ANÁLISE
A Rússia fez a Guerra Fria regressar à Europa, com guerra
José Pedro
Teixeira Fernandes
24 de Fevereiro
de 2022, 15:47
1. Na madrugada
de 24 de Fevereiro de 2022, a Guerra Fria regressou da pior maneira: foi
trazida pela Rússia com uma guerra na Europa. O que hoje vemos é uma espécie de
reatar violento do processo de dissolução da União Soviética. No final de 1991,
a generalidade do mundo — e em particular a Europa — assistiu com um misto de
surpresa, satisfação e alívio ao final da União Soviética, sobretudo pela forma
rápida e pacífica como ocorreu. Mikhail Gorbatchov ficou para a história como o
Presidente soviético que permitiu esse final pacífico. Sabemos também que para
muitos russos a imagem que ficou é outra, de fraqueza e de humilhação. Vladimir
Putin, que instrumentaliza esses sentimentos, quer ficar para a história como
aquele que reverteu esses acontecimentos. Fá-lo através de um acto de vingança
que ultrapassa tudo o que poderia ser considerado razoável face a legítimos
receios de segurança russos.
2. É preciso
dizê-lo claramente. Nada justifica a invasão russa da Ucrânia, nem a questão do
alargamento da NATO, nem a questão das minorias russas no exterior, nem os
sentimentos de a Rússia ter sido humilhada nos seus interesses de segurança
pelo Ocidente. Podemos discutir se o Ocidente tivesse feito as coisas de outra
maneira no passado — e se a Ucrânia tivesse optado por outro rumo político como
a neutralidade —, não estaríamos hoje numa situação diferente, sem este
desfecho trágico. Podemos discutir se a atitude da Ucrânia de mudar a sua
Constituição em 2019, para inscrever a obrigatoriedade de adesão à NATO e à
União Europeia aos seus órgãos de soberania, não foi a mais prudente e adequada
politicamente (e não foi). Todavia, se é razoável discutir tudo isso, nenhum
desses argumentos pode ser agora considerado justificação para esta guerra.
Assim, a versão russa de estar em curso uma operação humanitária para proteger
minorias russas em Donbass e também uma operação especial para eliminar ameaças
à segurança da Rússia, desarmando-a à força, não tem legitimidade.
3. Apesar de o
discurso oficial da NATO de ter a porta aberta à adesão da Ucrânia, tal adesão
não estava a ser seriamente considerada nesta altura (e provavelmente no futuro
discernível também não). É verdade que a NATO insistiu nessa retórica ao longo
dos últimos meses erradamente, dando argumentos à Rússia para se sentir
ameaçada. Mas a Rússia sabia também que a perda de controlo do Governo da
Ucrânia sobre o território de Donbass (Repúblicas Populares de Lugansk e
Donetsk agora reconhecidas pela Rússia), bem como a anexação da Crimeia, na
prática, impediam tal adesão, mesmo que a contragosto de muitos na NATO. A
reforçar essa ideia está o que se passou na última conferência de segurança de
Munique, onde o Presidente Volodimir Zelenskii pediu um calendário para a
adesão à organização, mas ninguém lho deu. Assim, se houvesse razoabilidade da
Rússia, procuraria conseguir o resto dos seus objectivos pelas negociações e
pela diplomacia. Todavia, optou por um oportunista ataque militar alargado à
vizinha Ucrânia, desrespeitando totalmente a soberania do Estado vizinho. Neste
contexto, invocar para a operação militar o artigo 51.º da Carta das Nações
Unidas que estabelece que “Nada na presente Carta prejudicará o direito
inerente de legítima defesa individual ou colectiva” não tem qualquer sentido
face ao Direito Internacional.
