ANÁLISE
Quase desaparecida há décadas, a inflação é agora a
sombra que paira sobre a retoma
Com previsões de crescimento acima de 5%, o ano de 2022
pode vir a ser o da confirmação da retoma mais rápida de todas as recessões das
últimas décadas. Um obstáculo, no entanto, ainda pode surgir pela frente: uma inflação
persistente que obrigue o BCE a retirar as ajudas mais rapidamente do que
estava à espera
Sérgio Aníbal
27 de Dezembro de
2021, 0:07
Desemprego em
alta, agravamento de impostos para equilibrar as contas pública ou crescimento
insípido dos salários são várias das preocupações que os portugueses se
habituaram a ter na frente económica durante as últimas duas décadas. Mas com a
inflação, e principalmente com aquilo que esta força o banco central a fazer às
taxas de juro, os motivos para a preocupação não têm sido muitos. Até agora.
Acreditando que o
pior da pandemia já passou, 2022 tem tudo para ser o ano da confirmação de uma
retoma económica forte em Portugal, bem mais rápida do que as que se seguiram
às outras crises do passado. Mas um obstáculo há muito quase desaparecido
ensombra ainda esse cenário benigno: a inflação está, na zona euro, nos máximos
das últimas décadas e, se não recuar nos próximos meses, pode forçar o Banco
Central Europeu a mudar de rumo, ameaçando retirar a uma economia endividada
como a portuguesa um dos apoios de que mais tem beneficiado nos últimos anos.
Depois de cair
8,4% em 2020 e de, durante este ano, ter conseguido crescer já 4,8%, a economia
portuguesa deverá, de acordo com a generalidade das previsões, acelerar no
próximo ano. O Governo aposta num crescimento de 5,5%, o Banco de Portugal ficou
recentemente mais optimista e diz que será de 5,8%, enquanto a Comissão
Europeia, o FMI e a OCDE projectam 5,3%, 5,1% e 5,8%, respectivamente.
As razões por
trás deste optimismo generalizado são fáceis de compreender. Em primeiro lugar,
a forma como as economias já têm vindo a crescer durante este ano, não só em
Portugal mas também na maior parte das economias, parece comprovar a teoria de
que, como aquilo que fez recuar as economias nesta crise foram essencialmente
as medidas de confinamento adoptadas para controlar a pandemia, então, a partir
do momento em que a frente sanitária se resolve, ficam criadas as condições
para que a actividade económica regresse rapidamente ao nível em que se
encontrava antes da pandemia.
Se no caso dos
EUA isso já aconteceu e em muitos países europeus deverá estar a ocorrer no
final de 2021, no caso de Portugal, o regresso do Produto Interno Bruto (PIB)
aos níveis pré-pandemia deverá concretizar-se, de acordo com as últimas
previsões do Banco de Portugal, durante a primeira metade de 2022.
Se tal se vier a
confirmar, será a retoma mais rápida de todas as mais recentes grandes
recessões. Por exemplo, durante a crise que trouxe a troika a Portugal em 2011,
foi preciso esperar sete anos, até 2017, para que o valor do PIB real
regressasse aos níveis de 2010. Agora, a confirmarem-se as previsões, tal
acontecerá no espaço de apenas três anos, com o PIB de 2022 a ser já superior
ao PIB de 2019.
Para esta
expectativa de rapidez na retoma portuguesa contribuem, para além do facto de
se estar à espera de que o choque pandémico esteja a desaparecer, outros
factores. Por um lado, começa a parecer evidente que a economia nacional está
agora, à semelhança do que acontece noutros países, mais adaptada à própria
pandemia, o que se conclui ao verificar que o impacto económico negativo
provocado por cada vaga do vírus tem vindo a ser progressivamente menor.
Depois, a
economia portuguesa está a poder contar desta vez com um forte apoio da
política orçamental. Os Estados – e o português não foi excepção – abriram os
cordões à bolsa e adoptaram medidas nunca vistas de apoio às empresas e às
famílias, a principal das quais foi o apoio dado à manutenção do emprego via
layoff simplificado. Em Portugal, o saldo orçamental passou de um excedente
para um défice de 5,8% em 2020 e a dívida pública ultrapassou os 130% do PIB,
mas a economia – e principalmente o emprego – resistiram muito melhor do que
aquilo que se poderia pensar perante uma travagem forçada da actividade tão
significativa.
Este apoio do
Estado foi possível porque, desta vez, ao contrário do que aconteceu em 2011,
nem a União Europeia exigiu austeridade ao país, tendo suspendido mesmo a
aplicação das regras orçamentais, nem os mercados deram sinais de poderem
penalizar Portugal com subidas das taxas de juro exigidas para emprestar
dinheiro ao país.
