E a contagem continua. Também a histórica Barbearia
Campos, no Chiado, fechou
Aberta em 1840 e frequentada por Eça de Queiroz, estava
em dificuldades financeiras. Depois da Ferin e da Casa Chineza, é mais uma loja
do século XIX a fechar. Restaurante Bota Alta também encerrou.
Samuel Alemão
22 de Dezembro de
2023, 17:04
Ainda falta uma
semana para o fim de Dezembro, mas o último mês do ano já leva a dianteira no
anúncio de encerramento de estabelecimentos comerciais icónicos da capital
portuguesa. Em particular do seu centro histórico. E, com eles, uma parte
importante da memória da cidade é remetida para os arquivos. Depois da certeza,
nesta quinta-feira, do fecho da Livraria Ferin, inaugurada em 1840, na Rua Nova
do Almada, e da notícia da cessação da actividade, há cerca de duas semanas, da
Casa Chineza, café-restaurante a funcionar desde 1866 na Rua do Ouro, esta
semana chega também a confirmação do encerramento da Barbearia Campos, no
Chiado, onde se encontrava desde 1886. Um desfecho ditado, segundo o senhorio,
pelo incumprimento contratual, uma vez que a renda não seria paga desde Julho
passado.
De uma assentada,
são varridos do mapa três estabelecimentos resistentes da Lisboa novecentista.
Dois deles, a Ferin e a Barbearia Campos, ostentavam o emblema do programa
municipal Lojas com História. Mas, nas últimas semanas, outros nomes históricos
se lhe juntaram, como a Casa Achilles, especializada em ferragens, situada na
Rua de São Marçal, perto do Príncipe Real, e o restaurante Bota Alta,
localizado no Bairro Alto. Também este havia sido distinguido com o emblema do
referido programa, criado pela autarquia lisboeta para tentar preservar o
legado comercial da cidade.
A Barbearia
Campos foi, aliás, frequentada por algumas das figuras mais ilustres dessa era,
como Ramalho Ortigão e Eça de Queiroz. Fundada há 137 anos por José Augusto de
Campos (1856-1922), sob a designação “Cabelleireiro Campos”, passou a ter em
1910 a nomenclatura com que ficaria conhecida e pela qual viria a ser
reconhecida como uma Loja com História, aquando da criação do programa
municipal, em 2015.
Foi naquele ano,
no início do século passado, que a sociedade Campos & Costa foi dissolvida
e José passou a deter a gestão em exclusivo do negócio instalado no número 4 do
Largo do Chiado, a poucos metros do café A Brasileira. Muitas das personalidades
que frequentavam as tertúlias desse estabelecimento eram clientes da barbearia,
sentando-se nas elegantes cadeiras que foram tendo uso até há poucos dias.
Aquilino Ribeiro, Almada Negreiros, António Ferro e Vasco Santana, entre
outros, também por lá passaram.
Na verdade, as
paredes, o chão e o tecto do espaço onde a Barbearia Campos estava a funcionar
já não eram os originais. O recheio do estabelecimento, incluindo o mobiliário
e as portas da entrada, é que era. Isto porque, em 2016, o espaço foi sujeito a
uma profunda alteração em virtude das obras estruturais realizadas no prédio
onde a barbearia funcionava. Intervenção que, na realidade, implicou a
destruição integral do miolo do edifício e sua posterior reconstrução,
mantendo-se apenas a fachada original. Nessa altura, e durante cerca de um ano
e meio, a barbearia funcionou a pouco mais de uma centena de metros, na Rua do
Loreto.
Vizinhança do McDonald's
Tal mudança, a
par com a instalação de uma loja da cadeia de fast-food McDonald's no número 2
do mesmo prédio, provocou, naquele momento, uma onda de indignação. E foi
lançada uma petição contra a abertura de um restaurante de comida rápida numa
zona associada a uma certa ideia de boémia novecentista. Chegou a temer-se a
substituição da Campos pela multinacional de venda de hambúrgueres naquele
espaço. Mas a barbearia voltaria, de facto, a abrir no mesmo local, embora numa
sala com um pé direito rebaixado. Ainda assim, mantinha-se a funcionar com os
equipamentos e o mobiliário originais.
Mas as
dificuldades financeiras associadas à incapacidade de cumprir com as
responsabilidades contratuais, motivadas por uma renda elevada, terão ditado o
fecho, agora conhecido. Se, desde Julho de 2016, quando regressou ao número 4
do Largo do Chiado, o estabelecimento pagava uma renda mensal de mil euros,
esse valor foi crescendo ao longo dos anos, de acordo com o que havia sido
estabelecido contratualmente com os senhorios, a empresa de activos
imobiliários Coporgest. A ponto de, desde Julho passado, esse valor ter sido
fixado em 2900 euros mensais. Esse terá sido, aliás, o último mês em que as
rendas terão sido pagas, de acordo com informação escrita dada ao PÚBLICO pela
empresa dona do imóvel.
