domingo, 24 de dezembro de 2023

E a contagem continua. Também a histórica Barbearia Campos, no Chiado, fechou

 



E a contagem continua. Também a histórica Barbearia Campos, no Chiado, fechou

 

Aberta em 1840 e frequentada por Eça de Queiroz, estava em dificuldades financeiras. Depois da Ferin e da Casa Chineza, é mais uma loja do século XIX a fechar. Restaurante Bota Alta também encerrou.

 

Samuel Alemão

22 de Dezembro de 2023, 17:04

https://www.publico.pt/2023/12/22/local/noticia/contagem-continua-tambem-historica-barbearia-campos-chiado-fechou-2074651

 

Ainda falta uma semana para o fim de Dezembro, mas o último mês do ano já leva a dianteira no anúncio de encerramento de estabelecimentos comerciais icónicos da capital portuguesa. Em particular do seu centro histórico. E, com eles, uma parte importante da memória da cidade é remetida para os arquivos. Depois da certeza, nesta quinta-feira, do fecho da Livraria Ferin, inaugurada em 1840, na Rua Nova do Almada, e da notícia da cessação da actividade, há cerca de duas semanas, da Casa Chineza, café-restaurante a funcionar desde 1866 na Rua do Ouro, esta semana chega também a confirmação do encerramento da Barbearia Campos, no Chiado, onde se encontrava desde 1886. Um desfecho ditado, segundo o senhorio, pelo incumprimento contratual, uma vez que a renda não seria paga desde Julho passado.

 

De uma assentada, são varridos do mapa três estabelecimentos resistentes da Lisboa novecentista. Dois deles, a Ferin e a Barbearia Campos, ostentavam o emblema do programa municipal Lojas com História. Mas, nas últimas semanas, outros nomes históricos se lhe juntaram, como a Casa Achilles, especializada em ferragens, situada na Rua de São Marçal, perto do Príncipe Real, e o restaurante Bota Alta, localizado no Bairro Alto. Também este havia sido distinguido com o emblema do referido programa, criado pela autarquia lisboeta para tentar preservar o legado comercial da cidade.

 

A Barbearia Campos foi, aliás, frequentada por algumas das figuras mais ilustres dessa era, como Ramalho Ortigão e Eça de Queiroz. Fundada há 137 anos por José Augusto de Campos (1856-1922), sob a designação “Cabelleireiro Campos”, passou a ter em 1910 a nomenclatura com que ficaria conhecida e pela qual viria a ser reconhecida como uma Loja com História, aquando da criação do programa municipal, em 2015.

 

Foi naquele ano, no início do século passado, que a sociedade Campos & Costa foi dissolvida e José passou a deter a gestão em exclusivo do negócio instalado no número 4 do Largo do Chiado, a poucos metros do café A Brasileira. Muitas das personalidades que frequentavam as tertúlias desse estabelecimento eram clientes da barbearia, sentando-se nas elegantes cadeiras que foram tendo uso até há poucos dias. Aquilino Ribeiro, Almada Negreiros, António Ferro e Vasco Santana, entre outros, também por lá passaram.

 

Na verdade, as paredes, o chão e o tecto do espaço onde a Barbearia Campos estava a funcionar já não eram os originais. O recheio do estabelecimento, incluindo o mobiliário e as portas da entrada, é que era. Isto porque, em 2016, o espaço foi sujeito a uma profunda alteração em virtude das obras estruturais realizadas no prédio onde a barbearia funcionava. Intervenção que, na realidade, implicou a destruição integral do miolo do edifício e sua posterior reconstrução, mantendo-se apenas a fachada original. Nessa altura, e durante cerca de um ano e meio, a barbearia funcionou a pouco mais de uma centena de metros, na Rua do Loreto.

 

Vizinhança do McDonald's

Tal mudança, a par com a instalação de uma loja da cadeia de fast-food McDonald's no número 2 do mesmo prédio, provocou, naquele momento, uma onda de indignação. E foi lançada uma petição contra a abertura de um restaurante de comida rápida numa zona associada a uma certa ideia de boémia novecentista. Chegou a temer-se a substituição da Campos pela multinacional de venda de hambúrgueres naquele espaço. Mas a barbearia voltaria, de facto, a abrir no mesmo local, embora numa sala com um pé direito rebaixado. Ainda assim, mantinha-se a funcionar com os equipamentos e o mobiliário originais.

