ANÁLISE
Europa 2022: a tempestade perfeita
Pandemia, guerra, retoma económica, migrações. São
palavras-chave de um novo ano que será sombrio para a Europa. E que a vai pôr,
mais uma vez, à prova.
Teresa de Sousa
27 de Dezembro de
2021, 0:07
https://www.publico.pt/2021/12/27/mundo/analise/europa-2022-tempestade-perfeita-1989310
É difícil
recordar um ano que comece tão envolvido em sombras, incertezas e perigos. Já
houve guerras nas fronteiras da União Europeia, como nos Balcãs Ocidentais na
década de 1990, ou quando a Rússia anexou a Crimeia e enviou tropas para o
Donbass, em 2014. Nunca, como hoje, a iminência de um conflito capaz de pôr em
causa o mapa da segurança europeia foi tão real. É verdade que, antes da queda
do Muro de Berlim, milhares de tanques soviéticos estavam estacionados na
fronteira oriental da Alemanha ainda dividida e que centenas de mísseis
soviéticos SS-20 estavam apontados às cidades europeias. Mas, nessa altura, a
capacidade dissuasora dos EUA e da NATO permitia aos europeus do Ocidente
dormirem relativamente descansados. Para os Estados Unidos, o destino do mundo
decidia-se na Europa. Para a Europa, os Estados Unidos garantiam a sua defesa.
Nos Balcãs,
apesar da “limpeza étnica” e dos milhares de mortos, a Sérvia não constituía uma
ameaça vital. Em 2008, quando Putin anexou a Abecásia, na Geórgia, Nicolas
Sarkozy “arrancou” aos dois contendores um acordo (com duas versões) que se
limitou a permitir um cessar-fogo, congelando um conflito que permanece até
hoje. Em 2014, quando Putin resolveu travar pela força militar qualquer
aproximação da Ucrânia à União Europeia (nem sequer era à NATO), a Alemanha e a
França encontraram uma forma de “congelar” o conflito, negociando com os
presidentes russo e ucraniano os acordos de Minsk, que nunca foram cumpridos
por Moscovo.
A estas
negociações a quatro chamaram “formato Normandia” porque a sua primeira reunião
informal decorreu à margem das celebrações do Dia D. A União Europeia seguiu em
frente, sempre à procura de um modus vivendi com a Rússia que nunca se traduziu
numa estratégia comum.
Alguns países,
como a Alemanha, preferiram manter esta indefinição. Berlim negociou com
Moscovo a construção do segundo gasoduto a ligar directamente território russo
a território alemão – o polémico Nord Stream 2.
Outros, sobretudo
os que são vizinhos da Rússia, como a Polónia ou os Bálticos, insistiam em que
Putin não desistiria de desestabilizar as fronteiras europeias. Paris, Berlim e
outras capitais ocidentais afastavam as suas “obsessões” com algum aborrecimento.
Outros ainda, como Viktor Orbán, na Hungria, preferiram aproximar-se de Putin,
quanto mais não fosse porque partilhavam a mesma deriva autoritária.
No fundo, o que está em causa é saber até que ponto a
crise pandémica, com todas as suas consequências económicas e sociais, alterou
a forma como Berlim e os seus amigos “frugais” do Norte olham para a política
macroeconómica da União. Ainda não há resposta.
Hoje, com a
concentração de 175 mil homens na fronteira ucraniana e com uma lista de
exigências impossíveis de satisfazer, Putin põe de novo em causa a segurança
europeia. A Europa enfrenta a sua maior crise desde o fim da Guerra Fria, dizem
os analistas. A ameaça de um conflito de grandes proporções tornou-se uma
realidade. A União continua dividida sobre o que fazer. A tentação de apaziguar
Moscovo não desapareceu. E, mais preocupante do que quase tudo o resto, os
Estados Unidos desviaram de forma irreversível a sua grande preocupação
estratégica para o Indo-Pacífico. Têm um adversário principal que desafia a sua
hegemonia e a ordem internacional liberal que construíram – a China. Querem
estabelecer as regras do relacionamento com a Rússia para manterem o statu quo
na frente europeia. Foi o que Joe Biden tentou fazer na cimeira de Genebra com
o seu homólogo russo, em Junho passado. O problema é que Putin não aceita o
statu quo nem tenciona cumprir as regras.