“Depois dessa
renda, a Barbearia Campos nunca mais pagou nada. E, já antes dessa data, também
tinha acumulado dívidas avultadas de rendas não pagas relativas a períodos
anteriores, perfazendo uma dívida global de 13.880 euros”, explica Ricardo
Amantes, director comercial e de investimentos da Coporgest, salientando que
“atrasos no pagamento das rendas foram uma constante ao longo dos últimos
anos”. Apesar disso, refere, nunca foram aplicadas as penalizações legalmente
previstas pela demora na liquidação das rendas. “Tentámos, por variadíssimas
vezes e formas, chegar a acordo com o arrendatário, sendo que o mesmo nunca se
mostrou disponível para tal”, diz.
Mas o senhorio
vai mais longe. “Tomámos recentemente conhecimento de que o arrendatário tomou
a iniciativa de fazer um subarrendamento ‘às escondidas’, sem a nossa
autorização, e por isso completa e absolutamente ilegal”, acusa. E prossegue:
“Esse subarrendamento ilegal gerava uma renda elevada para o arrendatário que
nem assim nos entregava a dívida vencida e/ou sequer se mostrou disponível para
chegarmos a um acordo de pagamento, conforme já referido”.
“O contrato de
arrendamento cessou por incumprimento contratual do arrendatário, tendo este
procedido de forma voluntária à entrega das chaves da loja”, descreve o
responsável comercial da Coporgest, salientando ser este o corolário
previsível, tendo em conta todo o investimento feito pela empresa naquela
fracção.”Nos anos de 2014/2015, sem receber qualquer tipo de apoio ou subsídio
do Estado ou do Município, a Coporgest suportou integralmente os custos de
reabilitação da Barbearia Campos, os quais ultrapassaram o valor de 400.000
euros”, explica.
Ano novo, vida nova
Sobre o futuro
daquele espaço, Ricardo Amantes esclarece que o mesmo será ocupado por “uma
empresa 100% nacional, de origem familiar, que vai na sua terceira geração, que
produz e comercializa joalharia portuguesa, espalhando a cultura do nosso país
por todo o mundo”. Vira-se assim uma página. “Estamos absolutamente convencidos
de que a abertura desta nova loja marcará o início de uma nova história para
aquele espaço e para a cidade de Lisboa, que muito nos honrará”, acredita.
O PÚBLICO tentou
entrar em contacto com os responsáveis da Barbearia Campos, não o tendo
conseguido até ao momento da publicação deste artigo.
Também esta
semana se ficou a saber que o restaurante Bota Alta, a funcionar desde 1976, no
35 da Travessa da Queimada, ao Bairro Alto, já se encontra fora de actividade
há alguns dias. Apesar de bastante mais recente do que os restantes
estabelecimentos que fecharam portas durante este mês, estava classificado como
uma Loja com História. Fundado por António Cassiano, ficou conhecido pela
confraternização descontraída e pela boémia favorecidas pelos ares de liberdade
que se respiravam naqueles primeiros anos de democracia após o 25 de Abril de
1974. Local de confraternização interclassista, ficou associado ao despontar da
movida do Bairro Alto nos anos 80 e 90.
Servindo comida
portuguesa tradicional e sem especiais pretensões, o espaço era frequentado por
figuras icónicas do meio artístico nacional, como António Variações e Rui
Reininho. “Quando o Bota Alta abriu, havia prostitutas na esquina em frente. E
proxenetas. A tasca Os Galegos abria às 5h, por causa dos jornais. O Bairro
tinha gente do bairro e havia umas quantas figuras como a 'Lena Gorda' e o
'Manacas'. Vendia-se a lotaria, outros tinham trotinetas de peixe, como o
'Falcão', e também havia o 'Galvão'”, recordava, em Julho do ano passado, ao
jornal Expresso, Paulo Cassiano, sobrinho do fundador, que faleceu em 2003.
Outra das antigas
lojas de Lisboa que terá deixado de funcionar foi a Casa Achilles,
especializada em ferragens, situada na Rua de São Marçal, perto do Príncipe
Real. Além de ser uma das pertencentes à lista das Lojas com História,
integrava o inventário do Círculo das Lojas com Carácter e Tradição, fundado
pela associação cívica Fórum Cidadania Lisboa. Fundada em 1905, por Achilles
Santos Frias, era muito procurada pelo seu trabalho especializado de fundição
de metais cinzelados manualmente.
tp.ocilbup@oamelams
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