Turismo.
“Urge estancar a sangria”, exige grupo de lisboetas
Trienal
de Arquitectura de Lisboa promoveu debate entre lisboetas.
Apresentado documento com exigências. Houve quem falasse em
"expropriação e "ocupação". O Observador esteve lá
e ouviu tudo.
Hugo Tavares da
Silva
7-6-2016 /
OBSERVADOR
A capital continua a
ser pensada. Desta vez foi o tema da conversa acolhida pela Trienal
de Arquitectura de Lisboa, que esmiuçou e desmontou os novos tempos
envoltos pelo fantasma do turismo e os receios dos residentes. O
palco do debate foi o terraço do Palácio Sinel de Cordes, ali bem
perto do Panteão Nacional. As cadeiras vazias em “U” assumiam um
número jeitoso, mas acabariam por ser insuficientes para as mais de
100 pessoas que foram oferecer a sua visão e, principalmente, ouvir
sobre os novos desafios de Lisboa, as “alteração das dinâmicas
da cidade” e “sobretudo da grande subida do preço da habitação”,
que se situou nos 33,5% desde 2013.
Houve de tudo:
palmas, gritos de apoio, burburinho, alguns apupos, muita
concordância, pouca discordância, timidez perante a própria
situação e até quem tenha apelado à “expropriação” e
“ocupação”. Catarina Portas, empresária e membro do conselho
consultivo do programa da Câmara Municipal de Lisboa Lojas com
História, e Daniel Oliveira estiveram presentes. O segundo
participou na discussão e disse que era importante compreender o
equilíbrio entre “não matar a galinha dos ovos de ouro e não
deixá-la que nos mate a nós”, até porque a situação surgiu
durante uma crise económica.
Um grupo informal de
habitantes da cidade, como se autointitulam, decidiu criar um evento
para dar a conhecer um documento que traça o diagnóstico da
“gentrificação” e do referido bar aberto de alojamento local (o
foco centrou-se no Airbnb) e abertura de hostels e hotéis —
usou-se algumas vezes o termo “sangria”. O documento desse grupo
informal é assinado por Ana Bigotte Vieira, Catarina Botelho, Joana
Braga, António Brito Guterres, Leonor Duarte, Luísa Gago e Luís
Mendes.
Gentrificação
(Priberam): Processo de valorização imobiliária de uma zona
urbana, geralmente acompanhada da deslocação dos residentes com
menor poder económico para outro local e da entrada de residentes
com maior poder económico
“Urge estancar a
sangria do centro histórico da cidade e regular a actividade
turística para que sirva os interesses da cidade, de quem a habita e
de quem a visita”, pode ler-se no documento. Este movimento censura
também as condições especiais para “reformados gold”
estrangeiros, que gozam de dez anos de isenção de impostos se
receberem, pelo menos, dois mil euros e que tenham como primeira
morada Portugal. Um dos convidados até chamaria a tal medida
“inconstitucional”, e que sendo assim Portugal era um paraíso
fiscal. “Um offshore”.
Os organizadores
defendem que “a grande intensificação do turismo em Lisboa tem
implicado transformações significativas na vida de quem nela
habita”. Para o explicar, e explicitar, procuraram aclarar o
momento de viragem. A nova lei das rendas, que entrou em vigor por
condição da troika, foi tida como o trigger para a situação
insustentável. “Ontem, no Airbnb, havia 7.500 alugueres
disponíveis, sendo que 80% delas eram casas inteiras”, explicou um
dos assinantes. A nova lei, aliada às políticas da Câmara
Municipal de Lisboa, dizem, tem promovido a subida dos preços das
rendas e, assim, empurrado os locais para fora do centro.
“O imobiliário é
o filet mignon”
O pontapé de saída
foi dado pelos homens e mulheres da casa, que rapidamente passaram a
bola aos convidados: Joana Gorjão Henriques (jornalista do Público),
Manuel Graça Dias (arquiteto), Pedro Bingre (investigador no CERNAS,
IPC e Centro de Estudos Regionais e Urbanos — IST), João Seixas
(investigador na FCSH-UNL) e José Manuel Henriques (investigador no
ISCTE).
“É tudo menos
xenofobia o que se passa”, explica João Seixas, que diz
simplesmente querer “vida quotidiana”. O investigador apela à
“fiscalidade global”, pois “60%” não estarão com a situação
legal. Ou seja, não pagam impostos. “Em Barcelona, por exemplo,
quem arrenda 60% do tempo é já considerado atividade económica”.
