EXCLUSIVO LIVROS
É oficial: Livraria Ferin, a segunda mais antiga de
Lisboa, fecha mesmo
Dificuldades financeiras ditam o fim do estabelecimento
fundado em 1840 pelo belga Jean Batiste Ferin, na Rua Nova do Almada. É o fim
de mais uma Loja com História da capital portuguesa.
Samuel Alemão
21 de Dezembro de
2023, 12:40
Depois dos
rumores, sustentados pelas portas fechadas e montras tapadas com papéis, na
semana passada, chega agora confirmação. A Livraria Ferin, uma das mais antigas
de Lisboa, já não abrirá mais, após 183 anos de actividade. A informação foi
avançada pela administração da loja, num comunicado tornado público ao início
da manhã desta quinta-feira e no qual se dá conta das dificuldades em manter o
equilíbrio financeiro da loja, que havia sido adquirida em 2017 pelo livreiro
José Pinho, falecido em Maio passado. A baixa facturação verificada ao longo
dos últimos meses acabou por ditar o desfecho agora anunciado, dando fim a mais
uma Loja com História da capital portuguesa.
“Nos últimos seis
meses prosseguimos a procura de uma solução que permitisse tapar o enorme
buraco que estes quatro anos de luta vieram acrescentar ao já existente. Mas
nem as instituições públicas, nem os investidores privados, nem os parceiros
livreiros nem os accionistas e amigos da Ler Devagar conseguiram fazer face ao
problema financeiro e contabilístico da Ferin”, refere o comunicado. “As suas
vendas caíram drasticamente e a livraria Ferin entrou num ciclo do qual já
dificilmente recuperaria. Seguindo o exemplo de tantas outras lojas da Baixa
que foram obrigadas a fechar portas”, complementa-se, justificando-se assim as
razões para a tomada de decisão.
Num outro
comunicado, enviado aos accionistas e amigos da Ler Devagar, e ao qual o
PÚBLICO teve acesso, são atestadas as grandes dificuldades financeiras da Ferin
como razão principal para o fecho. “Foi feito um levantamento dos totais de
devoluções, contas correntes e dívidas, para uma resolução final da situação da
livraria. Foram feitos diversos contactos, nomeadamente à Almedina, Relógio
D’Agua, Snob, RELI (Rede de Livrarias Independentes), Travessa e outros
investidores fora do mundo das livrarias, mas no final nenhum conseguiu cobrir
o valor das dívidas acumuladas”, escreve-se.
A notícia do
fecho de portas da livraria aberta, em 1840, na Rua Nova do Almada, pelo belga
Jean Batiste Ferin, confirma assim os rumores surgidos no início da semana
passada. O facto de se encontrar encerrada ao público e de ter as montras
tapadas suscitou a curiosidade de muitos. E apesar de interpelados por alguns
órgãos de comunicação social sobre o fecho definitivo, os responsáveis pelo
espaço comercial não o confirmavam, referindo apenas que se encontravam a
realizar um “levantamento de problemas”. Ponderação que determinou a decisão
agora anunciada.
“Nos últimos
meses, temos estado a trabalhar no apuramento de todos os problemas do passado
e do presente, da livraria Ferin, de forma a podermos decidir o seu futuro. Há
cerca de uma semana, foram tapadas as montras para o conseguirmos fazer longe
dos olhares curiosos”, explica a comunicação interna a que o PÚBLICO teve
acesso. “Como alguns de vós devem ter percebido, esse facto provocou um sururu
na Internet e uma chuva de contactos de jornalistas que nos precipitou a
necessidade de um esclarecimento e de uma tomada de decisão rápida, sob pena de
vermos as nossas hipóteses de negociar e pagar todas as dívidas ainda mais
reduzidas”, escrevem Joana Pinho, Pedro Pinho e Manuela Figueiredo.
O fim da
actividade de uma das mais antigas livrarias portuguesas assume-se assim como
corolário de um percurso que, nos últimos anos, era já pautado por imensas
dificuldades financeiras, que espelhavam as profundas mudanças sentidas, nos
tempos mais recentes, nos padrões de consumo e, em particular na vida da Baixa,
o coração comercial de Lisboa. Foi nesse contexto que, em 2017, os gestores da
Ferin contactaram o livreiro José Pinho, responsável pela criação e gestão da
Livraria Ler Devagar e criador do Festival literário de Óbidos.
“Foi um pedido de
ajuda de mais uma livraria que não conseguia fazer face aos problemas com que
se deparam todas as pequenas livrarias independentes, cuja facturação e margens
de lucro mínimas não lhes dão o fôlego suficiente para competir com as grandes
superfícies, que por entre os electrodomésticos também vendem livros”, explica
o comunicado hoje publicado pela administração. Nele se explica que, nessa
altura, a proposta foi a de Pinho comprar a Ferin, com o seu aluguer de Loja
Histórica, o seu espólio e toda a sua estrutura de recursos humanos por apenas
um euro. “Herdando, claro está, uma monumental dívida histórica acumulada”,
refere-se.
Efectuada a
transacção, Pinho e a sua equipa deram nova vida à loja. “A equipa de
trabalhadores foi reestruturada, oferecendo a toda a gente o que lhes era
devido; os contratos possíveis com fornecedores e credores foram renegociados;
a programação e a selecção de títulos foram renovadas e mil projectos começaram
a nascer para dar vida ao espaço gigante da enorme cave, com porta directa para
a Rua do Crucifixo e com um saguão que fazia sonhar com esplanadas e chá
quente”, explica o comunicado. O texto refere que, nesse momento, foram
realizados diversos contactos com possíveis investidores, “que pudessem
introduzir o dinheiro necessário a todas as transformações”.
Uma dinâmica de
recuperação que, afinal, foi travada quase no início. “Quando finalmente a casa
parecia começar a estar arrumada e a levantar-se, caiu-nos em cima a pandemia
de covid e o confinamento, que condenaram ao fecho e à penúria grande parte dos
negócios, mas muito particularmente as livrarias”, refere a informação ao
público agora lançada pela administração da Ler Devagar, na qual os filhos de
José Pinho assumem papel de relevo.
“Foi nessa altura
que nasceu a RELI, Rede de Livrarias Independentes, uma articulação do José
Pinho e de um grupo de outros pequenos livreiros em luta pela sobrevivência das
suas livrarias”, explicam os responsáveis da Ler Devagar, referindo-se às
dificuldades sentidas por todos os comerciantes, e livreiros em particular,
relacionadas com a pandemia. Depois, veio outro imponderável. “Em 2021, ainda
mal tinham passado os efeitos e os tempos mais duros do covid, o José Pinho
soube que tinha uma doença oncológica incurável. Iniciou-se aí mais uma luta de
sobrevivência que durou dois anos a que ele resistiu heroicamente… mas acabando
por morrer em Maio de 2023”, diz o comunicado.
Referindo-se ao
propósito assumido por Pinho de que “sempre que uma livraria fechar, a Ler
Devagar abrirá uma outra”, os seus herdeiros de negócio lembram a recente
inauguração da Casa do Comum, no Bairro Alto. “Uma livraria que é também um
centro cultural onde se podem ler e comprar livros, ver filmes, beber um copo,
ouvir um concerto ou uma sessão de leitura”, explica-se, lembrando a missão
original da Ler Devagar: “A de reinventar o conceito de livraria, ao mesmo
tempo que gera espaços de encontro e de acesso a todas as expressões artísticas
e da palavra.”
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