Os europeus
querem manter vivas as negociações em “formato Normandia”. Putin quer ter o
Presidente americano como interlocutor, passando por cima da Europa. Um dos
seus objectivos é fazer-se reconhecer como o chefe de uma grande potência
mundial, a par dos EUA e da China. O outro é redesenhar a arquitectura de
segurança europeia, garantindo o congelamento das fronteiras da NATO.
Em traços gerais,
é neste quadro profundamente instável e perigoso que a União inicia o novo ano.
Com outro factor imponderável que mantém o mundo ainda em suspenso: a crise
pandémica parece longe de chegar ao fim, ameaçando a saúde pública, a vida das
pessoas e o relançamento económico.
Internamente, a
União enfrenta igualmente uma agenda difícil.
Depois de Merkel
Depois de 16 anos
de Merkel, a Europa vai ter de se habituar a um novo chanceler alemão. De outra
cor política e à frente de uma coligação inédita de três partidos. O que muda e
o que fica na mesma? Para a União, esta é uma variável crucial, dado o peso da
Alemanha nas decisões europeias. A primeira prova de fogo de Olaf Scholz é,
precisamente, a crise na Ucrânia. A segunda é o que fazer com os países-membros
que não respeitam os princípios fundadores da própria integração, incluindo o
Estado de direito. Por outras palavras, como lidar com os governos da Polónia e
da Hungria. A construção europeia assenta desde a sua génese na força dos seus
valores comuns. Não é uma questão menor.
A segunda
incerteza política leva-nos até Paris e às eleições presidenciais em Abril, ao
mesmo tempo que a França exerce a presidência rotativa do Conselho da União
Europeia a partir de 1 de Janeiro. Emmanuel Macron ainda será Presidente quando
terminar o semestre francês, em Junho? Provavelmente sim, mas a entrada em cena
de Valérie Pécresse, a candidata do centro-direita, e a aparente divisão da
extrema-direita entre Marine Le Pen e Eric Zemmour, tornam a sua reeleição mais
difícil. Em Roma, o destino de Mario Draghi, depois de reconduzir a Itália ao
centro político da integração europeia, também não está traçado. Resistirá o
antigo presidente do BCE à tentação do Palácio do Quirinal, morada oficial do
Presidente da República? Espera-se que não.
O novo trio
Da relação deste
trio de protagonistas dependem os mais importantes dossiers que estão na agenda
europeia para 2022, o primeiro dos quais é a reforma das regras de
funcionamento da zona euro. O que fará a Alemanha? Para Macron e Draghi, é
preciso libertar a economia europeia do colete-de-forças do défice e da dívida,
mesmo que dentro de certos limites. O Presidente francês reclama “maior
flexibilidade” na interpretação do Pacto de Estabilidade e Crescimento. Draghi
diz que está desactualizado. Em causa está a capacidade de crescimento da
economia europeia, que continua a fazer fraca figura em comparação com as
economias chinesa e americana.
O debate começa
inquinado pelo aumento da taxa de inflação, em particular na Alemanha. A
política monetária do BCE tem como primeiro objectivo manter a estabilidade dos
preços, ao contrário da Fed, que visa garantir o crescimento e o emprego. O BCE
tem insistido em que este surto inflacionista é provisório. Na quinta-feira,
anunciou que vai desacelerar ligeiramente os estímulos à economia, mas
continuou a dizer que a taxa de juros de referência se manterá inalterada. Pelo
menos até ver. O Banco de Inglaterra já subiu a taxa de juro e a Fed anunciou
que o fará em breve de forma progressiva.
A transição para uma economia muito mais amiga do
ambiente coloca desafios enormes. O que fazer dos trabalhadores afectados pelo
fim da produção de combustíveis fósseis? Quais as consequências da transição da
indústria automóvel para os motores eléctricos? O “nuclear” fará parte do
pacote das energias limpas?
No fundo, o que
está em causa é saber até que ponto a crise pandémica, com todas as suas
consequências económicas e sociais, alterou a forma como Berlim e os seus
amigos “frugais” do Norte olham para a política macroeconómica da União. Ainda
não há resposta.
A pressão
migratória vai manter-se
O outro grande
tema que não vai sair da agenda europeia é a política de imigração e de asilo.
Neste domínio, as divisões entre os Estados-membros mantêm-se enormes. A pressão
migratória vai retomar rapidamente os níveis anteriores à pandemia, que afectou
profundamente as economias dos países do Sul, empurrando ainda mais gente para
a Europa. A crise na Bielorrússia veio lembrar que as migrações podem funcionar
como uma “arma” política. Mas, com a ascensão dos partidos populistas e
nacionalistas, os governos europeus, de esquerda ou de direita, resistem mal
aos apelos xenófobos.
