domingo, 31 de dezembro de 2023

22 de Fevereiro de 2020: A “derradeira casa de pasto galega” da Baixa de Lisboa fechou aos 107 anos






REPORTAGEM
A “derradeira casa de pasto galega” da Baixa de Lisboa fechou aos 107 anos

Este sábado, escreveu-se o último capítulo da Casa Cid. Fundada por um galego em 1913, nas traseiras de um outrora movimentado mercado, esta taberna centenária do Cais do Sodré foi empurrada dali porque o prédio onde sempre esteve será um hotel.

Cristiana Faria Moreira (Texto) e Nuno Ferreira Santos (Fotografia) 22 de Fevereiro de 2020, 20:51

Borja Cid não tem mãos a medir. De avental ao peito, ora põe os petiscos na mesa, ora troca dois dedos de conversa com quem passa na rua para lhe dizer que o fecho da Casa Cid é “injusto” e lhe deseja “as maiores felicidades”. Ele, já de lágrimas nos olhos, encolhe os ombros, comove-se com as palavras e agradece.

Este sábado, escreveu-se o último capítulo de 107 anos — quase, quase 108 — de uma tasca erguida e mantida por mãos de galegos, mas que tem também uma alma muito portuguesa. “Acabam com tudo o que é bom. Só querem hostels e hotéis”, atira um freguês que pára para cumprimentar Borja.

O prédio onde está a Casa Cid, nas traseiras do Mercado da Ribeira, terá o mesmo destino que outros tiveram na baixa ao longo dos últimos anos: vai ser transformado num hotel. Foi comprado há cerca de seis anos pelo Fundo Sete Colinas, que tem vários projectos ali para a zona do Cais do Sodré. Como o contrato de arrendamento transitou para o Novo Regime do Arredamento Urbano, acabaram por ficar mais desprotegidos e, em 2018, o proprietário comunicou-lhes que não pretendia renovar o contrato e que teriam de abandonar o espaço em Maio de 2019. Não saíram e avançaram com uma acção judicial para travar a decisão, mas acabaram por aceitar uma indemnização que dá para pagar as dos seis trabalhadores e pouco mais. “Não fazia sentido continuar a prolongar o sofrimento”, diz Borja, enquanto acende o cigarro de enrolar.

As mesas com as toalhas vermelhas e azuis estão postas e, por volta do meio-dia, a casa já estava composta. Este sábado, apareceram os amigos-clientes de décadas. Os petiscos vão saindo para a mesa. Pão, queijo, umas batatas e umas petingas fritas. Às pessoas que vão chegando e pedem uma refeição, Borja vai explicando que é o último dia de portas abertas, mas que só estão a servir a convidados.

O alemão Mattias Uhlenbrock bebe uma última cerveja ao balcão. Há 40 anos que vem “três, quatro vezes por ano” a Lisboa. E parava sempre na Casa Cid para beber uma “short beer ou comer uma chamuça”. “Eu estou profundamente triste com isto. Este é um lugar especial.” Viu a capital mudar muito ao longo de quatro décadas. E o que vê agora fá-lo pensar em cidades como Veneza ou Barcelona, “demasiado superlotadas”. “Os turistas que chegam nos cruzeiros, que ficam e comem nos barcos, ou os que vêm e comem nos hotéis estão a matar estes lugares”, diz o alemão.

O “mercado era outro mundo”
A Casa Cid abriu em 1913, pela mão de um visionário galego de Ourense, Manuel Cid Nuñez, bisavô de Borja, que viu num movimentado mercado uma oportunidade de negócio. Nas décadas de 40 e 50, quando o “mercado era outro mundo”, o restaurante chegou a estar aberto 24 horas por dia. Como era um mercado abastecedor, havia sempre muito movimento. Quando começaram a surgir as grandes superfícies, o mercado “morreu”.


Ainda assim, a ligação daqueles comerciantes com a tasca nunca se perdeu. As peixeiras e os talhantes continuaram a ir lá petiscar; os Cid continuaram a ir abastecer-se ao mercado. Ainda hoje, Borja Cid tratava de ir todas as manhãs às bancas de carne e peixe, frutas e legumes, ver o que tinha chegado de fresco. Inclusive, um dos antigos talhantes do mercado, António Alves, de 80 anos, ainda dava “um jeitinho” na tasca à hora de almoço.

