanda. Foram mais de 10.000 os profissionais de enfermagem a pedir desde 2009 à ordem o documento necessário para trabalhar no estrangeiro.

Há um ano Sara Ribeiro estava de malas feitas para o Reino Unido. Depois do envio de mais de 100 currículos que em nada deram, emigrou em Janeiro de 2014 e é agora enfermeira num prestigiado hospital público de Londres. Aos 24 anos, diz que “foi preciso coragem para sair”, mas assegura que “será necessária muito mais coragem para voltar a um país sem sonhos”. Um estado de espírito semelhante ao da também enfermeira Cláudia Vieira, que nos primeiros meses do próximo ano vai para a Irlanda, deixando o seu trabalho “sem perspectivas” no Hospital de Valongo. Com 36 anos, defende que “é difícil ir para fora, mas impossível mesmo é ficar aqui”.

Tanto Sara como Cláudia engrossaram a longa lista de enfermeiros portugueses que nos últimos anos saíram do país em busca de uma oportunidade no estrangeiro. De acordo com os dados da Ordem dos Enfermeiros enviados ao PÚBLICO, no total, desde 2009, foram mais de 10.000 os profissionais de enfermagem a pedir a este organismo a chamada "declaração das directivas comunitárias", necessária para trabalhar fora do país – o que não significa que todos tenham saído. Até 30 de Novembro deste ano foram 1956 os enfermeiros que solicitaram o documento.

No entanto, se de 2009 para 2010 o número de pedidos aumentou de 609 para 1030, continuando a subir para 1724 em 2011 e 2814 em 2012, desde 2013 houve algum decréscimo. No ano passado foram feitos 2516 pedidos e neste ano, até ao final de Dezembro, tinham dado entrada 1956. Cláudia deixará o Norte, Sara é menos uma a sul. Quanto a diferenças regionais, a Secção Regional do Norte da Ordem dos Enfermeiros registou sempre mais pedidos de saída do que o centro e o Sul, com excepção de 2013 e de 2014, em que foi ultrapassada pela Secção Regional do Sul.

No caso de Sara Ribeiro a decisão foi relativamente rápida. Acabou o curso no Verão de 2013. Seguiu-se a procura de emprego. “Fiz uma lista das instituições de saúde, procurei emails, telefones, fui presencialmente aos sítios. Fui literalmente às páginas amarelas. Enviei seguramente entre 100 e 150 currículos e tentei mais no privado,porque sou formada na Universidade Católica e temos muito boa imagem nesse sector. Ao mesmo tempo fiz voluntariado no Banco do Bebé e no Re-Food”, conta ao PÚBLICO via Skype, no seu quarto em Londres, poucos dias antes de regressar a Lisboa para o Natal em família.

O resultado dos contactos foram apenas três entrevistas, uma das quais escondia na verdade um trabalho a pouco mais de 500 euros em que seria também recepcionista e faria limpezas depois das 21h. Denunciou o caso à Ordem dos Enfermeiros. Chegou a receber um telefonema para uma vaga que não atendeu a tempo e quando ligou para o número tinham passado ao nome seguinte. Uma informação sobre recrutamentos para o Reino Unido através da empresa Kate Cowhig chegou-lhe por email em Setembro de 2013. Arriscou.

“A minha ideia sempre foi fazer carreira de enfermagem em Portugal, mas quase todos os sítios pedem dois anos de experiência em meio hospitalar e se uma pessoa não consegue começar a trabalhar como pode ter experiência?” Os responsáveis pela unidade inglesa vieram a Portugal e passou as provas teóricas e práticas. Quiserem saber em que área gostava de trabalhar e disse cirurgia geral. Foi a proposta que lhe fizeram. Não adianta o valor certo, mas diz que ronda o triplo do valor para início de carreira em Portugal, que é de perto de 1000 euros. Mudou-se a 2 de Janeiro, com a primeira renda paga. A Ordem dos Enfermeiros explica que não tem os dados da emigração segmentados por faixas etárias, mas assegura que na maior parte dos casos a declaração é pedida por enfermeiros em início de carreira, mas já com alguma experiência. Ainda assim, devido ao grande número, também é comum encontrar entre os que emigraram vários casos de pessoas entre os 30 e os 40 anos já “altamente especializadas”.

Cláudia Vieira ainda não tem data certa para a mudança, mas sabe que será nos primeiros meses do ano e para perto de Dublin, pela língua e proximidade do aeroporto. Aliás, os números da Ordem dos Enfermeiros indicam que a Europa é o destino escolhido pela esmagadora maioria dos enfermeiros que decidiram sair do país, sendo Inglaterra o local mais procurado, seguido por França, Bélgica, Alemanha, Suíça e Irlanda. Ao contrário de Sara, Cláudia tinha emprego em Portugal e experiência, pelo que quis ir pessoalmente à Irlanda conhecer o sítio onde vai trabalhar, num processo intermediado pela empresa Borboleta JobAbroad, que lhe tratou da documentação e inscrição nos organismos irlandeses.

