OPINIÃO
Grada Kilomba e o “politicamente correcto”
multiculturalista
A polémica em curso radica-se tão-só no facto de a) a
artista ser dada à partida como a escolhida e tal não ter sucedido e de b) ela
ser mulher e afro-descendente, o que fez soar as trombetas do discurso
identitário hiperbólico.
Augusto M. Seabra
28 de Dezembro de
2021, 21:33 actualizado a 29 de Dezembro de 2021, 8:11
A polémica da
não-escolha de uma artista de origem africana, Grada Kilomba, para ser a
“representante” de Portugal na Bienal de Arte de Veneza estalou com estrondo no
mundo da arte e transbordou de modo sem precedentes para o espaço público.
Vários factores
estão implicados, a saber: os métodos de escolha dos artistas e dos projectos
artísticos por parte do Estado; a concreta metodologia seguida na escolha para
a Bienal de Veneza; as características dos artistas apresentados a concurso por
quatro curadores (ou cinco, porque entres eles havia uma dupla); a escolha
aritmética de Pedro Neves Marques em detrimento de Grada Kilomba; as subsequentes
acusações de misoginia e racismo com afirmações identitárias hiperbólicas; o
que é, ou são, o(s) discurso(s) “politicamente correcto(s)”, no caso nesse
grande albergue designado por “multiculturalismo”.
O apoio do Estado
às artes é fundamental, mas, se essa é uma condição necessária à persistência
da diversidade, não menos necessário a essa diversidade e mesmo à democracia
liberal é que não haja uma “arte do Estado”, isto é, uma escolha directa do
poder político. Impõe-se, pois, a existência de estruturas de mediação e
escolha, em geral júris, ou, no campo das artes visuais, da figura do curador.
Essa figura
ocorreu durante muitos anos em Portugal na escolha para a Bienal de Veneza.
Ainda assim, o “muito liberal” secretário de Estado da Cultura Francisco José
Viegas escolheu directamente Joana Vasconcelos. Mais hábil, o seu sucessor,
Jorge Barreto Xavier, fez ele também a escolha de João Maria Gusmão e Pedro
Paiva, e só depois foi buscar como curador o então galerista e “produtor” da
dupla, Natxo Checa.
Não se pense,
todavia, que as escolhas são puro livre-arbítrio dos curadores. E compreende-se
que assim seja: o que mais importa são as características dos artistas e o seu
impacto no espaço público. Assim, por exemplo, nas escolhas para Veneza de
Alexandre Melo, Vicente Todolí/João Fernandes e Delfim Sardo, que recaíram
respectivamente sobre Julião Sarmento, Pedro Cabrita Reis e Jorge Molder (e
notar-se-á que falamos de curadores e artistas reputados), os escolhidos já
estavam “pressentidos”, o que se compreende.
Estaria esgotado
para La Biennale o modelo do mediador-curador? Não estou nada seguro. Há três
ou quatro casos de artistas superlativos que nunca foram escolhidos: Paulo
Nozolino, Ana Jotta e João Queiroz ou, ausência ainda mais gritante, Rui
Chafes, que já esteve em Veneza, mas não na condição de representante
português. Todos têm amplo reconhecimento público, condição justificativa para
a sua escolha segundo o modelo vigente até à penúltima edição.
"Que três dos jurados preferissem Grada Kilomba e um
outro Luísa Cunha, e que esse tivesse dado uma nota baixa a Kilomba, acabando
assim o vencedor por ser um terceiro, Pedro Neves Marques, é motivo suplementar
para a reflexão sobre se a “democraticidade” deste modelo é a mediação mais
adequada, mas era regra do jogo"
Mas o Ministério
da Cultura, através da Direcção-Geral das Artes (DGArtes), entendeu há dois
anos avançar para um modelo de dupla mediação, com um convite a curadores para
apresentarem propostas de artistas, depois avaliadas por um júri – dir-se-ia um
sistema bem mais democrático e ainda mais imune a qualquer veleidade de
intromissão da tutela, mas que se tornou, afinal, num imbróglio nunca visto.