Manuel Graça Dias,
que defende uma carga fiscal maior para os turistas, mostrou-se
cético quanto às soluções exigidas pelo grupo, que, entre outras,
visam a “realização de uma nova lei restritiva do alojamento
local” e suspensão da atribuição de licenças para hotéis e
hostels. Daniel Oliveira também torceu o nariz a este último ponto,
alegando que fechar a porta aos hotéis só traria mais pressão para
o alojamento local.
Graça Dias gostaria
de ver também reduzido o IMI, o que aconteceria em sentido contrário
para o alojamento temporário. E deu uma ideia: um cartão de
turista, que registe tudo o que este compra, para depois ser-lhe
devolvido 5% do valor gasto no país. “Isto obrigaria a pedirem
faturas”, defende. “Há uma grande balda nos pagamentos aos
fisco.” Também a alteração da natureza das lojas e comércios
deveria ser taxado, conforme o seu setor ou dimensão da mudança. Ou
seja, se uma loja se direcionasse apenas para turistas, esquecendo os
serviços para locais que antes prestava, deveria pagar mais. Quanto
mais radical fosse a alteração do negócio, mais pagaria.
“Quem é que é
senhorio no Airbnb aqui?”, questiona a jornalista convidada,
desafiando os presentes, no lançamento da sua participação. Apenas
uma mão se viu no ar. Uns segundos depois lá surgiram mais três ou
quatro, o que promoveu umas gargalhadas. “Quem não se importaria
de viver num prédio com alugueres Airbnb?” Aqui já se viram mais
braços, mas eram uma clara minoria.
O homem que agarrou
aquela gente foi Pedro Bingre do Amaral, que até ganhou o direito a
furar o tempo previsto para cada um, a pedido do público. A sua
teoria baseou-se na ótica do investidor, que tem muito mais a ganhar
no setor imobiliário do que na aposta em obrigações do tesouro ou
investimentos no banco. “O imobiliário é o filet mignon. (…) Os
investidores metem dinheiro onde há pessoas e se façam poucas
perguntas”, defende.
“Que história é
esta dos reformados [estrangeiros] não pagarem impostos!? Então
Portugal é um offshore! Até devia ser inconstitucional, por violar
os princípios da igualdade”, diz. O investigador considera que o
IMI “precisa de subir” e que “IRS e IRC é que têm de descer”,
caso contrário o estrangeiro ou residente temporário tem “o
melhor de dois mundos”.
Bingre do Amaral
defende que vivemos em tempos que podem mudar “a qualquer
instante”, e dá um exemplo cru, bem presente na sociedade moderna:
“o aumento das rendas está relacionado com o fluxo de turistas,
mas quando houver um atentado terrorista… isso acaba”. Ou
diminui.
“Há duas palavras
que causam pudor: expropriação e ocupação”
Uma hora e tal
depois do arranque, era a vez daqueles que ali estavam como ouvintes,
participantes, moradores, arrendatários, senhorios e curiosos, darem
uso à palavra. Passou a dezena de intervenções. “Foi explicada a
visão do investidor, mas gostaria de ouvir como ficar a viver em
Lisboa”, dispara o primeiro participante, que usa o termo
“libertinagem” para descrever o setor imobiliário, que, diz,
está ao dispor das “medidas neoliberais” colocadas em marcha nos
últimos tempos. Depois, deu o exemplo de Porto Santo, na ilha da
Madeira, que “ficou totalmente dependente do turismo”. A
“Disneyland”, que se pode transformar Lisboa, preocupa-o.
Um senhor mais velho
e ponderado, pelo menos no tom, agarra o microfone e vai direito ao
assunto: despejos. “Acabou contrato, passe bem, quero fazer outra
coisa com isto”, foi assim que descreveu o que chama de “despejo
arbitrário” e mostrou-se especialmente preocupado com o futuro dos
reformados.
Finalmente, surgiria
uma voz dissonante. “A nova lei das rendas é apontada como
responsável disto tudo, mas, antes disso, Lisboa já tinha perdido
meio milhão de habitantes”, defende. “Caíam prédios! Não
havia um mercado de arrendamento. Lisboa é das melhores cidades do
mundo. O mundo é global. Por isso, os preços ainda vão subir
mais”, por esta altura já se ouviam algumas gargalhadas e bocas.
