domingo, 24 de dezembro de 2023

É oficial: Livraria Ferin, a segunda mais antiga de Lisboa, fecha mesmo

 





EXCLUSIVO LIVROS

É oficial: Livraria Ferin, a segunda mais antiga de Lisboa, fecha mesmo

 

Dificuldades financeiras ditam o fim do estabelecimento fundado em 1840 pelo belga Jean Batiste Ferin, na Rua Nova do Almada. É o fim de mais uma Loja com História da capital portuguesa.

 

Samuel Alemão

21 de Dezembro de 2023, 12:40

https://www.publico.pt/2023/12/21/local/noticia/oficial-livraria-ferin-segunda-antiga-lisboa-fecha-2074472

 

Depois dos rumores, sustentados pelas portas fechadas e montras tapadas com papéis, na semana passada, chega agora confirmação. A Livraria Ferin, uma das mais antigas de Lisboa, já não abrirá mais, após 183 anos de actividade. A informação foi avançada pela administração da loja, num comunicado tornado público ao início da manhã desta quinta-feira e no qual se dá conta das dificuldades em manter o equilíbrio financeiro da loja, que havia sido adquirida em 2017 pelo livreiro José Pinho, falecido em Maio passado. A baixa facturação verificada ao longo dos últimos meses acabou por ditar o desfecho agora anunciado, dando fim a mais uma Loja com História da capital portuguesa.

 

“Nos últimos seis meses prosseguimos a procura de uma solução que permitisse tapar o enorme buraco que estes quatro anos de luta vieram acrescentar ao já existente. Mas nem as instituições públicas, nem os investidores privados, nem os parceiros livreiros nem os accionistas e amigos da Ler Devagar conseguiram fazer face ao problema financeiro e contabilístico da Ferin”, refere o comunicado. “As suas vendas caíram drasticamente e a livraria Ferin entrou num ciclo do qual já dificilmente recuperaria. Seguindo o exemplo de tantas outras lojas da Baixa que foram obrigadas a fechar portas”, complementa-se, justificando-se assim as razões para a tomada de decisão.

 

Num outro comunicado, enviado aos accionistas e amigos da Ler Devagar, e ao qual o PÚBLICO teve acesso, são atestadas as grandes dificuldades financeiras da Ferin como razão principal para o fecho. “Foi feito um levantamento dos totais de devoluções, contas correntes e dívidas, para uma resolução final da situação da livraria. Foram feitos diversos contactos, nomeadamente à Almedina, Relógio D’Agua, Snob, RELI (Rede de Livrarias Independentes), Travessa e outros investidores fora do mundo das livrarias, mas no final nenhum conseguiu cobrir o valor das dívidas acumuladas”, escreve-se.

 

A notícia do fecho de portas da livraria aberta, em 1840, na Rua Nova do Almada, pelo belga Jean Batiste Ferin, confirma assim os rumores surgidos no início da semana passada. O facto de se encontrar encerrada ao público e de ter as montras tapadas suscitou a curiosidade de muitos. E apesar de interpelados por alguns órgãos de comunicação social sobre o fecho definitivo, os responsáveis pelo espaço comercial não o confirmavam, referindo apenas que se encontravam a realizar um “levantamento de problemas”. Ponderação que determinou a decisão agora anunciada.

 

“Nos últimos meses, temos estado a trabalhar no apuramento de todos os problemas do passado e do presente, da livraria Ferin, de forma a podermos decidir o seu futuro. Há cerca de uma semana, foram tapadas as montras para o conseguirmos fazer longe dos olhares curiosos”, explica a comunicação interna a que o PÚBLICO teve acesso. “Como alguns de vós devem ter percebido, esse facto provocou um sururu na Internet e uma chuva de contactos de jornalistas que nos precipitou a necessidade de um esclarecimento e de uma tomada de decisão rápida, sob pena de vermos as nossas hipóteses de negociar e pagar todas as dívidas ainda mais reduzidas”, escrevem Joana Pinho, Pedro Pinho e Manuela Figueiredo.

 

O fim da actividade de uma das mais antigas livrarias portuguesas assume-se assim como corolário de um percurso que, nos últimos anos, era já pautado por imensas dificuldades financeiras, que espelhavam as profundas mudanças sentidas, nos tempos mais recentes, nos padrões de consumo e, em particular na vida da Baixa, o coração comercial de Lisboa. Foi nesse contexto que, em 2017, os gestores da Ferin contactaram o livreiro José Pinho, responsável pela criação e gestão da Livraria Ler Devagar e criador do Festival literário de Óbidos.

 

“Foi um pedido de ajuda de mais uma livraria que não conseguia fazer face aos problemas com que se deparam todas as pequenas livrarias independentes, cuja facturação e margens de lucro mínimas não lhes dão o fôlego suficiente para competir com as grandes superfícies, que por entre os electrodomésticos também vendem livros”, explica o comunicado hoje publicado pela administração. Nele se explica que, nessa altura, a proposta foi a de Pinho comprar a Ferin, com o seu aluguer de Loja Histórica, o seu espólio e toda a sua estrutura de recursos humanos por apenas um euro. “Herdando, claro está, uma monumental dívida histórica acumulada”, refere-se.

 

Efectuada a transacção, Pinho e a sua equipa deram nova vida à loja. “A equipa de trabalhadores foi reestruturada, oferecendo a toda a gente o que lhes era devido; os contratos possíveis com fornecedores e credores foram renegociados; a programação e a selecção de títulos foram renovadas e mil projectos começaram a nascer para dar vida ao espaço gigante da enorme cave, com porta directa para a Rua do Crucifixo e com um saguão que fazia sonhar com esplanadas e chá quente”, explica o comunicado. O texto refere que, nesse momento, foram realizados diversos contactos com possíveis investidores, “que pudessem introduzir o dinheiro necessário a todas as transformações”.

 

Uma dinâmica de recuperação que, afinal, foi travada quase no início. “Quando finalmente a casa parecia começar a estar arrumada e a levantar-se, caiu-nos em cima a pandemia de covid e o confinamento, que condenaram ao fecho e à penúria grande parte dos negócios, mas muito particularmente as livrarias”, refere a informação ao público agora lançada pela administração da Ler Devagar, na qual os filhos de José Pinho assumem papel de relevo.

 

“Foi nessa altura que nasceu a RELI, Rede de Livrarias Independentes, uma articulação do José Pinho e de um grupo de outros pequenos livreiros em luta pela sobrevivência das suas livrarias”, explicam os responsáveis da Ler Devagar, referindo-se às dificuldades sentidas por todos os comerciantes, e livreiros em particular, relacionadas com a pandemia. Depois, veio outro imponderável. “Em 2021, ainda mal tinham passado os efeitos e os tempos mais duros do covid, o José Pinho soube que tinha uma doença oncológica incurável. Iniciou-se aí mais uma luta de sobrevivência que durou dois anos a que ele resistiu heroicamente… mas acabando por morrer em Maio de 2023”, diz o comunicado.

 

Referindo-se ao propósito assumido por Pinho de que “sempre que uma livraria fechar, a Ler Devagar abrirá uma outra”, os seus herdeiros de negócio lembram a recente inauguração da Casa do Comum, no Bairro Alto. “Uma livraria que é também um centro cultural onde se podem ler e comprar livros, ver filmes, beber um copo, ouvir um concerto ou uma sessão de leitura”, explica-se, lembrando a missão original da Ler Devagar: “A de reinventar o conceito de livraria, ao mesmo tempo que gera espaços de encontro e de acesso a todas as expressões artísticas e da palavra.”

Sem comentários: