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EDITORIAL
A profecia da “geringonça” cumpriu-se
A profecia tinha um nome, “geringonça”. Estava condenada
a cumprir-se assim. Se há mistério no seu desígnio, ele está no tempo da sua
duração.
Manuel Carvalho
27 de Outubro de
2021, 20:47
https://www.publico.pt/2021/10/27/politica/editorial/profecia-geringonca-cumpriuse-1982763
Há neste desfecho
da votação do Orçamento do Estado o fantasma de uma profecia que se cumpriu.
Importa muito saber se essa profecia foi ditada antes de se conhecer a proposta
do Governo – ou se nasceu no momento em que as negociações se revelaram um
embuste. Provavelmente, surgiu quando um partido social-democrata abraçou uma
aventura de governo apoiando-se num partido comunista ortodoxo e num partido de
esquerda intransigente na sua aversão ao mercado e ao liberalismo europeu.
Seja qual for a
origem, a profecia cumpriu-se no momento mais improvável – quando o país
mostrou músculo no combate a uma penosa pandemia, quando a ajuda europeia
acalentava expectativas legítimas de mudança e quando o Governo ofereceu à
esquerda o Orçamento mais generoso de sempre. A profecia tinha um nome,
“geringonça”. Estava condenada a cumprir-se assim. Se há mistério no seu
desígnio, ele está no tempo da sua duração. Ou, talvez, no momento em que se extinguiu.
Agora, vai ser
inevitável o ajuste de contas entre a esquerda. É incontornável perceber como
foi possível o país ser arrastado assim para onde está. Convém não exagerar.
Nas democracias, as crises existem. Virada a página, sempre se pode regressar
ao que augurava a profecia. E relativizar o valor da estabilidade inspirada num
modelo de política que sobrevivia apenas porque combatia o inimigo de ontem, o
“passismo”, em vez de olhar para o amanhã. Também se pode ver o lado bom da
profecia cumprida na clarificação, ou no fim dessa permanente transacção dos
interesses do país em favor dos dogmas partidários.
Nada do que vier
a seguir é certo e seguro. A doutrina de António Costa para cimentar a
hegemonia do PS à esquerda ruiu, porque, como tanta gente do seu partido lhe
disse, as suas bases eram irrealistas. O Bloco e o PCP regressam ao lugar de
onde nunca saíram – ao protesto e ao combate ao modelo social e económico
europeu. A direita esfacela-se internamente e a extrema-direita congratula-se,
porque prospera nos pântanos políticos. Mesmo numa situação extrema, parece
haver poucas condições para uma coligação entre os partidos do centro capaz de
evitar o pior.
Ainda assim, a
ausência de cenários risonhos não vai destruir a confiança do país. Já se viveram
outras crises e os portugueses souberam escolher o caminho para as superar. A
democracia portuguesa e as suas instituições são suficientemente sólidas para
resistir a uns meses de turbulência. Sobra, claro, a lição da profecia que se
cumpriu – que obriga a recordar a mensagem de Obama a Angela Merkel,
agradecendo-lhe pelo facto de o centro ter continuado a resistir. Os
portugueses dirão se querem ir por aí.
tp.ocilbup@ohlavrac.leunam
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