JUSTIÇA
Abriu portas da Europa a imigrantes ilegais. Tribunal
diz-se impotente para punir advogada como merecia
Sentença acusa arguida de ser indiferente à crise
humanitária que continua a matar milhares de refugiados que tentam chegar à
Europa.
Ana Henriques
29 de Dezembro de
2021, 23:26
Questões formais
impediram uma juíza de punir de forma mais severa uma advogada que se dedicou
durante dois anos a abrir as portas da Europa a dezenas de imigrantes ilegais,
a maior parte dos quais continuam neste momento em paradeiro incerto. Proferida
este mês, a sentença que a condenou a cinco anos de prisão efectiva sublinha
que lidava na maior parte das vezes com adolescentes menores e que demonstrou
“total indiferença” pela crise humanitária que continua a matar milhares de
migrantes e refugiados que tentam chegar à Europa.
Desde que
ingressou na advocacia, em 2015 que Marisa Monteiro, hoje com 42 anos, era
frequentadora assídua do aeroporto de Lisboa, mais propriamente do Centro de
Instalação Temporária, local onde ficam detidos os passageiros sem condições para
entrar em território nacional. Até 2018, altura em que o Serviço de
Estrangeiros e Fronteiras (SEF) a confrontou com as suas suspeitas, entregou
mais de cem pedidos de asilo pelos quais cobrou aos requerentes entre mil e
1700 euros cada um. O estratagema a que recorreu, segundo ficou provado em
tribunal, baseava-se acima de tudo na lentidão da justiça portuguesa.
Depois de alegar
perante o SEF que os seus clientes, na sua maioria adolescentes menores, eram
pessoas que viajavam para Portugal fugidas de perseguições políticas, sexuais e
religiosas nos seus países de origem, ficava à espera da recusa do visto de
permanência em território nacional, uma vez que nenhum deles conseguia provar
essa condição. Na realidade, estes jovens oriundos sobretudo do Senegal e
países vizinhos queriam juntar-se a familiares seus residentes em França e
noutros países europeus por questões económicas. Quando chegava a recusa de
permanência em território nacional Marisa Monteiro recorria sistematicamente da
decisão para os tribunais administrativos, ciente de que o recurso não seria
decidido no prazo máximo de 60 dias que a lei prevê que os candidatos a asilo
possam estar detidos. Quando finalmente os tribunais administrativos se
pronunciavam já os imigrantes tinham sido libertados e rumado além-fronteiras.
Segundo a
sentença, a arguida terá lucrado com esta actividade cerca de 130 mil euros,
uma vez que tinha de repartir os lucros com cúmplices que tinha nos países de
origem, e que lhe indicavam em que voos seguiam os candidatos a asilo e a que
horas chegavam ao aeroporto de Lisboa. A sua actuação tornou-se notada quer
pela quantidade de casos que conseguia angariar quer por apresentar
requerimentos em nome dos imigrantes antes mesmo de ter falado com eles no
Centro de Instalação Temporária. Muitos deles tinham embarcado com documentos
de identificação falsos ou roubados a compatriotas seus.
A decisão
judicial dá conta, entre outros casos, da situação de uma menor chamada
Marceline que chegou a Lisboa a 1 de Janeiro de 2017, nascida no Congo. Contou
às autoridades que tinha 15 anos e vinha do Senegal, onde se prostituía às
ordens de uma senhora que lhe dava abrigo e comida. Foi essa mulher, garantiu,
que a convenceu a viajar para a Europa, pagando-lhe a viagem e tratando-lhe da
documentação. Que não se preocupasse, porque teria alguém do sexo feminino à
sua espera na capital portuguesa. E assim era.
Por ser menor não
ficou no aeroporto: foi encaminhada para instalações do Centro Português de
Refugiados, donde saiu para voltar à prostituição. Viria a ser interceptada
pelas autoridades em Espanha num autocarro onde viajava acompanhada de um homem,
com destino a França. A advogada aconselhava sempre os imigrantes a abandonarem
Portugal pela via terrestre, por os controlos policiais serem menos eficazes do
que se viajassem por via aérea.
Para esconder das
autoridades o que ganhava com esta actividade, os pagamentos eram feitos ao
marido e a vários outros familiares através de agências de transferência de
dinheiro. Ao tribunal, justificou esta forma de trabalhar alegando que as duas
gravidezes que teve em pouco tempo, aliadas ao enorme volume de serviço, fez
com que tivesse tido de recorrer à sua ajuda. Nem esta nem outras explicações
que deu durante o julgamento convenceram a juíza, que acabou por a condenar por
50 crimes de auxílio à imigração ilegal.
A arguida terá lucrado com esta actividade cerca de 130
mil euros, uma vez que tinha de repartir os lucros com cúmplices que tinha nos
países de origem
Sucede que o
Ministério Público teve, durante a fase de inquérito do processo, expectativas
de punição mais baixas. Como considerou que todos estes casos correspondiam à
prática de um único crime – na forma continuada – remeteu o caso para um tipo
de tribunal, o chamado local criminal, que por lei só pode aplicar penas de
prisão até ao máximo de cinco anos. A juíza ainda tentou resolver o problema,
mas acabou por se conformar. Deixou, porém, escrito na sentença que a advogada
merecia ser condenada a sete anos e meio de cadeia, mas que estava impedida de
tomar semelhante decisão.
“A culpa da
arguida é elevadíssima, porquanto actuou durante um longo período de tempo e em
elevadíssimo número de vítimas”, observou. “Numa época de verdadeira crise
humanitária no que respeita a cidadãos estrangeiros que pretendem entrar no
continente europeu, muitos deles vítimas de pessoas como a arguida, a quem
pagam para arriscarem a vida no transporte, realizado por vezes em botes que,
naufragando, conduzem à morte, demonstrou, com a sua conduta, uma total
indiferença pela sorte destas pessoas, que podiam até ser vítimas de redes de
prostituição”.
O PÚBLICO tentou,
sem sucesso, falar com Marisa Monteiro.
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