Foi só há 11 anos que Cláudia ingressou no curso de Enfermagem, a sua “paixão”. Antes foi administrativa. Trabalha desde os 18 anos. “A minha filha nasceu há 11 anos no dia do exame de Anatomia”, recorda, para justificar que é por ela que se vai mudar da cirurgia de ambulatório do Centro Hospitalar de S. João para uma unidade irlandesa dedicada a doentes com Alzheimer. “Uma das coisas que me faz ir para fora é mesmo a minha filha, ver que aqui nunca lhe vou conseguir dar uma vida. Vejo-a a crescer e a aproximar-se a idade da faculdade”, diz.

“É difícil ir para fora, mas impossível mesmo é ficar aqui. Não tenho nada a apontar aos chefes e aos colegas. Gosto do ambiente e fazemos um trabalho com muita qualidade. O que me falta é o reconhecimento profissional e o progresso na carreira. Ganho menos 300 ou 400 euros do que quando comecei a trabalhar”, acrescenta. Em breve será através das novas tecnologias instaladas pela filha no telemóvel e no tablet que vai comunicar com a menina e restante família. A ideia é que mais tarde se juntem todos na Irlanda, até porque o marido é professor de Música, “o que também não está fácil”.

No caso de Sara as coincidências facilitaram-lhe a vida. O pai do namorado ficou sem emprego em 2013 e mudou-se para Londres com a mulher. Sara preparava nessa altura o seu processo para um país de língua inglesa e acabou por ir também para Londres, sem conhecer primeiro as instalações do local de trabalho, a não ser pelos vídeos mostrados no recrutamento. Já em meados deste ano o namorado, fisioterapeuta, decidiu arriscar e conseguiu emprego como assistente de fisioterapia na mesma cidade  – mesmo como assistente ganha muito mais do que como fisioterapeuta em Portugal. Além disso, Sara vive na mesma zona onde vivem mais dez enfermeiros portugueses que emigraram na mesma altura e encontrou ali um grupo de amigos. Para quem queira casar-se e ter filhos, o hospital disponibiliza apartamentos que crescem com a família.

Em Portugal também tem a sua família, mas explica que já percebeu que não pode juntar tudo. “Tenho pena de não estar a exercer a minha profissão no meu país, mas percebi rapidamente que não podemos ter tudo. Posso ter bom tempo, praia e passear na marginal em Portugal, mas o bom emprego está aqui no Reino Unido. Não posso juntar tudo, um bom país com um bom trabalho. Foi preciso coragem para sair de Portugal, mas penso que o passo mais difícil será voltar. Será necessária muito mais coragem para voltar a um país sem sonhos. Fico triste pelas pessoas do meu país, mas os doentes também não têm dado o devido valor e a devida importância aos enfermeiros.”

 Sara refere que encontrou realidades laborais muito distintas. “Enquanto em Portugal dez enfermeiros fizerem o trabalho de 15 ou de 20, não vai haver mudança. Se tudo estiver pronto no final do turno, não se nota a diferença. Aqui não é assim, nota-se logo e são obrigados a contratar.” Em termos de trabalho, destaca a flexibilidade. Tem um horário de 37,5 horas semanais e só faz bancos se quiser, podendo gerir se quer ganhar ou não dinheiro extra. Os dias de férias são 27. Em breve vai ter também a oportunidade dese  mudar para um serviço de urologia, onde procura enriquecer a experiência para um dia chegar ao que mais quer: cuidados intensivos.

No novo serviço o turno será de 12 horas com mais folgas que lhe permitirão vir a Portugal. Destaca a “grande preparação” dos enfermeiros portugueses, mais “autónomos” e “especializados”, pelo que acabam por “ganhar a confiança dos médicos” mais depressa. Em Portugal aceitaria turnos de 12 horas? Sara diz que sim, mas admite que existiriam protestos da classe, defendendo que é “preciso aceitar” algumas cosias para negociar outras mudanças.

Por agora, Sara não tem datas fixas na agenda. Vai poupando o que pode – e “não é pouco” – num país em que deixou de “ouvir a palavra crise” a toda a hora e momento. “Somos um povo que sabe poupar, que cozinha em casa, em vez de comer fora. Mesmo com o custo de vida mais caro compro o que quero e ainda ponho de lado o equivalente a um salário de um enfermeiro em início de carreira em Portugal. Sem ouvir falar da crise, sinto-me liberta.”


Para Cláudia aproxima-se a ansiedade da mudança, mas espera encontrar “um povo parecido connosco, amável e afável” e “uma estabilidade que em Portugal nunca aconteceria”. Terá um horário semelhante ao que Sara, de oito horas diárias, num hospital que “parece um hotel, organizado, limpo, com bom ambiente e um jardim encantador”. “Quero sobretudo dar o meu contributo para o doente e sei que serei reconhecida. Não vou dizer que não gostava de voltar, mas sinceramente não acredito que as coisas mudem. Claro que isto deixa um sabor agridoce, pois é triste ter de ir para fora para me sentir valorizada, quando sei que em Portugal sou necessária. Não são só os acabados de formar que estão a sair do país. É a experiência que está a sair.”

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