“Quero sobretudo dar o meu contributo para o doente e sei que serei reconhecida. Não vou dizer que não gostava de voltar, mas sinceramente não acredito que as coisas mudem. Claro que isto deixa um sabor agridoce, pois é triste ter de ir para fora para me sentir valorizada, quando sei que em Portugal sou necessária. Não são só os acabados de formar que estão a sair do país. É a experiência que está a sair.”
É mais fácil emigrar do que ser
enfermeiro “num país sem sonhos”
ROMANA BORJA-SANTOS
31/12/2014 – PÚBLICO
Sara Ribeiro não encontrou emprego em Portugal. Cláudia Vieira vai trocar o
lugar que tem no Hospital de Valongo pelas perspectivas que encontrou na
Irlanda. Foram mais de 10.000 os profissionais de enfermagem a pedir desde 2009
à ordem o documento necessário para trabalhar no estrangeiro.
Há um ano Sara
Ribeiro estava de malas feitas para o Reino Unido. Depois do envio de mais de
100 currículos que em nada deram, emigrou em Janeiro de 2014 e é agora
enfermeira num prestigiado hospital público de Londres. Aos 24 anos, diz que
“foi preciso coragem para sair”, mas assegura que “será necessária muito mais
coragem para voltar a um país sem sonhos”. Um estado de espírito semelhante ao
da também enfermeira Cláudia Vieira, que nos primeiros meses do próximo ano vai
para a Irlanda, deixando o seu trabalho “sem perspectivas” no Hospital de
Valongo. Com 36 anos, defende que “é difícil ir para fora, mas impossível mesmo
é ficar aqui”.
Tanto Sara como
Cláudia engrossaram a longa lista de enfermeiros portugueses que nos últimos
anos saíram do país em busca de uma oportunidade no estrangeiro. De acordo com
os dados da Ordem dos Enfermeiros enviados ao PÚBLICO, no total, desde 2009,
foram mais de 10.000 os profissionais de enfermagem a pedir a este organismo a
chamada "declaração das directivas comunitárias", necessária para
trabalhar fora do país – o que não significa que todos tenham saído. Até 30 de
Novembro deste ano foram 1956 os enfermeiros que solicitaram o documento.
No entanto, se de
2009 para 2010 o número de pedidos aumentou de 609 para 1030, continuando a
subir para 1724 em 2011 e 2814 em 2012, desde 2013 houve algum decréscimo. No
ano passado foram feitos 2516 pedidos e neste ano, até ao final de Dezembro, tinham
dado entrada 1956. Cláudia deixará o Norte, Sara é menos uma a sul. Quanto a
diferenças regionais, a Secção Regional do Norte da Ordem dos Enfermeiros
registou sempre mais pedidos de saída do que o centro e o Sul, com excepção de
2013 e de 2014, em que foi ultrapassada pela Secção Regional do Sul.
No caso de Sara
Ribeiro a decisão foi relativamente rápida. Acabou o curso no Verão de 2013. Seguiu-se
a procura de emprego. “Fiz uma lista das instituições de saúde, procurei
emails, telefones, fui presencialmente aos sítios. Fui literalmente às páginas
amarelas. Enviei seguramente entre 100 e 150 currículos e tentei mais no
privado,porque sou formada na Universidade Católica e temos muito boa imagem
nesse sector. Ao mesmo tempo fiz voluntariado no Banco do Bebé e no Re-Food”,
conta ao PÚBLICO via Skype, no seu quarto em Londres, poucos dias antes de
regressar a Lisboa para o Natal em família.
O resultado dos
contactos foram apenas três entrevistas, uma das quais escondia na verdade um
trabalho a pouco mais de 500 euros em que seria também recepcionista e faria
limpezas depois das 21h. Denunciou o caso à Ordem dos Enfermeiros. Chegou a
receber um telefonema para uma vaga que não atendeu a tempo e quando ligou para
o número tinham passado ao nome seguinte. Uma informação sobre recrutamentos
para o Reino Unido através da empresa Kate Cowhig chegou-lhe por email em
Setembro de 2013. Arriscou.
“A minha ideia
sempre foi fazer carreira de enfermagem em Portugal, mas quase todos os sítios
pedem dois anos de experiência em meio hospitalar e se uma pessoa não consegue
começar a trabalhar como pode ter experiência?” Os responsáveis pela unidade
inglesa vieram a Portugal e passou as provas teóricas e práticas. Quiserem
saber em que área gostava de trabalhar e disse cirurgia geral. Foi a proposta
que lhe fizeram. Não adianta o valor certo, mas diz que ronda o triplo do valor
para início de carreira em Portugal, que é de perto de 1000 euros. Mudou-se a 2
de Janeiro, com a primeira renda paga. A Ordem dos Enfermeiros explica que não
tem os dados da emigração segmentados por faixas etárias, mas assegura que na
maior parte dos casos a declaração é pedida por enfermeiros em início de
carreira, mas já com alguma experiência. Ainda assim, devido ao grande número,
também é comum encontrar entre os que emigraram vários casos de pessoas entre
os 30 e os 40 anos já “altamente especializadas”.
Cláudia Vieira
ainda não tem data certa para a mudança, mas sabe que será nos primeiros meses
do ano e para perto de Dublin, pela língua e proximidade do aeroporto. Aliás,
os números da Ordem dos Enfermeiros indicam que a Europa é o destino escolhido
pela esmagadora maioria dos enfermeiros que decidiram sair do país, sendo
Inglaterra o local mais procurado, seguido por França, Bélgica, Alemanha, Suíça
e Irlanda. Ao contrário de Sara, Cláudia tinha emprego em Portugal e
experiência, pelo que quis ir pessoalmente à Irlanda conhecer o sítio onde vai
trabalhar, num processo intermediado pela empresa Borboleta JobAbroad, que lhe
tratou da documentação e inscrição nos organismos irlandeses.
