segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Casas vazias, nómadas digitais, arrendamento, venda: o AL à espera do regresso dos turistas

 



LISBOA

Casas vazias, nómadas digitais, arrendamento, venda: o AL à espera do regresso dos turistas

 

Durante os dois anos de pandemia, em Lisboa e Porto, o Alojamento Local parece ter estagnado ou até diminuído. Com quebras superiores a 55%, o sector procurou alternativas nos nómadas digitais que escolhem as duas cidades para passar alguns meses. Enquanto no litoral se espera a recuperação já este ano, foi no interior que os novos registos mais cresceram nos últimos dois anos.

 

André Borges Vieira e Cristiana Faria Moreira

13 de Fevereiro de 2022, 21:37

https://www.publico.pt/2022/02/13/local/noticia/casas-vazias-nomadas-digitais-arrendamento-venda-al-espera-regresso-turistas-1995202?fbclid=IwAR3BySKUewj6uLek9GVJxLQeRnuTKeMccHqEaKUoOzm1ApRqYbarrfOml1M

 

Cristina Azevedo põe-se à porta do restaurante na Rua dos Remédios, no bairro histórico de Alfama, em Lisboa, a cumprimentar os turistas que passam, acenando-lhes com a carta e convidando-os a entrar para experimentar alguma iguaria. Ela anima-se com algum movimento, depois dos meses duros de pandemia. “Há sempre alguém”, diz Cristina, que perdeu o trabalho de recepcionista numa pensão da Rua São João da Praça, que “não aguentou o impacto” da pandemia. Mas, a meras ruas de distância, o cenário é mais desanimador. Na sua loja de artesanato, Mafalda Costa lamenta a falta da correria de outros tempos num bairro hoje “completamente parado”. O restaurante da frente fechou, assim como outros estabelecimentos, levando dali o movimento habitual. “É outro mundo. O bairro perdeu vida”, diz a lojista que ali tem o negócio há oito anos.

 

Fecharam alguns alojamentos locais. Muitos estarão para venda, nota Mafalda. Outros estão fechados ou arrendados por alguns meses à espera do regresso dos turistas. Por esta altura, são os forasteiros mais jovens que se passeiam pelo bairro, mas “não são grandes compradores”, repara a lojista.

 

A pandemia provocou um travão a fundo num sector que crescia há vários anos e que mudou — com benefícios e prejuízos — a face de Lisboa e Porto, que hoje representam 28% da oferta de alojamento local (AL) no país. Se tomarmos 2019 como referência, o sector sofreu quebras de facturação na ordem dos 70 a 75%, em 2020, e de 55 a 60% em 2021, tendo sido os dois centros urbanos as zonas mais afectadas.

 

Na capital, o crescimento “foi quase nulo”, enquanto no Porto se verificou mesmo uma diminuição no número de estabelecimentos disponíveis, uma situação única no país, refere um balanço da Associação de Alojamento Local em Portugal (ALEP).

 

Nos últimos dois anos, o número de alojamentos disponíveis chegou a valores mais próximos de 2018 (7288) do que de 2019 (8589). Dependendo da fonte, o número de registos varia, mas será seguro concluir que, no final de 2021, o Porto tinha menos de oito mil apartamentos disponíveis para turismo, ainda que o Registo Nacional de Alojamento Local (RNAL) contabilizasse mais.

 

De acordo com a ALEP, estes dados oficiais “não reflectem” a realidade do AL, tanto no Porto como em Lisboa, uma vez que a redução registada nas plataformas de reserva é “muito superior” à oficial.

 

Isso mesmo revelam, por exemplo, os dados da Plataforma da Taxa Municipal Turística, cedidos pela Câmara do Porto. A 31 de Dezembro de 2021, o município somava 7781 apartamentos nesta plataforma, embora no RNAL estivessem contabilizados 8522.

 

Esta diferença pode ainda ser justificada por não ter existido comunicação por parte dos proprietários dos negócios ao RNAL, embora o tenham feito à plataforma da taxa turística, ou até que outros alojamentos tenham cessado a actividade noutros anos, não tendo os dados sido actualizados no registo nacional.

 

A autarquia detalha ainda que nos últimos dois anos se verificaram 1552 cancelamentos de actividade (908 em 2020 e 644 em 2021). Os números avançados pela ALEP são ligeiramente superiores: 1779. Os abandonos da actividade foram, por isso, superiores às comunicações de novas aberturas, que, segundo o RNAL, foram 1615 (695 em 2020 e 920 em 2021).

