quinta-feira, 28 de outubro de 2021

A profecia da “geringonça” cumpriu-se

 

IMAGEM de OVOODOCORVO


EDITORIAL

A profecia da “geringonça” cumpriu-se

 

A profecia tinha um nome, “geringonça”. Estava condenada a cumprir-se assim. Se há mistério no seu desígnio, ele está no tempo da sua duração.

 



Manuel Carvalho

27 de Outubro de 2021, 20:47

https://www.publico.pt/2021/10/27/politica/editorial/profecia-geringonca-cumpriuse-1982763

 

Há neste desfecho da votação do Orçamento do Estado o fantasma de uma profecia que se cumpriu. Importa muito saber se essa profecia foi ditada antes de se conhecer a proposta do Governo – ou se nasceu no momento em que as negociações se revelaram um embuste. Provavelmente, surgiu quando um partido social-democrata abraçou uma aventura de governo apoiando-se num partido comunista ortodoxo e num partido de esquerda intransigente na sua aversão ao mercado e ao liberalismo europeu.

 

Seja qual for a origem, a profecia cumpriu-se no momento mais improvável – quando o país mostrou músculo no combate a uma penosa pandemia, quando a ajuda europeia acalentava expectativas legítimas de mudança e quando o Governo ofereceu à esquerda o Orçamento mais generoso de sempre. A profecia tinha um nome, “geringonça”. Estava condenada a cumprir-se assim. Se há mistério no seu desígnio, ele está no tempo da sua duração. Ou, talvez, no momento em que se extinguiu.

 

Agora, vai ser inevitável o ajuste de contas entre a esquerda. É incontornável perceber como foi possível o país ser arrastado assim para onde está. Convém não exagerar. Nas democracias, as crises existem. Virada a página, sempre se pode regressar ao que augurava a profecia. E relativizar o valor da estabilidade inspirada num modelo de política que sobrevivia apenas porque combatia o inimigo de ontem, o “passismo”, em vez de olhar para o amanhã. Também se pode ver o lado bom da profecia cumprida na clarificação, ou no fim dessa permanente transacção dos interesses do país em favor dos dogmas partidários.

 

Nada do que vier a seguir é certo e seguro. A doutrina de António Costa para cimentar a hegemonia do PS à esquerda ruiu, porque, como tanta gente do seu partido lhe disse, as suas bases eram irrealistas. O Bloco e o PCP regressam ao lugar de onde nunca saíram – ao protesto e ao combate ao modelo social e económico europeu. A direita esfacela-se internamente e a extrema-direita congratula-se, porque prospera nos pântanos políticos. Mesmo numa situação extrema, parece haver poucas condições para uma coligação entre os partidos do centro capaz de evitar o pior.

 

Ainda assim, a ausência de cenários risonhos não vai destruir a confiança do país. Já se viveram outras crises e os portugueses souberam escolher o caminho para as superar. A democracia portuguesa e as suas instituições são suficientemente sólidas para resistir a uns meses de turbulência. Sobra, claro, a lição da profecia que se cumpriu – que obriga a recordar a mensagem de Obama a Angela Merkel, agradecendo-lhe pelo facto de o centro ter continuado a resistir. Os portugueses dirão se querem ir por aí.

 

tp.ocilbup@ohlavrac.leunam

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