Foi só há 11 anos
que Cláudia ingressou no curso de Enfermagem, a sua “paixão”. Antes foi
administrativa. Trabalha desde os 18 anos. “A minha filha nasceu há 11 anos no
dia do exame de Anatomia”, recorda, para justificar que é por ela que se vai
mudar da cirurgia de ambulatório do Centro Hospitalar de S. João para uma
unidade irlandesa dedicada a doentes com Alzheimer. “Uma das coisas que me faz
ir para fora é mesmo a minha filha, ver que aqui nunca lhe vou conseguir dar
uma vida. Vejo-a a crescer e a aproximar-se a idade da faculdade”, diz.
“É difícil ir
para fora, mas impossível mesmo é ficar aqui. Não tenho nada a apontar aos
chefes e aos colegas. Gosto do ambiente e fazemos um trabalho com muita
qualidade. O que me falta é o reconhecimento profissional e o progresso na
carreira. Ganho menos 300 ou 400 euros do que quando comecei a trabalhar”,
acrescenta. Em breve será através das novas tecnologias instaladas pela filha
no telemóvel e no tablet que vai comunicar com a menina e restante família. A
ideia é que mais tarde se juntem todos na Irlanda, até porque o marido é
professor de Música, “o que também não está fácil”.
No caso de Sara
as coincidências facilitaram-lhe a vida. O pai do namorado ficou sem emprego em
2013 e mudou-se para Londres com a mulher. Sara preparava nessa altura o seu
processo para um país de língua inglesa e acabou por ir também para Londres,
sem conhecer primeiro as instalações do local de trabalho, a não ser pelos
vídeos mostrados no recrutamento. Já em meados deste ano o namorado,
fisioterapeuta, decidiu arriscar e conseguiu emprego como assistente de
fisioterapia na mesma cidade – mesmo
como assistente ganha muito mais do que como fisioterapeuta em Portugal. Além
disso, Sara vive na mesma zona onde vivem mais dez enfermeiros portugueses que
emigraram na mesma altura e encontrou ali um grupo de amigos. Para quem queira
casar-se e ter filhos, o hospital disponibiliza apartamentos que crescem com a
família.
Em Portugal
também tem a sua família, mas explica que já percebeu que não pode juntar tudo.
“Tenho pena de não estar a exercer a minha profissão no meu país, mas percebi
rapidamente que não podemos ter tudo. Posso ter bom tempo, praia e passear na
marginal em Portugal, mas o bom emprego está aqui no Reino Unido. Não posso
juntar tudo, um bom país com um bom trabalho. Foi preciso coragem para sair de
Portugal, mas penso que o passo mais difícil será voltar. Será necessária muito
mais coragem para voltar a um país sem sonhos. Fico triste pelas pessoas do meu
país, mas os doentes também não têm dado o devido valor e a devida importância
aos enfermeiros.”
Sara refere que encontrou realidades laborais
muito distintas. “Enquanto em Portugal dez enfermeiros fizerem o trabalho de 15
ou de 20, não vai haver mudança. Se tudo estiver pronto no final do turno, não
se nota a diferença. Aqui não é assim, nota-se logo e são obrigados a
contratar.” Em termos de trabalho, destaca a flexibilidade. Tem um horário de
37,5 horas semanais e só faz bancos se quiser, podendo gerir se quer ganhar ou
não dinheiro extra. Os dias de férias são 27. Em breve vai ter também a
oportunidade dese mudar para um serviço
de urologia, onde procura enriquecer a experiência para um dia chegar ao que
mais quer: cuidados intensivos.
No novo serviço o
turno será de 12 horas com mais folgas que lhe permitirão vir a Portugal. Destaca
a “grande preparação” dos enfermeiros portugueses, mais “autónomos” e
“especializados”, pelo que acabam por “ganhar a confiança dos médicos” mais
depressa. Em Portugal aceitaria turnos de 12 horas? Sara diz que sim, mas
admite que existiriam protestos da classe, defendendo que é “preciso aceitar”
algumas cosias para negociar outras mudanças.
Por agora, Sara
não tem datas fixas na agenda. Vai poupando o que pode – e “não é pouco” – num
país em que deixou de “ouvir a palavra crise” a toda a hora e momento. “Somos
um povo que sabe poupar, que cozinha em casa, em vez de comer fora. Mesmo com o
custo de vida mais caro compro o que quero e ainda ponho de lado o equivalente
a um salário de um enfermeiro em início de carreira em Portugal. Sem ouvir falar da crise, sinto-me liberta.”
Para Cláudia
aproxima-se a ansiedade da mudança, mas espera encontrar “um povo parecido
connosco, amável e afável” e “uma estabilidade que em Portugal nunca
aconteceria”. Terá um horário semelhante ao que Sara, de oito horas diárias,
num hospital que “parece um hotel, organizado, limpo, com bom ambiente e um
jardim encantador”. “Quero sobretudo dar o meu contributo para o doente e sei
que serei reconhecida. Não vou dizer que não gostava de voltar, mas
sinceramente não acredito que as coisas mudem. Claro que isto deixa um sabor
agridoce, pois é triste ter de ir para fora para me sentir valorizada, quando
sei que em Portugal sou necessária. Não são só os acabados de formar que estão
a sair do país. É a experiência que está a sair.”
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