LISBOA
Casas vazias, nómadas digitais, arrendamento, venda: o AL
à espera do regresso dos turistas
Durante os dois anos de pandemia, em Lisboa e Porto, o
Alojamento Local parece ter estagnado ou até diminuído. Com quebras superiores
a 55%, o sector procurou alternativas nos nómadas digitais que escolhem as duas
cidades para passar alguns meses. Enquanto no litoral se espera a recuperação
já este ano, foi no interior que os novos registos mais cresceram nos últimos
dois anos.
André Borges
Vieira e Cristiana Faria Moreira
13 de Fevereiro
de 2022, 21:37
Cristina Azevedo
põe-se à porta do restaurante na Rua dos Remédios, no bairro histórico de
Alfama, em Lisboa, a cumprimentar os turistas que passam, acenando-lhes com a
carta e convidando-os a entrar para experimentar alguma iguaria. Ela anima-se
com algum movimento, depois dos meses duros de pandemia. “Há sempre alguém”,
diz Cristina, que perdeu o trabalho de recepcionista numa pensão da Rua São
João da Praça, que “não aguentou o impacto” da pandemia. Mas, a meras ruas de
distância, o cenário é mais desanimador. Na sua loja de artesanato, Mafalda
Costa lamenta a falta da correria de outros tempos num bairro hoje
“completamente parado”. O restaurante da frente fechou, assim como outros
estabelecimentos, levando dali o movimento habitual. “É outro mundo. O bairro
perdeu vida”, diz a lojista que ali tem o negócio há oito anos.
Fecharam alguns
alojamentos locais. Muitos estarão para venda, nota Mafalda. Outros estão
fechados ou arrendados por alguns meses à espera do regresso dos turistas. Por
esta altura, são os forasteiros mais jovens que se passeiam pelo bairro, mas
“não são grandes compradores”, repara a lojista.
A pandemia
provocou um travão a fundo num sector que crescia há vários anos e que mudou —
com benefícios e prejuízos — a face de Lisboa e Porto, que hoje representam 28%
da oferta de alojamento local (AL) no país. Se tomarmos 2019 como referência, o
sector sofreu quebras de facturação na ordem dos 70 a 75%, em 2020, e de 55 a
60% em 2021, tendo sido os dois centros urbanos as zonas mais afectadas.
Na capital, o
crescimento “foi quase nulo”, enquanto no Porto se verificou mesmo uma
diminuição no número de estabelecimentos disponíveis, uma situação única no
país, refere um balanço da Associação de Alojamento Local em Portugal (ALEP).
Nos últimos dois
anos, o número de alojamentos disponíveis chegou a valores mais próximos de
2018 (7288) do que de 2019 (8589). Dependendo da fonte, o número de registos varia,
mas será seguro concluir que, no final de 2021, o Porto tinha menos de oito mil
apartamentos disponíveis para turismo, ainda que o Registo Nacional de
Alojamento Local (RNAL) contabilizasse mais.
De acordo com a
ALEP, estes dados oficiais “não reflectem” a realidade do AL, tanto no Porto
como em Lisboa, uma vez que a redução registada nas plataformas de reserva é
“muito superior” à oficial.
Isso mesmo
revelam, por exemplo, os dados da Plataforma da Taxa Municipal Turística,
cedidos pela Câmara do Porto. A 31 de Dezembro de 2021, o município somava 7781
apartamentos nesta plataforma, embora no RNAL estivessem contabilizados 8522.
Esta diferença
pode ainda ser justificada por não ter existido comunicação por parte dos
proprietários dos negócios ao RNAL, embora o tenham feito à plataforma da taxa
turística, ou até que outros alojamentos tenham cessado a actividade noutros
anos, não tendo os dados sido actualizados no registo nacional.
A autarquia
detalha ainda que nos últimos dois anos se verificaram 1552 cancelamentos de
actividade (908 em 2020 e 644 em 2021). Os números avançados pela ALEP são
ligeiramente superiores: 1779. Os abandonos da actividade foram, por isso,
superiores às comunicações de novas aberturas, que, segundo o RNAL, foram 1615
(695 em 2020 e 920 em 2021).
Crescimento
“quase nulo” na capital
Este mesmo
contexto pode ser aplicado na capital. A associação nota que em 2020 e 2021
houve um número similar de cancelamentos (1022) e novas aberturas (1066), o que
levou “a um crescimento quase nulo e uma renovação saudável, já que foram
substituídos registos nas zonas históricas com maior concentração por novos
registos em zonas fora das áreas turísticas”. O RNAL mostra que, entre Janeiro
de 2020 e o mesmo mês de 2022, a freguesia da Estrela foi aquela onde mais
novos registos se fizeram (192), seguida por Arroios (107) e Penha de França
(91).
