OPINIÃO
A “fome de poder” de Gouveia e Melo e o país que adora a
“voz de comando”
Gouveia e Melo há três meses não queria “confundir as
coisas”; agora, imbuído sabe-se lá de quê, para lá do seu encantador
egocentrismo, já está disponível para “confundir” o que lhe der na real gana.
Ana Sá Lopes
26 de Dezembro de
2021, 7:07
https://www.publico.pt/2021/12/26/politica/opiniao/fome-gouveia-melo-pais-adora-voz-comando-1989900
Temos metade do
país apaixonada por um homem “alto” que “usa farda” e “tem voz de comando”
(auto-descrição de Gouveia e Melo para justificar a sua popularidade em
entrevista ao Sol). O próximo chefe do Estado-Maior da Armada – e parece que
próximo-o-que-quiser-na-vida – fez um bom trabalho reconhecido por toda a gente
no processo de vacinação. Mas há uma elevada quantidade de portugueses que
cumpre as suas atribuições com sucesso e não suscitam nem paixões nem – na
maioria dos casos – qualquer popularidade ao nível da que Gouveia e Melo
atingiu em tão curto espaço de tempo.
O facto é que,
num instantinho, a pátria “elegeu” Gouveia e Melo como “pai” e isso diz muito
mais da pátria do que do vice-almirante, que do alto do seu incomensurável
narcisismo nos vai oferecendo pérolas como aquela de que tem “fome de vencer”,
como disse na entrevista ao Expresso. A frase é tão boa que merece ser
reproduzida na íntegra: “Sou ambicioso, sim senhor… Olhe, tenho fome de vencer,
podem dizer isso, que tenho fome de vencer e que sou muito ambicioso porque
tenho fome de vencer e não gosto de perder.”
O homem que em
Setembro dizia que não iria para a política mudou de ideias em Dezembro. É
verdade que a mudança ocorreu antes de o seu nome ser finalmente nomeado para
Chefe de Estado-Maior da Armada – depois da trapalhada entre Governo e Marcelo,
quando João Gomes Cravinho tentou demitir Mendes Calado sem que Marcelo
estivesse pelos ajustes. Pode ter a ver com isso. Mas é surreal que quem dizia,
há escassos três meses, que “daria um péssimo político”, que “não estava
preparado para isso” e achava que se devia “separar o que é militar do que é
político, porque são campos de actuação completamente diferentes” venha agora
admitir uma candidatura à Presidência da República, com queixas sobre o
preconceito do espaço público relativamente aos militares. Em Setembro não
havia “necessidade de nenhum militar vir para a política” porque a classe
política era “muito desenvolvida e estruturada” e “os militares devem fazer o
que sabem fazer, que é ser militar, e os políticos devem fazer o que sabem
fazer, que é ser políticos”. Gouveia e Melo há três meses não queria “confundir
as coisas”; agora, imbuído sabe-se lá de quê, para lá do seu encantador
egocentrismo, já está disponível para “confundir” o que lhe der na real gana.
Gouveia e Melo
chama-lhe “apanhar ar fresco”. Por enquanto, vai estar entretido com as funções
de Chefe de Estado-Maior da Armada, mas depois há todo um mundo de
possibilidades, como disse ao Expresso: “Para já quero continuar a ser militar.
Se por algum motivo esse projecto estivesse comprometido, o que é que queria
que eu fizesse? Que me atirasse da janela? Não. Abria a janela e apanhava ar
fresco. E apanhando ar fresco tinha um grau de liberdade diferente.” E pronto:
temos Gouveia e Melo disponível para um “contributo para a sociedade” que pode
passar por um “movimento de cidadania”.
É um facto que
existe uma sociedade – ou parte dela – fascinada com o vice-almirante que vai
para lá do sucesso das inoculações vacinais. O homem atingiu o nível de “pop
star”, provavelmente porque a paróquia adora que, de vez em quando, apareça uma
“voz de comando” do tal “centro pragmático” – Cavaco Silva personificou com
sucesso essa “fome de poder” durante 20 anos, 10 no Governo e outros 10 na
Presidência. Ramalho Eanes esteve 10 anos em Belém, mas depois a tentativa de
entrar na vida partidária com o Partido Renovador Democrático – apesar de
inicialmente bem sucedida – revelou-se um fiasco. Quanto ao marinheiro Gouveia
e Melo, pode perder ou não as graças do mar.
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