quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

A Rússia fez a Guerra Fria regressar à Europa, com guerra

 



ANÁLISE

A Rússia fez a Guerra Fria regressar à Europa, com guerra

 

José Pedro Teixeira Fernandes

24 de Fevereiro de 2022, 15:47

https://www.publico.pt/2022/02/24/mundo/analise/russia-fez-guerra-fria-regressar-europa-guerra-1996659

 

1. Na madrugada de 24 de Fevereiro de 2022, a Guerra Fria regressou da pior maneira: foi trazida pela Rússia com uma guerra na Europa. O que hoje vemos é uma espécie de reatar violento do processo de dissolução da União Soviética. No final de 1991, a generalidade do mundo — e em particular a Europa — assistiu com um misto de surpresa, satisfação e alívio ao final da União Soviética, sobretudo pela forma rápida e pacífica como ocorreu. Mikhail Gorbatchov ficou para a história como o Presidente soviético que permitiu esse final pacífico. Sabemos também que para muitos russos a imagem que ficou é outra, de fraqueza e de humilhação. Vladimir Putin, que instrumentaliza esses sentimentos, quer ficar para a história como aquele que reverteu esses acontecimentos. Fá-lo através de um acto de vingança que ultrapassa tudo o que poderia ser considerado razoável face a legítimos receios de segurança russos.

 

2. É preciso dizê-lo claramente. Nada justifica a invasão russa da Ucrânia, nem a questão do alargamento da NATO, nem a questão das minorias russas no exterior, nem os sentimentos de a Rússia ter sido humilhada nos seus interesses de segurança pelo Ocidente. Podemos discutir se o Ocidente tivesse feito as coisas de outra maneira no passado — e se a Ucrânia tivesse optado por outro rumo político como a neutralidade —, não estaríamos hoje numa situação diferente, sem este desfecho trágico. Podemos discutir se a atitude da Ucrânia de mudar a sua Constituição em 2019, para inscrever a obrigatoriedade de adesão à NATO e à União Europeia aos seus órgãos de soberania, não foi a mais prudente e adequada politicamente (e não foi). Todavia, se é razoável discutir tudo isso, nenhum desses argumentos pode ser agora considerado justificação para esta guerra. Assim, a versão russa de estar em curso uma operação humanitária para proteger minorias russas em Donbass e também uma operação especial para eliminar ameaças à segurança da Rússia, desarmando-a à força, não tem legitimidade.

 

3. Apesar de o discurso oficial da NATO de ter a porta aberta à adesão da Ucrânia, tal adesão não estava a ser seriamente considerada nesta altura (e provavelmente no futuro discernível também não). É verdade que a NATO insistiu nessa retórica ao longo dos últimos meses erradamente, dando argumentos à Rússia para se sentir ameaçada. Mas a Rússia sabia também que a perda de controlo do Governo da Ucrânia sobre o território de Donbass (Repúblicas Populares de Lugansk e Donetsk agora reconhecidas pela Rússia), bem como a anexação da Crimeia, na prática, impediam tal adesão, mesmo que a contragosto de muitos na NATO. A reforçar essa ideia está o que se passou na última conferência de segurança de Munique, onde o Presidente Volodimir Zelenskii pediu um calendário para a adesão à organização, mas ninguém lho deu. Assim, se houvesse razoabilidade da Rússia, procuraria conseguir o resto dos seus objectivos pelas negociações e pela diplomacia. Todavia, optou por um oportunista ataque militar alargado à vizinha Ucrânia, desrespeitando totalmente a soberania do Estado vizinho. Neste contexto, invocar para a operação militar o artigo 51.º da Carta das Nações Unidas que estabelece que “Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou colectiva” não tem qualquer sentido face ao Direito Internacional.