“Ainda há muito por reabilitar!”
Tal e qual como num
guião de um filme, talvez para aligeirar a coisa, surgiu ao
microfone um homem pacato e pachola, orgulhoso por ter sido nascido e
criado em São Vicente, um bairro histórico da capital. “Lisboa
mudou muito, para pior!”, atira. “Antes andava na rua e via São
Vicente, agora vejo estrangeiros. Outro dia ouvi um estrangeiro a
dizer que estava em Alfama… Fiquei ofendido”, diz, num tom
simpático-indignado, arrancando senhoras risadas do público. “Vai
haver eleições, levem este debate a quem pode tomar decisões, por
favor!” E lá recebeu uma das ovações da tarde, discutindo o
protagonismo com Bingre do Amaral.
Quente, frio,
quente, a ferver. A seguir interveio um jovem mais exaltado,
incomodado com a apatia e acalmia muito lusitana, torcendo o nariz ao
“consenso perverso e perigoso” do documento. “Acham que o poder
vai lutar estes interesses?! Há alergia e medo em organizar grupos
de cidadania de ação direita. Há duas palavras que causam pudor:
expropriação e ocupação”, disse, enquanto os aplausos ocupavam
aquele terraço belíssimo, com árvores com folhas diferentes,
paredes cor-de-rosa e janelas altas.
Quem tem a casa
fechada devia ser muito taxado!”, diz uma senhora, com a voz firme
e a convição sólida como uma rocha. “Se isso se prolongar no
tempo, então devia ser expropriado!”
O outro lado da
moeda também deu à costa, pela voz de uma senhora, que arrenda e
pretende que não se diabolize o alojamento local, pedindo que estas
iniciativas não se resumam àqueles que estão contra. Foi pedido
diálogo e um leque de convidados mais heterogéneo, para haver uma
discussão mais ampla e justa. E foi pedido mais: “dados”, para a
discussão ser mais clara.
A caminhar para a
reta final, Daniel Oliveira, ex-deputado do Bloco de Esquerda e
comentador do programa “Eixo do Mal”, programa da SIC Notícias,
deu o seu contributo. “Parabéns por terem fundamentado bem o
diagnóstico”, começa por dizer, censurando depois que a cidade
dependa apenas de um motor — o turismo. É necessário compreender,
diz, como “não matar a galinha dos ovos de ouro e não deixá-la
que nos mate a nós”. Daniel Oliveira considera que a situação
“vai piorar” e que isso resulta da “democratização do
turismo”. Para reverter a situação, serão necessárias “medidas
fiscais”, assim como a “limitação do tempo de ocupação” e o
“poder de veto dos condomínios”
O comentador
televisivo discorda com mais veemência apenas de um ponto: “a
história dos hotéis” — a suspensão das licenças para hotéis
e hostels. “O resultado seria uma pressão brutal no mercado do
alojamento local e Airbnb.”
O que pretende o
grupo que promoveu esta ação?
Suspender a
atribuição de licenças a hotéis e hostels até à elaboração de
um estudo sobre os impactos do turismo em Lisboa, à semelhança de
outras cidades e em permanente atualização, com o objetivo de
definir os impactos do turismo e índices de capacidade de carga
turística da cidade.
Realização de uma
nova lei restritiva do alojamento local, à semelhança de outras
cidades (Ex: Barcelona, Paris, Berlin, Nova Iorque, Londres, São
Francisco).
Revogação da lei
dos ‘reformados gold‘ ou limitação da atribuição de estatuto
aos residentes que se fixem em áreas especificas a definir. Ex.
zonas despovoadas ou cidades do interior.
Discussão e revisão
da Nova Lei das Rendas (de acordo com o previsto no Programa do
Governo da Cidade de Lisboa para 20132017).
Promover estudos
sobre o perfil dos novos habitantes da cidade e respetivas
expectativas e motivações.
Sensibilizar as
associações de moradores para nas respectivas assembleias de
condóminos implicarem formas de compromisso colectivo e consenso
democrático que faça depender a criação de apartamentos para
acomodação/alojamento turístico, de consenso unânime por parte de
todos os moradores do prédio.
Reter na cidade, e
sobretudo nas comunidades mais afetadas pela turistificação, uma
parte significativa das mais-valias económicas, criando canais
de redistribuição dos proveitos/receitas geradas pelo turismo nos
bairros, orientando-as, de forma transparente, para benefício
das comunidades respetivas.
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