De júris,
sobretudo no campo do cinema, sei alguma coisa: integrei muitos, mormente em
festivais, mas também em concursos de apoio à produção do então designado
Instituto Português de Cinema. Sempre me espantou e incomodou como “o meio”
“sabia” quem mereciam ser os escolhidos, mesmo desconhecendo em concreto os
projectos e nem sequer atendendo a que havia um regulamento, com diferentes
itens a considerar e uma avaliação eventualmente por pontos.
Há, aliás, a
notar que na página da DGArtes temos acesso ao regulamento, às actas do júri,
às declarações de voto e à resposta dos serviços jurídicos ao recurso
interposto em sede de audiência de interessados por Bruno Leitão, o curador que
propôs Grada Kilomba, mas não aos projectos em si – claro que conhecemos mais
ou menos o fundamental, as características dos artistas apresentados a
concurso, mas não os projectos (ou só conhecemos o de Pedro Neves Marques,
porque um dos curadores – foi este o caso de haver uma dupla proponente – o deu
genericamente a conhecer, quando o artista foi anunciado como vencedor), o que
não impede que vá por aí toda esta algazarra, quando mais urgente era reclamar
prazos exequíveis (a dupla da curadora Filipa Oliveira e da artista Fernanda
Fragateiro retirou-se por isso mesmo) e orçamentos condignos.
Só que, havendo
concursos, estes têm regras e itens, e já agora, como sei em concreto de
diversos tipos de concursos e prémios, é do livre direito dos jurados seguirem
estratégias para ganhar o candidato da sua escolha ou não ganhar um outro. E
pode chegar-se a uma decisão por pontuações e não por maiorias. Que três dos
jurados preferissem Grada Kilomba e um outro Luísa Cunha (a mais consolidada
artista em concurso – os outros podem incluir-se na categoria de “emergentes”
–, com um trabalho muito original em torno do som), e que esse tivesse dado uma
nota baixa a Kilomba, acabando assim o vencedor por ser um terceiro, Pedro
Neves Marques, é motivo suplementar para a reflexão sobre se a
“democraticidade” deste modelo é a mediação mais adequada, mas era regra do
jogo.
Não tenhamos
dúvida: a sonora polémica em curso radica-se tão-só no facto de a) Grada
Kilomba, a concorrente já com maior carreira internacional, ser dada à partida
como a escolhida e tal não ter sucedido; e de b) ela ser mulher e
afro-descendente, ou de condição pós-colonial, o que fez soar as trombetas do
discurso “politicamente correcto” multiculturalista.
Faço esta
precisão sobre estar aqui em causa o “politicamente correcto” multiculturalista
porque, ao contrário da direita que o designa como único – e, aliás, o invoca
por tudo e por nada –, penso que tem havido diferentes e mesmo opostos modelos
de discursos e políticas “correctas”, com a comum característica de quererem
impor um cânone e, nesses termos, um quadro estrito, o que supõe uma implícita
censura. As cultural wars dos anos Reagan, com a sua censura das representações
das sexualidades, nomeadamente “homo”, também foram, e de que lamentável
maneira, um “politicamente correcto”, de direita dura. E mais exemplos há.
Sejamos claros: o
nosso espaço euro-americano é de poderes branco e falocêntrico. Por outro lado,
não é menos evidente que as sociedades são também multiculturais, no sentido da
coexistência de diferentes origens étnicas e sexualidades. Dar expressão à
diferença é de extrema importância, pois que mais do que qualquer outro campo
as artes e a cultura devem ser manifestações de diversidade, mas não
multiplicando a política de quotas nem se reduzindo a imperativos
programáticos, que é isso o desígnio do “politicamente correcto”, este de
vertente multicultural – albergue, aliás, não isento de contradições,
abrangendo mulheres, representantes de situações pós-coloniais, sobretudo
africanos e afro-descendentes, e LGBTI, como agora se diz (lésbicas, gays,
bissexuais, transgénero e intersexo, ou seja, os que não correspondem ao modelo
dominante do homem binário, à luz de uma classificação dos seres num sistema
binário de opostos, como masculino-feminino ou hetero-homossexual, com os
papéis que esse modelo dominante lhes atribui).