Os custos das
transições
Finalmente, a
União vai ter de pôr em prática as suas duas grandes prioridades de longo
prazo: a transição digital e a transição verde. Ambas são mais fáceis de
enunciar do que de pôr em prática. Como colmatar o relativo atraso tecnológico
da Europa em relação aos EUA e à China? A França promete que esta será uma das
prioridades da sua presidência. O Presidente francês lembrou que, das dez
maiores empresas mundiais, oito são tecnológicas e nenhuma é europeia. Não há
soluções milagrosas.
A transição para
uma economia muito mais amiga do ambiente coloca igualmente desafios enormes,
não apenas de natureza tecnológica e económica, mas também social. O que fazer
dos trabalhadores afectados pelo fim da produção de combustíveis fósseis? Quais
as consequências da transição da indústria automóvel para os motores
eléctricos? O “nuclear” fará parte do pacote das energias limpas? No último
Conselho Europeu de 2021, os líderes não se conseguiram entender sobre o
recurso à energia nuclear ou sobre as taxas de carbono. Toda a gente ainda se
lembra da revolta dos “gilets jaunes” em França, no Outono de 2018, quando o
Governo aumentou o preço da gasolina e do gasóleo. A pressão para o combate às
alterações climáticas não vai diminuir. A Europa quer continuar a liderar este combate.
Que implicações terá na sua política comercial? Outro factor de incerteza.
Que autonomia?
Em pano de fundo,
os europeus continuarão a debater a chamada “autonomia estratégica”, ou seja,
até que ponto devem continuar a depender dos Estados Unidos para garantir a sua
segurança. Macron colocará a questão da defesa europeia no Conselho Europeu
previsto para Março. Quer aprovar a nova “Bússola Estratégica para a União
Europeia”, um documento que está a ser preparado por Josep Borrel sobre a
segurança europeia. Mas os países europeus continuam profundamente divididos
entre os que não querem pôr em causa a relação transatlântica com qualquer
decisão que possa enfraquecer a NATO, e os que vêem numa defesa europeia
autónoma uma dimensão essencial para que a Europa possa tomar em mãos o seu
destino, num mundo em profunda turbulência e com os Estados Unidos a olharem
para outro lado.
Três meses
depois, uma cimeira da Aliança Atlântica, em Madrid, deverá aprovar o seu novo
Conceito Estratégico, que não é revisto desde 2010. Nos debates que estão a
decorrer, a China é um dos pontos mais polémicos. Deve ser considerada como uma
ameaça ou como um desafio? Os europeus, que rejeitaram a ideia de uma “NATO
global”, defendida pelos Estados Unidos depois da Guerra Fria, não querem
incluir a China no elenco das principais ameaças, ao lado da Rússia ou do
terrorismo. Está demasiado longe. Mesmo assim, a Europa perdeu a “ingenuidade”
em relação a Pequim e ganhou consciência de que tem de oferecer alguma coisa
aos EUA, se quiser manter o seu compromisso com a segurança europeia. Mais uma
vez, a forma como evoluir a política chinesa do novo Governo alemão será
decisiva para o caminho que a União vier a seguir. Merkel foi demasiado
condescendente com Pequim, olhando para a China como um gigantesco mercado para
as exportações alemãs e menos como um adversário político cujos interesses
colidem com o mundo que interessa à Europa preservar.
A nova coligação
de governo terá uma política diferente? “A política para a China do novo Governo
[alemão] será diferente pela razão simples de que os tempos mudaram”, diz Janka
Oertel, do European Coucil on Foreign Relations de Berlim. O programa de
Governo negociado entre os três partidos da nova coligação menciona
directamente a situação de Taiwan, as violações dos direitos humanos em
Xinjiang e a mudança de estatuto de Hong Kong. “Não é apenas uma novidade. É
surpreendentemente claro”, diz Oertel. A China continuará a ser, no entanto, um
dossier difícil.
O motor
franco-alemão
Noutros momentos
difíceis, quando a integração europeia foi posta à prova, coube ao eixo
franco-alemão liderar o esforço de renovação. Com a União alargada para leste,
integrando hoje 27 países, com a saída do Reino Unido e com os EUA menos
comprometidos com a unidade europeia, manter o velho motor a funcionar
tornou-se mais difícil. Continua a ser, no entanto, indispensável. Pode vir
daqui a única boa notícia.
tp.ocilbup@asuos.ed.aseret
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