O tacho vai para o meio da mesa. Há favas guisadas e caldeirada de garoupa. Já lá está sentado José Teodoro, 77 anos, ali cliente há cinco décadas, quando trabalhava ali perto, nos escritórios da Sociedade do Bacalhau. “Isto aqui tinha uns petiscos fantásticos. Normalmente, a gente vinha aqui comer uns carapauzinhos fritos com feijão-frade, que era o petisco principal aqui da casa”. As mesas ainda eram de pedra, não havia toalhas, mas ninguém se ralava muito com isso. “Naquela altura, tínhamos duas horas de almoço. A gente comia bem aqui, bebia bem.”

A Sociedade do Bacalhau fechou há 24 anos. Nessa altura, José e os antigos colegas combinaram ir almoçar à Casa Cid todas as sextas-feiras. “Eu pensei que isso ia durar para aí um ano. Mas não. Já lá vão 24. Ainda ontem [sexta-feira] cá estavam dez”. É por isso que diz ter “muita pena”, até “muita mágoa” do desfecho desta casa centenária. “Vai-me deixar muitas, muitas saudades. Vai mesmo.”

Também ali, José Teodoro conheceu o “senhor Alberto”, quando este tinha “17 ou 18 anos” e andava a servir às mesas. “Tinha que andar com os copos no ar para aviar os fregueses. Servia-se 15 litros de leite e 30 de café de saco, 700 carcaças diariamente”, recorda Adão Alberto Santos, 64 anos, que para ali foi trabalhar em Janeiro de 1974 e é hoje sócio da casa.

Do lado de lá do balcão de inox, anda para lá e para cá, aviando as imperiais que os fregueses vão pedindo. Quando se lhe pergunta se se sente triste com este desfecho, ele acaba por admitir que tem “pena que isto acabe mais por ele”. Ele é Borja, o madrileno de 38 anos que pegou no negócio fundado pelo bisavô em 2017, trocando as cozinhas de restaurantes conceituados, por esta pequena tasca de Lisboa.

Fê-lo a pedido da mãe e da tia, que também este sábado ali estavam sentadas à mesa. “A minha mãe e a minha tia foram baptizadas na Igreja de São Paulo. Nasceram ali na Travessa dos Pescadores”, numa casa onde mora hoje o cozinheiro da Casa Cid, conta Borja. Mantiveram sempre uma forte relação com a cidade, apesar de se terem mudado para Espanha.

Para tentar segurar a casa, Borja Cid ainda candidatou a casa ao programa da autarquia “Lojas com História”, que visa “preservar e salvaguardar os estabelecimentos [de comércio tradicional] e o seu património material, histórico e cultural”. No entanto, a atribuição desse estatuto foi rejeitada porque, segundo disse a Câmara de Lisboa ao PÚBLICO em Agosto, a Casa Cid encontrava-se “bastante descaracterizada”.

Ainda esta sexta-feira, na sua página de Facebook, a empresária Catarina Portas, que é membro do conselho consultivo deste programa, deixou uma crítica à forma como se deixa, mais uma vez, desaparecer um estabelecimento histórico na cidade, desta feita, a “derradeira casa de pasto galega da cidade”. “Parte-se-me o coração de ver a Cid fechar pois foi exactamente para contrariar isto que foi criado o programa Lojas Com História na CML. O grande feito deste programa foi conseguir classificar as actividades e não apenas as paredes mas infelizmente, neste caso, os meus colegas do Conselho Consultivo não foram sensíveis à história centenária desta casa, nem à imensa vontade de continuar dos descendentes e donos actuais. Tenho muita pena”, escreveu Catarina Portas, notando ainda que esta casa “era um dos últimos testemunhos vivos da importância da comunidade galega na construção de Lisboa”.

Borja Cid não queria falhar na missão dele, a de manter os sabores e pratos tradicionais portugueses acessíveis na baixa da capital, já que hoje quase estão em extinção. É por isso que tem vontade de reerguer a Casa Cid noutro lugar. “São 107 anos. Não queremos uma grande casa, ninguém quer ser a melhor, mas é aquela herança imaterial que eu acho que não pode ser perdida”, diz.

Nas redondezas “é impossível por causa dos preços”, nota Borja, que recorda o café Tati, ali vizinho e famoso pelos seus concertos de jazz e jam sessions, que também encerrou no final de 2018. “Isto aqui à sexta-feira era um espectáculo. Era uma mistura de malta — mais boémia, mais operária, de várias nacionalidades”. Por isso diz que a casa que dirigia tem, sem dúvida, muito passado, mas teria ainda muito futuro. Talvez as fotografias e as memórias que preenchem as paredes transitem para esse futuro, numa nova casa. Afinal, não se arrumam em caixotes 107 anos assim.

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