Em 2020, o AL
seguia a tendência de decrescimento a que se assistia no Porto (passou de
19.478 alojamentos, em 2019, para 19.356, em 2020) quando, nesse ano, foram
cancelados 601 registos e surgiram 489 novos. Em 2021, porém, esse caminho
havia de ser alterado, quando a suspensão de novas aberturas de AL na capital
entrou em discussão em plena campanha eleitoral das autárquicas. Nesse ano,
verificaram-se mais 571 aberturas e 421 cancelamentos. O anúncio de que no
final do ano os novos registos poderiam vir a ser suspensos provocou um “pico”,
como de resto acontece sempre que a discussão sobre a definição de mais áreas
de contenção ganha novo fôlego.
Actualmente, os
números oficiais dizem que a capital tem mais de 19.700 alojamentos. No
entanto, mais de 3500 (cerca de 18%) não estarão activos, nota a ALEP. Isto
porque cerca de “2000 propriedades anunciadas nas plataformas” desapareceram,
embora o seu registo não tenha sido cancelado. E haverá ainda “1500
registos-fantasmas criados pela forma como os anúncios das suspensões foram
feitos nos últimos anos”.
Na capital,
continua a discutir-se a suspensão de novas aberturas nas freguesias da cidade.
A proposta é que, onde por cada 100 casas de alojamento tradicional haja duas e
meia dedicadas ao AL, estas sejam suspensas até o regulamento municipal ser
revisto. No Porto, chegaram a ser definidas, e aprovadas pela câmara, zonas de
contenção, mas acabaram suspensas, nunca tendo entrado em vigor.
Negócios
reinventados
Não é claro o que
aconteceu a estes imóveis que desapareceram das plataformas. Podem estar
fechados à espera de melhores dias, terem sido vendidos, colocados no mercado
de arrendamento tradicional ou no de média duração, para “estudantes,
profissionais deslocados, nómadas digitais e trabalhadores remotos”, para “para
pessoas em tratamento hospitalar e familiares” ou pessoas em “situações de
divórcio e obras”, como relatam vários proprietários e gestores de AL.
Ana Cunha, que há
uma década tem negócios no sector, foi obrigada a “reinventar-se”. Aproveitou
para vender uma das suas casas no Príncipe Real, como já era intenção mesmo
antes da pandemia, e foi arrendando outras ao mês para os “nómadas”. “Começaram
a aparecer muitos estrangeiros em Lisboa a trabalhar remotamente. Numa das
casas está um senhor que era para estar só um mês e acabou por ficar. À
partida, sai em Maio e a casa volta ao alojamento local”, conta.
Ana tem uma casa
sua em Lisboa e gere outras seis — três em Sesimbra e três nos bairros da Graça
e Mouraria — de outros proprietários. Em 2020, já em pandemia, uma das casas de
Sesimbra, normalmente arrendada só no Verão, esteve três meses com uma família
que procurava mar e mais espaço, depois de alguns tratamentos médicos.
Os negócios foram
sendo adaptados a novas necessidades para tentar também colmatar perdas. Na
Homing, empresa que gere hoje cerca de 300 apartamentos em Lisboa, Porto e
Algarve, a pandemia provocou uma perda de cerca de 40 propriedades. “Saíram
umas, entraram outras”, explica João Bolou Vieira, presidente executivo da
empresa. Algumas foram vendidas, outras para arrendamento tradicional, o que
levou a empresa a começar na área da mediação imobiliária para fazer face à
grande quebra de facturação. “Passámos de mais de quatro milhões de euros em
volume de negócios em 2019 para nem um milhão em 2020. Foi uma brutalidade”,
diz.
Durante a
pandemia, a Homing fez parcerias com empresas para receber trabalhadores nas
suas casas no Parque das Nações, por exemplo, que acabaram por ocupá-las por
um, dois meses.
No Norte, Rita
Almeida, responsável pelos quatro apartamentos do Inside Porto Apartments, foi
também recebendo hóspedes em teletrabalho, embora não ficassem “mais de uma
semana”.
Diana Serrano,
responsável pelo Oporto Lux Apartment, na Rua do Pinheiro, uma pequena artéria
da Baixa portuense onde há mais AL do que prédios, conseguiu passar pelos dois
últimos anos sem encerrar nenhum dos 12 apartamentos. Um dos caminhos
escolhidos foi optar por “rendas temporárias de meio ano”. Por esta altura, no
ano passado, tinha “apartamentos T0 já com despesas” arrendados por 500 euros,
quando a taxa de ocupação estava a 30%, mesmo com os preços “a metade” de
valores pré-pandemia. Agora, a ocupação ronda os 60%, mas os preços continuam
muito abaixo dos que eram antes praticados.