 

4. Com a invasão da Ucrânia não estamos no mesmo patamar da guerra da Geórgia, nem da guerra híbrida que até agora existia, sobretudo no Leste ucraniano, onde a Rússia não fazia abertamente operações militares. Alimentava antes uma guerra por procuração através de milícias, grupos paramilitares e outras operações no terreno, incluindo ciberataques. Agora é outra coisa. Aquilo a que hoje se está a assistir é a um uso sem constrangimentos de legalidade internacional, do instrumento militar para obter objectivos políticos. Se até agora as questões de segurança levantadas pela Rússia tinham tido alguma compreensão de alguns Estados da União Europeia, como mostraram as tentativas diplomáticas da França e da Alemanha — o que foi uma atitude política sensata —, essa porta inevitavelmente fechou-se, pelo menos no imediato. Se algumas das preocupações de segurança russas eram até compreensíveis, a Rússia, ao optar pela guerra, quebrou a ponte com os seus interlocutores europeus e ocidentais. Tornou inevitável uma forte reacção de condenação, incluindo sanções e outras medidas (veremos exactamente quais nos próximos tempos). Mesmo os Estados mais sensíveis aos interesses económicos e políticos russos ficam agora na obrigação de o fazer.

 

 

5. É provável que a Rússia tenha uma clara vitória militar neste ataque, dada a desproporção de forças aéreas, terrestre e navais face ao Exército da Ucrânia. (Não sabemos nesta altura a dimensão exacta, duração e contornos de todas as operações militares em curso.) Todavia, cometeu, provavelmente, um grave erro político e, sobretudo, estratégico, pelas consequências que irá desencadear a nível internacional, por muito que se diga indiferente a elas. Ao fazer regressar a Europa à Guerra Fria com esta invasão militar, é inevitável que, para muitos europeus, no sobretudo no centro e Leste europeu, ressurja em força a ideia de que uma nova cortina de ferro se começou a abater sobre a Europa. A original, a que Churchill se referia no discurso de 1946, era do Báltico ao Adriático. A nova, que parece estar a ser construída nesta altura, está a cair sobre a Bielorrússia (que já é um aliado russo) e a Ucrânia, chegando à Moldava. Vale a pena recordar aqui Paul-Henri Spaak, o político belga que foi um dos fundadores das Comunidades Europeias e secretário-geral da NATO na década de 1950. Este dizia (ironicamente) que Estaline tinha sido um dos unificadores da Europa. A afirmação é estranha e até bastante paradoxal, mas tinha em vista o medo que este incutiu nos europeus, unindo-os de uma forma que não seria possível sem essa grave ameaça.

 

6. A história europeia da segunda metade do século XX mostra, assim, como um inimigo poderoso e uma ameaça de segurança graves são factores de unidade. Vladmir Putin, que não é Estaline, nem tem o mesmo poder da União Soviética após a II Guerra Mundial, está empenhado em recuperar a grandiosidade do Estado russo, desde os czares aos sovietes. Com este recurso cru à guerra, levou longe de mais a imagem de um estratego imbatível. Para além da contestação que possa ter na Rússia, se as baixas dos seus soldados forem elevadas, arrisca-se a unir os europeus e o Ocidente contra si, de uma forma que nunca estiveram nos últimos tempos, mesmo após a guerra da Geórgia e a anexação da Crimeia. Não faltarão argumentos para os Estados da NATO e da União Europeia reforçarem as suas defesas e incrementarem investimentos militares. Mesmo os europeus mais renitentes concordarão com tal necessidade. Se a NATO estava obsoleta, ou “em morte cerebral”, na expressão de Emanuel Macron em 2019, Vladimir Putin deu-lhe uma razão de existir tão antiga quanto a própria organização: conter a Rússia.

 

7. Em 2022, a Guerra Fria voltou à Europa da forma mais dramática possível. Claro que nunca será exactamente igual ao que se passou entre 1945-1989, pelas próprias circunstâncias europeias e mundiais do século XXI. Hoje a Rússia pode contar com o apoio político, ou, pelo menos, a compreensão da China, que é já uma potência mundial o que lhe dá uma margem de manobra adicional (certamente isso entrou nos cálculos russos de ataque à Ucrânia). No entanto, a China tem os seus próprios objectivos, que não são exactamente os dos russos e estão largamente na sua zona envolvente do Indo-Pacífico. Veremos qual será exactamente a sua atitude, nomeadamente quanto ao aliviar das sanções económicas à Rússia. Entramos numa espiral de acontecimentos de múltiplas consequências, muitas das quais imprevisíveis de prever nesta altura. O certo é que irão mudar o rumo da política internacional dos próximos anos e tornar a Europa e o mundo lugares ainda mais inseguros.

 

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