Em 2022, a
suspensão das regras orçamentais europeias irá manter-se e, para além disso,
deverá ser no próximo ano que arrancará em força a execução do Plano de
Recuperação e Resiliência, a forma encontrada nesta crise pela União Europeia
para dar aos Estados-membros com mais dificuldades de financiamento a
possibilidade de investir para recuperar do impacto negativo sofrido com a
pandemia. Isso deverá dar um impulso de curto prazo à economia portuguesa que
não teve no passado.
A contar com a
ajuda do BCE
Noutro âmbito, a
crise tem sido atravessada com a ajuda daquela que é a política mais
expansionista a que já se assistiu na Europa. Para ajudar Estados, empresas e
famílias a evitarem ainda maiores dificuldades, o BCE colocou em velocidade
máxima as suas máquinas de imprimir dinheiro. Por um lado, tem as taxas de juro
a que empresta dinheiro aos bancos a zero, algo que se reflecte, por exemplo,
nos valores mínimos a que se encontram as taxas Euribor, usadas como referência
na maior parte dos empréstimos em Portugal. E, para além disso, aumentou ainda
mais o volume das compras extraordinárias de títulos de dívida pública com que,
desde 2015, tem vindo a ajudar os Estados, como o português, a obterem crédito
a taxas de juro historicamente baixas.
Ao contrário dos bancos centrais dos EUA e do Reino Unido
que já estão a recuar rapidamente nos estímulos que oferecem às economias, para
já, no BCE, a intenção continua a ser a de dar esses passos de forma moderada,
reduzindo as compras de dívida já a partir de Janeiro, mas de forma progressiva
até ao final de 2024, e anunciando para breve eventuais subidas dos juros.
As políticas do
BCE têm permitido, desde as primeiras semanas da crise, que os aumentos dos
encargos da dívida, como o que se verificou de forma brusca em 2011, não sejam
desta vez um problema para os agentes económicos portugueses, públicos e
privados. E a expectativa, pelo menos de acordo com o cenário-base traçado
neste momento pelo BCE, é que em 2022, embora comece a retirar progressivamente
as suas ajudas, abrandando, por exemplo, o ritmo a que compra títulos de dívida
pública, a política monetária continue a ajudar a economia a recuperar.
É aqui, contudo,
que a ameaça da inflação paira sobre este cenário benigno para a economia
portuguesa.
Na segunda metade
de 2021, a taxa de inflação subiu bastante na maior parte das economias
mundiais. Na zona euro, a variação homóloga dos preços chegou, em Novembro, aos
4,9%, o valor mais alto desde que a moeda única foi criada, em 1999. Portugal
foi um dos países em que subiu menos – chegou a uma taxa de 2,7% em Novembro –,
mas isso pouco conta para aquilo que o seu banco central, o BCE, irá decidir
fazer.
Os bancos
centrais, quando colocados perante uma taxa de inflação alta, que ponha em
causa o seu objectivo de estabilidade de preços, aquilo que costumam fazer é
tentar refrear a economia, retirando quaisquer medidas extraordinárias de
estímulo, como a compra de títulos de dívida pública, e, eventualmente, fazendo
subir as taxas de juro.
Ao contrário dos
bancos centrais dos EUA e do Reino Unido que já estão a recuar rapidamente nos
estímulos que oferecem às economias, para já, no BCE, a intenção continua a ser
a de dar esses passos de forma moderada, reduzindo as compras de dívida já a
partir de Janeiro, mas de forma progressiva até ao final de 2024, e anunciando
para breve eventuais subidas dos juros.
A entidade
liderada por Christine Lagarde, crescentemente pressionada a agir,
especialmente pela opinião pública na Alemanha, onde a taxa de inflação já
ultrapassa os 6%, mantém esta calma porque acredita que a subida da inflação a
que actualmente se assiste é criada essencialmente por factores temporários e
que brevemente irá começar a descer.
Esta é, no
entanto, uma convicção que, cada vez mais, à medida que a subida da inflação se
prolonga, começa a ser posta em causa. “Há duas coisas que neste momento são
consensuais entre os economistas. A primeira é que uma boa parte da inflação
pode ser explicada por fenómenos temporários, como os desequilíbrios
orçamentais ou a perturbação das cadeias de abastecimento. E que, uma vez
normalizados estes fenómenos, ocorrerá um certo recuo da inflação. A outra é
que, mesmo assim, existe a preocupação de que, a partir do momento em que esses
fenómenos se revelem mais persistentes, se entre numa espiral de aumentos de
salários, que essa, sim, pode levar o BCE a agir”, explica o economista da Nova
SBE Pedro Brinca.
A evolução da
própria expectativa do BCE em relação à inflação tem sido evidente. Nas últimas
previsões que apresentou, o banco central passou a sua previsão para a inflação
em 2022 de 1,7% para 3,2%. E para os anos seguintes, a expectativa é a de que
este indicador se situe em 1,8%, mais perto da meta dos 2% do que os 1,5% antes
projectados. Um sinal de que pode estar agora bastante mais perto de começar a
inverter o rumo da sua política monetária.