Na mesma rua, a
fazer esquina com a Mártires da Liberdade, está o Indulge Porto Flats com seis
apartamentos em AL. A gerente do negócio, Cristina Pereira, preferiu manter o
negócio sem adaptações a outros usos. Mas para isso teve de enfrentar períodos,
sobretudo em 2020, sem qualquer cliente. Ainda equacionou entrar no
arrendamento a longo prazo, mas o receio venceu. “Os equipamentos ficam em más
condições. Aumenta o desgaste”, afirma.
Em Lisboa e no
Porto, os municípios criaram programas para aliciar privados a arrendarem os
seus imóveis às autarquias, que, por sua vez, os disponibilizariam aos cidadãos
que se candidatassem aos seus programas de habitação acessível. No entanto,
acabaram por ter fraca adesão.
Expansão do
negócio
Com alguns AL a
encerrarem, houve quem aproveitasse para expandir o negócio. Foi o caso de
Duarte Santos, que comprou dois novos apartamentos a quem desistiu do sector.
Com o ano de 2019 a ser um dos melhores, adivinhava um 2020 “excepcional”, mas
em Março a facturação havia de cair “a pique”. Ainda assim, aproveitou a
paragem para fazer melhorias noutros apartamentos e para investir. Aguarda
agora a retoma do sector.
Filipa Maia tem
uma visão mais abrangente dos danos causados pela pandemia. À frente da Most,
uma empresa de limpeza especializada em AL, viu a facturação cair para zero de
um dia para o outro. Antes do primeiro confinamento, a sua equipa tinha cerca
de 400 apartamentos para limpar. “Ficamos sem nenhum.” Em 2020 redefiniu
estratégias e virou-se para outros sectores. Só no ano seguinte voltou com mais
força ao AL, acumulando agora clientes de outras áreas. Ainda que note já uma
retoma no sector, ainda não chegou aos números do passado. “Agora temos 200
apartamentos para limpar”, afirma. Parte desses serviços são em alojamentos que
se tornaram escritórios de pequenas empresas.
À espera da
recuperação
Apesar das
dificuldades dos últimos dois anos, os proprietários acreditam que 2022 será de
recuperação. No último Verão, Cristina Pereira teve taxas de ocupação nos
valores pré-pandemia — e até mais elevados. Ainda assim, com preços inferiores
aos que eram praticados.“Mesmo a trabalhar a 100% no Verão diminuímos a
facturação em 30%”, afirma. <_o3a_p>Paulatinamente, o objectivo é repor
os valores: “Já temos muitas reservas com preços mais altos.”
Na capital, o AL
representava, em 2019, 46% das dormidas turísticas em Lisboa, segundo a ALEP.
Em 2020, chegou mesmo a ultrapassar a hotelaria, passando a ter um peso de
50,4% das dormidas”, refere a associação.
No Porto, o AL
representa mais de 60% das dormidas na cidade, nota Eduardo Miranda. Por isso,
“o AL vai ser o motor de recuperação do turismo e da própria economia da
cidade”, acredita.
Em Janeiro, Ana
Cunha já começou a receber reservas para Abril e para os meses de Verão, num
sinal de que a capital continuará a ser um destino desejo para muitos. “Penso
que este ano vai haver recuperação. As pessoas estão ávidas de viajar.”
Registos cresceram no interior do país
Embora se
concentrem atenções no impacto que o Alojamento Local (AL) tem gerado nos
centros urbanos de Lisboa e Porto, estes concentram cerca de 28% da oferta
deste tipo de negócio. Se durante a pandemia o crescimento de AL nestas duas
cidades praticamente estagnou ou até diminuiu, o interior do país viu crescer o
interesse nesta modalidade de alojamento.
De acordo com as
contas da Associação de Alojamento Local em Portugal, foram os distritos de Bragança
(mais 50% de registos), Guarda (mais 47%), Portalegre (36%) e Vila Real (32%)
que registaram um maior crescimento de novas aberturas.
Ainda assim, são
números com dimensões muito distintas das verificadas em Lisboa e Porto. Em
todo o distrito de Bragança, por exemplo, estão inscritos no registo nacional
(RNAL) 414 alojamentos. Na Guarda são 508, em Portalegre, 448, e, em Vila Real,
553. “Nos destinos mais inovadores como o interior, surf e natureza, o AL chega
a representar mais de 70% das dormidas”, nota ainda a ALEP, frisando que, em
todo o país, há “mais de 55 mil famílias” que “dependem directamente do AL”. A
maioria, diz, actua como particular ou microempresa.
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