Mas também cada
vez mais sucedem em instituições culturais nalguns espaços em que a ideologia
multiculturalista é mais forte, e nomeadamente no campo das artes visuais,
políticas de discriminação positiva a favor de mulheres negras ou de LBGTI.
Grada Kilomba, a “rejeitada”, tem já um currículo internacional exactamente
por, como mulher negra, ser objecto de discriminação positiva.
Exceptuando as
músicas urbanas, há de facto uma sub-representação gritante de artistas de
origem africana nos mundos da arte em Portugal – donde a potencial importância
da novel União Negra das Artes –, mas legitimações e imposições só por um
programa “politicamente correcto” são inaceitáveis. E é o que sucede nesta
polémica.
Abrindo as
hostilidades, Ana Teixeira Pinto apontou “A Ferida”, acusando a decisão do júri
de ser “misógina e racista”. No seu enviesamento, esse texto publicado no
suplemento Ípsilon era delirante e fanático.
"Exceptuando as músicas urbanas, há de facto uma
sub-representação gritante de artistas de origem africana nos mundos da arte em
Portugal – donde a potencial importância da novel União Negra das Artes –, mas
legitimações e imposições só por um programa “politicamente correcto” são
inaceitáveis"
Comparar o choque
perante a não-escolha de Grada Kilomba ao choque perante a absolvição de um
adolescente norte-americano branco acusados de matar dois manifestantes
anti-racismo é doentio.
Invocar como
exemplo comparativo a exclusão da deputada Joacine Katar Moreira deixa suposto
que, contra todas as normas da democracia, ela tem um “direito divino” de
continuar deputada só por ser mulher e negra (Rui Tavares que se cuide: como o
Livre expulsou Joacine, ainda vai também ser acusado de “misógino e racista”).
Enfim, o final é
de tal ordem que merece ser transcrito na íntegra: “Escolher Grada Kilomba para
representar Portugal em Veneza não resolveria o problema da desintegração
social, mas abriria uma porta, uma perspectiva, a possibilidade de imaginar um
futuro um pouco diferente, um pouco, mesmo que marginalmente, melhor. Foi essa
possibilidade que o júri nos negou. No seu lugar fica a ferida, aberta, a que
Portugal recusa atentar.”
Como Miguel
Wandschneider já explicou em artigo igualmente publicado no Ípsilon, no texto
de Ana Teixeira Pinto a noção de representação nacional “surge hipostasiada
como representação política, isto é, como representação artística
sobredeterminada por critérios de natureza política”. E cito ainda: “O seu
texto não poderia ser mais eficaz na legitimação da instrumentalização política
da representação portuguesa na Bienal de Veneza — em última instância, de uma
situação em que a arte contemporânea e os artistas são postos ao serviço do Estado.”
O que ela sugere,
e queria que tivesse sucedido com Grada Kilomba, era que um artista
representasse uma sociedade e eventualmente uma política, numa inaceitável
instrumentalização da arte, supondo mesmo uma “Arte do Estado” — uma lógica
profundamente totalitária.
A Ferida, título
também da proposta que Bruno Leitão e Grada Kilomba levaram a concurso, abriu a
boceta de Pandora, com abaixo-assinados, como o subscrito nomeadamente pelo SOS
Racismo, a Batoto Yetu, a Djass — Associação de Afrodescendentes ou o Núcleo
Anti-Racista do Porto. Mas o que é isto? Eu não reconheço àquelas associações
qualquer legitimidade para intervirem nesta complexa questão, e acho-o um
atentado à liberdade de expressão.
Por coincidência,
mas não certamente acaso, o último Ípsilon, o de balanço de 2021, abria com um
texto intitulado “O ano em que as políticas de identidade entraram pela porta
principal”, e nele não deixava de estar escrito que essas políticas também são
um “terreno armadilhado”. Está à vista. Tenhamos cuidado e enfrentemos a lógica
de chantagem deste “politicamente correcto”.
Artigo corrigido:
no seu artigo de opinião, Ana Teixeira Pinto refere-se à absolvição de um
adolescente branco acusado de matar dois manifestantes anti-racismo, e não à
absolvição de dois polícias brancos acusados de matar um negro
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