 

Crescimento “quase nulo” na capital

Este mesmo contexto pode ser aplicado na capital. A associação nota que em 2020 e 2021 houve um número similar de cancelamentos (1022) e novas aberturas (1066), o que levou “a um crescimento quase nulo e uma renovação saudável, já que foram substituídos registos nas zonas históricas com maior concentração por novos registos em zonas fora das áreas turísticas”. O RNAL mostra que, entre Janeiro de 2020 e o mesmo mês de 2022, a freguesia da Estrela foi aquela onde mais novos registos se fizeram (192), seguida por Arroios (107) e Penha de França (91).

 

Em 2020, o AL seguia a tendência de decrescimento a que se assistia no Porto (passou de 19.478 alojamentos, em 2019, para 19.356, em 2020) quando, nesse ano, foram cancelados 601 registos e surgiram 489 novos. Em 2021, porém, esse caminho havia de ser alterado, quando a suspensão de novas aberturas de AL na capital entrou em discussão em plena campanha eleitoral das autárquicas. Nesse ano, verificaram-se mais 571 aberturas e 421 cancelamentos. O anúncio de que no final do ano os novos registos poderiam vir a ser suspensos provocou um “pico”, como de resto acontece sempre que a discussão sobre a definição de mais áreas de contenção ganha novo fôlego.

 

Actualmente, os números oficiais dizem que a capital tem mais de 19.700 alojamentos. No entanto, mais de 3500 (cerca de 18%) não estarão activos, nota a ALEP. Isto porque cerca de “2000 propriedades anunciadas nas plataformas” desapareceram, embora o seu registo não tenha sido cancelado. E haverá ainda “1500 registos-fantasmas criados pela forma como os anúncios das suspensões foram feitos nos últimos anos”.

 

Na capital, continua a discutir-se a suspensão de novas aberturas nas freguesias da cidade. A proposta é que, onde por cada 100 casas de alojamento tradicional haja duas e meia dedicadas ao AL, estas sejam suspensas até o regulamento municipal ser revisto. No Porto, chegaram a ser definidas, e aprovadas pela câmara, zonas de contenção, mas acabaram suspensas, nunca tendo entrado em vigor.

 

Negócios reinventados

Não é claro o que aconteceu a estes imóveis que desapareceram das plataformas. Podem estar fechados à espera de melhores dias, terem sido vendidos, colocados no mercado de arrendamento tradicional ou no de média duração, para “estudantes, profissionais deslocados, nómadas digitais e trabalhadores remotos”, para “para pessoas em tratamento hospitalar e familiares” ou pessoas em “situações de divórcio e obras”, como relatam vários proprietários e gestores de AL.

 

Ana Cunha, que há uma década tem negócios no sector, foi obrigada a “reinventar-se”. Aproveitou para vender uma das suas casas no Príncipe Real, como já era intenção mesmo antes da pandemia, e foi arrendando outras ao mês para os “nómadas”. “Começaram a aparecer muitos estrangeiros em Lisboa a trabalhar remotamente​. Numa das casas está um senhor que era para estar só um mês e acabou por ficar. À partida, sai em Maio e a casa volta ao alojamento local”, conta.

 

Ana tem uma casa sua em Lisboa e gere outras seis — três em Sesimbra e três nos bairros da Graça e Mouraria — de outros proprietários. Em 2020, já em pandemia, uma das casas de Sesimbra, normalmente arrendada só no Verão, esteve três meses com uma família que procurava mar e mais espaço, depois de alguns tratamentos médicos.

 

Os negócios foram sendo adaptados a novas necessidades para tentar também colmatar perdas. Na Homing, empresa que gere hoje cerca de 300 apartamentos em Lisboa, Porto e Algarve, a pandemia provocou uma perda de cerca de 40 propriedades. “Saíram umas, entraram outras”, explica João Bolou Vieira, presidente executivo da empresa. Algumas foram vendidas, outras para arrendamento tradicional, o que levou a empresa a começar na área da mediação imobiliária para fazer face à grande quebra de facturação. “Passámos de mais de quatro milhões de euros em volume de negócios em 2019 para nem um milhão em 2020. Foi uma brutalidade”, diz.

 

Durante a pandemia, a Homing fez parcerias com empresas para receber trabalhadores nas suas casas no Parque das Nações, por exemplo, que acabaram por ocupá-las por um, dois meses.

 

No Norte, Rita Almeida, responsável pelos quatro apartamentos do Inside Porto Apartments, foi também recebendo hóspedes em teletrabalho, embora não ficassem “mais de uma semana”.

 

Diana Serrano, responsável pelo Oporto Lux Apartment, na Rua do Pinheiro, uma pequena artéria da Baixa portuense onde há mais AL do que prédios, conseguiu passar pelos dois últimos anos sem encerrar nenhum dos 12 apartamentos. Um dos caminhos escolhidos foi optar por “rendas temporárias de meio ano”. Por esta altura, no ano passado, tinha “apartamentos T0 já com despesas” arrendados por 500 euros, quando a taxa de ocupação estava a 30%, mesmo com os preços “a metade” de valores pré-pandemia. Agora, a ocupação ronda os 60%, mas os preços continuam muito abaixo dos que eram antes praticados.