 

Mas as dificuldades financeiras associadas à incapacidade de cumprir com as responsabilidades contratuais, motivadas por uma renda elevada, terão ditado o fecho, agora conhecido. Se, desde Julho de 2016, quando regressou ao número 4 do Largo do Chiado, o estabelecimento pagava uma renda mensal de mil euros, esse valor foi crescendo ao longo dos anos, de acordo com o que havia sido estabelecido contratualmente com os senhorios, a empresa de activos imobiliários Coporgest. A ponto de, desde Julho passado, esse valor ter sido fixado em 2900 euros mensais. Esse terá sido, aliás, o último mês em que as rendas terão sido pagas, de acordo com informação escrita dada ao PÚBLICO pela empresa dona do imóvel.

 

“Depois dessa renda, a Barbearia Campos nunca mais pagou nada. E, já antes dessa data, também tinha acumulado dívidas avultadas de rendas não pagas relativas a períodos anteriores, perfazendo uma dívida global de 13.880 euros”, explica Ricardo Amantes, director comercial e de investimentos da Coporgest, salientando que “atrasos no pagamento das rendas foram uma constante ao longo dos últimos anos”. Apesar disso, refere, nunca foram aplicadas as penalizações legalmente previstas pela demora na liquidação das rendas. “Tentámos, por variadíssimas vezes e formas, chegar a acordo com o arrendatário, sendo que o mesmo nunca se mostrou disponível para tal”, diz.

 

Mas o senhorio vai mais longe. “Tomámos recentemente conhecimento de que o arrendatário tomou a iniciativa de fazer um subarrendamento ‘às escondidas’, sem a nossa autorização, e por isso completa e absolutamente ilegal”, acusa. E prossegue: “Esse subarrendamento ilegal gerava uma renda elevada para o arrendatário que nem assim nos entregava a dívida vencida e/ou sequer se mostrou disponível para chegarmos a um acordo de pagamento, conforme já referido”.

 

“O contrato de arrendamento cessou por incumprimento contratual do arrendatário, tendo este procedido de forma voluntária à entrega das chaves da loja”, descreve o responsável comercial da Coporgest, salientando ser este o corolário previsível, tendo em conta todo o investimento feito pela empresa naquela fracção.”Nos anos de 2014/2015, sem receber qualquer tipo de apoio ou subsídio do Estado ou do Município, a Coporgest suportou integralmente os custos de reabilitação da Barbearia Campos, os quais ultrapassaram o valor de 400.000 euros”, explica.

 

Ano novo, vida nova

Sobre o futuro daquele espaço, Ricardo Amantes esclarece que o mesmo será ocupado por “uma empresa 100% nacional, de origem familiar, que vai na sua terceira geração, que produz e comercializa joalharia portuguesa, espalhando a cultura do nosso país por todo o mundo”. Vira-se assim uma página. “Estamos absolutamente convencidos de que a abertura desta nova loja marcará o início de uma nova história para aquele espaço e para a cidade de Lisboa, que muito nos honrará”, acredita.

 

O PÚBLICO tentou entrar em contacto com os responsáveis da Barbearia Campos, não o tendo conseguido até ao momento da publicação deste artigo.

 

Também esta semana se ficou a saber que o restaurante Bota Alta, a funcionar desde 1976, no 35 da Travessa da Queimada, ao Bairro Alto, já se encontra fora de actividade há alguns dias. Apesar de bastante mais recente do que os restantes estabelecimentos que fecharam portas durante este mês, estava classificado como uma Loja com História. Fundado por António Cassiano, ficou conhecido pela confraternização descontraída e pela boémia favorecidas pelos ares de liberdade que se respiravam naqueles primeiros anos de democracia após o 25 de Abril de 1974. Local de confraternização interclassista, ficou associado ao despontar da movida do Bairro Alto nos anos 80 e 90.

 

Servindo comida portuguesa tradicional e sem especiais pretensões, o espaço era frequentado por figuras icónicas do meio artístico nacional, como António Variações e Rui Reininho. “Quando o Bota Alta abriu, havia prostitutas na esquina em frente. E proxenetas. A tasca Os Galegos abria às 5h, por causa dos jornais. O Bairro tinha gente do bairro e havia umas quantas figuras como a 'Lena Gorda' e o 'Manacas'. Vendia-se a lotaria, outros tinham trotinetas de peixe, como o 'Falcão', e também havia o 'Galvão'”, recordava, em Julho do ano passado, ao jornal Expresso, Paulo Cassiano, sobrinho do fundador, que faleceu em 2003.

 

Outra das antigas lojas de Lisboa que terá deixado de funcionar foi a Casa Achilles, especializada em ferragens, situada na Rua de São Marçal, perto do Príncipe Real. Além de ser uma das pertencentes à lista das Lojas com História, integrava o inventário do Círculo das Lojas com Carácter e Tradição, fundado pela associação cívica Fórum Cidadania Lisboa. Fundada em 1905, por Achilles Santos Frias, era muito procurada pelo seu trabalho especializado de fundição de metais cinzelados manualmente.

 

tp.ocilbup@oamelams

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