OPINIÃO
Provavelmente, a pior crise…
O que se passou para que as demissões se sucedam, os
partidos exijam a demissão do Governo, se apresentem moções de censura e se
fale em sucessão no executivo e no partido como se fosse para amanhã?
António Barreto
31 de Dezembro de
2022, 6:55
https://www.publico.pt/2022/12/31/opiniao/opiniao/provavelmente-pior-crise-2033318
Guerra na Europa?
A inflação mais elevada das últimas décadas? Uma persistente pandemia que não
se reduz à ínfima espécie? A dificuldade em desenvolver o investimento privado?
O encerramento de urgências de obstetrícia e de maternidades, vários dias por
semana ou por mês, em múltiplas localidades? O aumento do custo de vida e dos
preços dos bens alimentares a ritmos raramente vistos? Não! Nenhum destes
factos, nenhuma destas dificuldades, nenhum destes problemas provocou a
presente crise política, provavelmente a pior de todas desde a bancarrota de
2009. O que foi então? O que se passou para que as demissões se sucedam, os
partidos exijam a demissão do Governo, os grupos parlamentares apresentem
moções de censura e se fale em sucessão no executivo e no partido como se fosse
para amanhã?
Este Governo não sabe governar. Distribui o que pode.
Arranja financiamentos europeus. Dá uns subsídios. Adia uns problemas. Cria
mais umas comissões. Mas não sabe governar
A segunda é o
desenvolvimento da luta das classes e o aumento de movimentos de protesto. O
custo de vida está a atingir níveis inesperados. Os salários não aumentam, nem
sequer para cobrir a inflação. Distribuir cheques de 100 ou 200 euros não
compensa o aumento dos preços dos alimentos, dos combustíveis, da energia e das
rendas de casa, sem falar nos juros bancários. De admirar seria a hipótese de
nada acontecer. Mas o Governo não estava à espera. Ministros e secretários de
Estado ficaram nervosos. No partido, há inquietação.
A terceira é a
entrada em vigor, com redobrada energia, da confusão entre despotismo e ética
republicana. Os nossos governantes consideram que, com votos e boas intenções,
podem fazer o que quiserem. Nepotismo no Governo? Favoritismo na administração
pública? Privilégios nos ajustes directos? Emprego de familiares? Encomendas a
correligionários? Cruzamento entre funções políticas e laços familiares?
Indemnizações indevidas, vencimentos duplicados e subvenções desviadas? Tudo
parece permitido a quem tem os votos. Os valores que permitem erradicar os
costumes de antigamente constituem o que vulgarmente se designa por ética
republicana. Mais ainda: servem para excluir os inimigos da República. O pior é
que, entendida como é entre nós, a ética republicana legitima a ideia sinistra
de que os votos do eleitorado e a pertença ao partido legitimam todos os
comportamentos.
A quarta é a
falta de competência para uma das tarefas mais interessantes e mais exigentes
de qualquer governo: a junção entre o imediato e o longo prazo. Entre a questão
prática e a estratégia. Entre o caminho que está diante de nós e o destino do
percurso. Os casos mais inquietantes de que se fala hoje são reveladores. Ao
encerramento das urgências de obstetrícia e das maternidades, o Governo
responde com declarações sobre os problemas estruturais. Aos estrangulamentos
crescentes do Serviço Nacional de Saúde, o Governo garante que se trata de
problemas estruturais e que só com reformas a longo prazo se poderá ver o
melhoramento. A dificuldade de recrutar e distribuir professores e médicos
justifica-se com a existência de problemas estruturais. A infâmia do trabalho
imigrante clandestino e do tráfico de mão-de-obra resulta de deficiências
estruturais. Da água às florestas, dos preços dos alimentos aos custos de
electricidade e gás, tudo depende de questões estruturais e só se resolverão
com tempo e reformas estruturais. E sustentáveis, como dizem. Assim se adiam e
deixam de resolver problemas concretos.
Perante a falta
de enfermeiros e diante do trabalho ilegal nas culturas intensivas, os
governantes sentem-se desarmados e julgam que os problemas são sempre estruturais
e de longo prazo. O primeiro reflexo consiste em criar uma superestrutura, um
observatório, uma comissão, um conselho e uma autoridade. O que exige que
previamente se deva elaborar uma sofisticada estratégia, assim como um plano a
médio e longo prazo. O que só fará sentido com uma visão “holística” dos
problemas. Ou uma abordagem “global, transversal, multidisciplinar e
sustentável”. Com tantos anos em funções, os governantes não se dão conta de
que estes argumentos já não convencem. A sua presença à frente dos ministérios
transformou-se num problema estrutural.
A quinta é a
falta de percepção das dificuldades dos cidadãos perante os serviços públicos,
as autoridades, as instituições, as grandes empresas de serviços e os órgãos de
governo. O melhor exemplo desta insuficiência governamental é o do gás e da
electricidade. As facturas são absolutamente incompreensíveis. A explicação dos
enormes aumentos é hermética. É difícil encontrar um cidadão que tenha
percebido o que se passou com estes serviços e com a existência de dois ou mais
mercados paralelos, com preços díspares e muito diferentes.
A luta pela sucessão atingiu graus de violência política
quase inéditos
A sexta é a
revelação de uma evidência: o Governo não sabe o que fazer com uma maioria
absoluta. Na ideia dos governantes e em poucas palavras, esta última resume-se
a um princípio ou uma norma: quem tem os votos manda. E faz o que lhe apetece.
A sétima reside
na agitação partidária que se instalou tão rapidamente. Parece ter sido dado o
recado: está aberta a sucessão, estão em jogo empregos e cargos, recomeçou o
leilão de adjudicações directas e dos concursos com fotografia. Alguns membros
do Governo e dirigentes do PS estão a revelar-se mentirosos, covardes e
velhacos como raramente se viu na história recente. A competir em cinismo e
crueldade com os famosos “barões do PSD” de há duas ou três décadas. Fogem às
suas responsabilidades, escondem-se atrás de biombos, deixam cair acusações
discretas contra os seus colegas e instalam verdadeiras armadilhas com meias
palavras, fugas e omissões. A luta pela sucessão atingiu graus de violência
política quase inéditos. O combate pelas nomeações de amigos e familiares
faz-se à vista de todos. A sofreguidão e a ganância transformaram-se em razões
para governar.
Esta parece a
crise das paixões menores de alguns políticos.
O autor é
colunista do PÚBLICO
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