Ricardo Reis,
professor na London School of Economics e consultor na Reserva Federal (Fed) e
no Banco de Inglaterra, acredita que os próximos meses serão decisivos para a
condução da política monetária na Europa. “Logo na primeira metade de 2022,
vamos assistir a grandes novidades nesta matéria, a uma grande redefinição do
banco central em relação à inflação. Vamos chegar ao final deste ano com a
inflação acima dos 4% e isso faz com que estejamos perante um período diferente
na história do BCE e que este seja um teste sério àquilo que são as suas
prioridades”, afirma este economista, que não acredita que tudo possa acabar
por ser resolvido com o simples desaparecimento dos factores temporários que
actualmente fazem subir a inflação. “Uma das razões para se ter chegado a esta
situação, para além dos factores externos como a subida do preço do petróleo,
foi que o BCE tolerou esta alta inflação, mantendo uma política muito
expansionista, a mais expansionista de sempre”, sublinha.
“Agora, na
primeira metade de 2022, vamos ver se temos azar ou sorte em alguns desses
factores temporários, ver como eles evoluem. Mas vamos também ver até que ponto
estes meses de inflação alta fizeram o BCE perder credibilidade”, considera.
Ricardo Reis
defende que, para o BCE, “o grande teste será saber se vai reverter as
políticas [expansionistas]”. “Já não basta que os factores temporários
desapareçam. Penso que já não é possível evitar que a inflação fique
persistentemente mais alta sem que o BCE passe à acção, eventualmente subindo
as taxas de juro”, afirma.
Nas novas
previsões que apresentou para a economia portuguesa em Dezembro, o Banco de
Portugal traçou um cenário de crescimento forte em 2022 e 2023, mas fê-lo
assumindo como pressuposto que o BCE se irá manter firme nos seus actuais planos
de retirada muito lenta das medidas expansionistas e que, por isso, tanto as
taxas de juro Euribor como as taxas de juro da dívida pública portuguesa se
irão manter praticamente inalteradas nos próximos anos.
Se este cenário
benigno não se concretizar e o BCE acabar mesmo por ceder à pressão e recuar
mais rápido, o efeito na economia portuguesa pode ser significativo, considera
Pedro Brinca. “Pode ser muito preocupante para diversos países, incluindo
Portugal”, afirma, assinalando que os problemas não seriam só para o Estado.
“As pessoas não estão habituadas à magnitude de alteração das taxas que é
necessária para combater a inflação”, alerta, assinalando que Portugal tem uma
característica específica que pode tornar esta questão ainda mais relevante para
a sua evolução económica.
“No combate à
crise, Portugal foi um dos países que mais apostaram nas moratórias de crédito.
Outros países injectaram capital nas empresas, mas Portugal, para evitar um
maior impacto orçamental, apostou em moratórias. As moratórias resolvem o
problema da liquidez, mas não o da solvabilidade. Vamos ver agora, com o fim
das moratórias, em que forma é que as empresas estão. E aquilo que for feito
pelo BCE vai contar muito”, afirma, lamentando que no auge da crise a opção
política não tenha sido outra. “Portugal tinha toda a boa vontade política para
gastar mais. Se havia altura em que o podia fazer, era esta. Optou por não o
fazer e agora já não há forma de voltar atrás”, diz.
Ricardo Reis
também não tem dúvida de que, “se o BCE fizer algo, se optar por uma maior
contracção da política monetária, isso será um choque muito negativo para a
economia portuguesa, uma vez que as empresas estão muito alavancadas e o Estado
precisa sempre de emitir muita dívida”. “O normal é que isto aconteça. Que este
cenário seja tão temido, diz mais da fragilidade em que a economia está”,
completa.
Um cenário em que
o BCE deixe a inflação disparar também teria os seus impactos negativos, “com
reflexos nos bolsos das pessoas”, lembra o economista. “É o que faz a inflação.
E pode ter também como consequência uma enorme tensão política dentro da zona
euro, o que não é bom”, afirma.
Nem tudo,
contudo, é mau para a economia portuguesa, num cenário de subida das taxas de
inflação na zona euro. Na crise anterior, a Alemanha e outros países do Norte
da Europa registaram taxas de inflação muito baixas, fruto das suas políticas
de conquista dos mercados internacionais por via de uma grande moderação
salarial. Isso levou Portugal a, seguindo a receita da troika, ir ainda mais
longe, algo que contribuiu para a dimensão e duração do período recessivo.
“Entre 2010 e
2012, sem subida de preços na Alemanha, Portugal e outros países da periferia
tiveram de baixar custos para ganhar competitividade. Agora, a inflação na zona
euro é sobretudo alta na Alemanha, o que está a permitir uma dispersão.
Portugal tem uma inflação bem mais baixa e isso está a contribuir para um
aumento da competitividade da sua economia, sem necessidade de um corte tão
acentuado dos custos”, afirma Ricardo Reis.
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