 

Na mesma rua, a fazer esquina com a Mártires da Liberdade, está o Indulge Porto Flats com seis apartamentos em AL. A gerente do negócio, Cristina Pereira, preferiu manter o negócio sem adaptações a outros usos. Mas para isso teve de enfrentar períodos, sobretudo em 2020, sem qualquer cliente. Ainda equacionou entrar no arrendamento a longo prazo, mas o receio venceu. “Os equipamentos ficam em más condições. Aumenta o desgaste”, afirma.

 

Em Lisboa e no Porto, os municípios criaram programas para aliciar privados a arrendarem os seus imóveis às autarquias, que, por sua vez, os disponibilizariam aos cidadãos que se candidatassem aos seus programas de habitação acessível. No entanto, acabaram por ter fraca adesão.

 

Expansão do negócio

​Com alguns AL a encerrarem, houve quem aproveitasse para expandir o negócio. Foi o caso de Duarte Santos, que comprou dois novos apartamentos a quem desistiu do sector. Com o ano de 2019 a ser um dos melhores, adivinhava um 2020 “excepcional”, mas em Março a facturação havia de cair “a pique”. Ainda assim, aproveitou a paragem para fazer melhorias noutros apartamentos e para investir. Aguarda agora a retoma do sector.

 

Filipa Maia tem uma visão mais abrangente dos danos causados pela pandemia. À frente da Most, uma empresa de limpeza especializada em AL, viu a facturação cair para zero de um dia para o outro. Antes do primeiro confinamento, a sua equipa tinha cerca de 400 apartamentos para limpar. “Ficamos sem nenhum.” Em 2020 redefiniu estratégias e virou-se para outros sectores. Só no ano seguinte voltou com mais força ao AL, acumulando agora clientes de outras áreas. Ainda que note já uma retoma no sector, ainda não chegou aos números do passado. “Agora temos 200 apartamentos para limpar”, afirma. Parte desses serviços são em alojamentos que se tornaram escritórios de pequenas empresas.

 

À espera da recuperação

Apesar das dificuldades dos últimos dois anos, os proprietários acreditam que 2022 será de recuperação. No último Verão, Cristina Pereira teve taxas de ocupação nos valores pré-pandemia — e até mais elevados. Ainda assim, com preços inferiores aos que eram praticados.“Mesmo a trabalhar a 100% no Verão diminuímos a facturação em 30%”, afirma. <_o3a_p>​​Paulatinamente, o objectivo é repor os valores: “Já temos muitas reservas com preços mais altos.”

 

Na capital, o AL representava, em 2019, 46% das dormidas turísticas em Lisboa, segundo a ALEP. Em 2020, chegou mesmo a ultrapassar a hotelaria, passando a ter um peso de 50,4% das dormidas”, refere a associação.

 

No Porto, o AL representa mais de 60% das dormidas na cidade, nota Eduardo Miranda. Por isso, “o AL vai ser o motor de recuperação do turismo e da própria economia da cidade”, acredita.

 

Em Janeiro, Ana Cunha já começou a receber reservas para Abril e para os meses de Verão, num sinal de que a capital continuará a ser um destino desejo para muitos. “Penso que este ano vai haver recuperação. As pessoas estão ávidas de viajar.”

 

Registos cresceram no interior do país

Embora se concentrem atenções no impacto que o Alojamento Local (AL) tem gerado nos centros urbanos de Lisboa e Porto, estes concentram cerca de 28% da oferta deste tipo de negócio. Se durante a pandemia o crescimento de AL nestas duas cidades praticamente estagnou ou até diminuiu, o interior do país viu crescer o interesse nesta modalidade de alojamento.

 

De acordo com as contas da Associação de Alojamento Local em Portugal, foram os distritos de Bragança (mais 50% de registos), Guarda (mais 47%), Portalegre (36%) e Vila Real (32%) que registaram um maior crescimento de novas aberturas.

 

Ainda assim, são números com dimensões muito distintas das verificadas em Lisboa e Porto. Em todo o distrito de Bragança, por exemplo, estão inscritos no registo nacional (RNAL) 414 alojamentos. Na Guarda são 508, em Portalegre, 448, e, em Vila Real, 553. “Nos destinos mais inovadores como o interior, surf e natureza, o AL chega a representar mais de 70% das dormidas”, nota ainda a ALEP, frisando que, em todo o país, há “mais de 55 mil famílias” que “dependem directamente do AL”. A maioria, diz, actua como particular ou microempresa. 

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