4. Com a invasão
da Ucrânia não estamos no mesmo patamar da guerra da Geórgia, nem da guerra
híbrida que até agora existia, sobretudo no Leste ucraniano, onde a Rússia não
fazia abertamente operações militares. Alimentava antes uma guerra por
procuração através de milícias, grupos paramilitares e outras operações no
terreno, incluindo ciberataques. Agora é outra coisa. Aquilo a que hoje se está
a assistir é a um uso sem constrangimentos de legalidade internacional, do
instrumento militar para obter objectivos políticos. Se até agora as questões
de segurança levantadas pela Rússia tinham tido alguma compreensão de alguns
Estados da União Europeia, como mostraram as tentativas diplomáticas da França
e da Alemanha — o que foi uma atitude política sensata —, essa porta
inevitavelmente fechou-se, pelo menos no imediato. Se algumas das preocupações
de segurança russas eram até compreensíveis, a Rússia, ao optar pela guerra,
quebrou a ponte com os seus interlocutores europeus e ocidentais. Tornou
inevitável uma forte reacção de condenação, incluindo sanções e outras medidas
(veremos exactamente quais nos próximos tempos). Mesmo os Estados mais
sensíveis aos interesses económicos e políticos russos ficam agora na obrigação
de o fazer.
5. É provável que
a Rússia tenha uma clara vitória militar neste ataque, dada a desproporção de
forças aéreas, terrestre e navais face ao Exército da Ucrânia. (Não sabemos
nesta altura a dimensão exacta, duração e contornos de todas as operações
militares em curso.) Todavia, cometeu, provavelmente, um grave erro político e,
sobretudo, estratégico, pelas consequências que irá desencadear a nível
internacional, por muito que se diga indiferente a elas. Ao fazer regressar a
Europa à Guerra Fria com esta invasão militar, é inevitável que, para muitos
europeus, no sobretudo no centro e Leste europeu, ressurja em força a ideia de
que uma nova cortina de ferro se começou a abater sobre a Europa. A original, a
que Churchill se referia no discurso de 1946, era do Báltico ao Adriático. A
nova, que parece estar a ser construída nesta altura, está a cair sobre a
Bielorrússia (que já é um aliado russo) e a Ucrânia, chegando à Moldava. Vale a
pena recordar aqui Paul-Henri Spaak, o político belga que foi um dos fundadores
das Comunidades Europeias e secretário-geral da NATO na década de 1950. Este
dizia (ironicamente) que Estaline tinha sido um dos unificadores da Europa. A
afirmação é estranha e até bastante paradoxal, mas tinha em vista o medo que
este incutiu nos europeus, unindo-os de uma forma que não seria possível sem
essa grave ameaça.
6. A história
europeia da segunda metade do século XX mostra, assim, como um inimigo poderoso
e uma ameaça de segurança graves são factores de unidade. Vladmir Putin, que
não é Estaline, nem tem o mesmo poder da União Soviética após a II Guerra
Mundial, está empenhado em recuperar a grandiosidade do Estado russo, desde os
czares aos sovietes. Com este recurso cru à guerra, levou longe de mais a
imagem de um estratego imbatível. Para além da contestação que possa ter na
Rússia, se as baixas dos seus soldados forem elevadas, arrisca-se a unir os
europeus e o Ocidente contra si, de uma forma que nunca estiveram nos últimos
tempos, mesmo após a guerra da Geórgia e a anexação da Crimeia. Não faltarão
argumentos para os Estados da NATO e da União Europeia reforçarem as suas
defesas e incrementarem investimentos militares. Mesmo os europeus mais
renitentes concordarão com tal necessidade. Se a NATO estava obsoleta, ou “em
morte cerebral”, na expressão de Emanuel Macron em 2019, Vladimir Putin deu-lhe
uma razão de existir tão antiga quanto a própria organização: conter a Rússia.
7. Em 2022, a
Guerra Fria voltou à Europa da forma mais dramática possível. Claro que nunca
será exactamente igual ao que se passou entre 1945-1989, pelas próprias
circunstâncias europeias e mundiais do século XXI. Hoje a Rússia pode contar
com o apoio político, ou, pelo menos, a compreensão da China, que é já uma
potência mundial o que lhe dá uma margem de manobra adicional (certamente isso
entrou nos cálculos russos de ataque à Ucrânia). No entanto, a China tem os
seus próprios objectivos, que não são exactamente os dos russos e estão
largamente na sua zona envolvente do Indo-Pacífico. Veremos qual será
exactamente a sua atitude, nomeadamente quanto ao aliviar das sanções
económicas à Rússia. Entramos numa espiral de acontecimentos de múltiplas
consequências, muitas das quais imprevisíveis de prever nesta altura. O certo é
que irão mudar o rumo da política internacional dos próximos anos e tornar a
Europa e o mundo lugares ainda mais inseguros.
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