sábado, 4 de junho de 2016

“Isabel dos Santos fará negócio consigo mesma e isso levanta suspeitas”

O novo rosto da Sonangol soma e segue na conquista de mais poder
Nem a contestação interna, nem a situação económica do país impedem a família Dos Santos de alargar o seu poder e influência em Angola. Quinta-feira ficou a saber-se que Isabel dos Santos, a filha mais velha do chefe de Estado angolano, foi nomeada presidente da Sonangol, o maior e mais internacional grupo do país, através de um despacho presidencial assinado pelo próprio pai. De engenheira gestora de projecto numa empresa de Luanda, no início de 1990, até ser considerada a mulher mais rica do continente africano passaram 26 anos, mas nada parece travar Isabel dos Santos, cuja ambição e interesses não têm fronteiras.
PÚBLICO/ 4-6-2016

Isabel dos Santos fará negócio consigo mesma e isso levanta suspeitas”
JOANA GORJÃO HENRIQUES , ANA BRITO e LUÍS VILLALOBOS 03/06/2016 - 15:21 (actualizado às 17:30)

Advogados vão questionar se o Presidente, ao nomear a filha, está em colisão com as normas éticas e jurídicas

Um grupo de juristas angolanos vai discutir no sábado a possibilidade de impugnar a nomeação de Isabel dos Santos como presidente do conselho de administração da petrolífera estatal Sonangol, a maior fonte de receitas do país. O advogado David Mendes, da associação cívica Mãos Livres, que organiza o encontro, afirmou ao PÚBLICO que esta “foi uma nomeação muito estranha, tendo em conta que Isabel é filha do Presidente e tem muitos interesses no mundo do petróleo e no mundo financeiro”. Assim, no caso de assumir o cargo, esses interesses “entrarão em colisão” com a Sonangol. “Estando num órgão tão importante como o conselho de administração faria negócio consigo mesma ou facilitaria negócios com o seu próprio grupo. Isso levanta suspeitas.”

Dentro do espírito da lei da probidade pública, de 2010, sobre o exercício de funções públicas e que tem como objectivo travar o enriquecimento ilícito, querem analisar se “esta nomeação não viola as normas”. Vão questionar: o Presidente, José Eduardo dos Santos, independentemente da faculdade que tem de nomear os conselhos de administração, ao nomear a filha isso não choca com as normas éticas e jurídicas? “Se chegarmos à conclusão que o acto do Presidente viola a lei, entramos numa acção judicial para impugnar esse acto.”

[“Apesar de as expectativas da probabilidade de êxito serem muito baixas, o] pior é não tentarmos”, comenta. “[Fazem-no também] para que a sociedade saiba que não estamos de acordo e, se houve uma violação, há uma norma violada e o Presidente, como garante da lei e da Constituição, deve ter em conta [esse facto].” “Vamos ver qual é a reacção dos tribunais”, acrescenta.

Em Angola, esta nomeação está a ser lida como “mais um indicativo de que José Eduardo dos Santos não vai deixar o poder”, observa. “Quem pensa deixar o poder não comete estes erros. O próximo Presidente poderia anular estes actos praticados de forma ilícita ou que beneficiam a própria família.” David Mendes descreve “uma contestação muito grande, particularmente nas redes sociais, e nos encontros das pessoas nos transportes públicos”. As pessoas “começam a sentir que o Presidente está passando dos limites da apropriação ilícita do bem público”.

Se é verdade que os olhos estão agora postos em Isabel dos Santos, José Eduardo dos Santos já antes tinha colocado outro dos seus filhos, José Filomeno dos Santos, num dos lugares mais importantes da economia angolana: a presidência do Fundo Soberano de Angola (FSDEA) que gere cinco mil milhões de dólares e tem como missão rentabilizar dinheiro do petróleo e pensar no futuro do país. O cargo foi-lhe atribuído em Junho de 2013, altura em que José Filomeno dos Santos substituiu Armando Manuel (que tinha ido então para a pasta das Finanças). Até essa altura era administrador do FSDEA.


Além desta ligação, David Mendes acrescenta que “as alfândegas, as empresas de água de distribuição e produção de electricidade estão nas mãos de familiares do Presidente”. “A sociedade começa a compreender que se está a gerir o país como propriedade privada.” E conclui: “Se fizermos um somatório das empresas públicas dirigidas pela família do Presidente, chegamos à conclusão que Angola é gerida pela família do Presidente.”

Rafael Marques fala de monarquia
O encontro de juristas angolanos, no sábado, ocorre depois de Isabel dos Santos ter sido designada, na quinta-feira, para presidir ao conselho de administração (não executivo) da petrolífera Sonangol, o maior grupo angolano e o mais internacional. A companhia estatal passará a contar com um modelo de governação com um chairman e um presidente executivo (CEO). A nomeação foi formalizada por despacho presidencial, assinado pelo pai, José Eduardo dos Santos.

Ao PÚBLICO o jornalista e activista dos direitos humanos Rafael Marques comentou que a notícia “está a ser recebida com choque pelos incautos”. Trata-se, segundo diz, “do passo essencial para a legitimação da monarquia em Angola”. “Primeiro, o controlo da principal fonte de receitas [a Sonangol], através da qual se compram os apoios políticos e se mantém o controlo da máquina de repressão. Depois o assalto ao poder propriamente dito, a presidência. É preciso travá-la.” E acrescentou: “O Presidente perdeu toda a vergonha. Só lhe falta nomear o gato da família para ministro do ambiente. A culpa é do MPLA, o partido no poder, que se transformou apenas num carimbo para os abusos de José Eduardo dos Santos.”

José Patrocínio, da Organização Não-Governamental Omunga, diz que recebeu a notícia com surpresa: “Todo o contexto angolano indica a necessidade de uma imagem de transparência, principalmente num momento em que se tem a visita do FMI. Angola precisa de recursos externos, empréstimos e obviamente necessita de mostrar vontade e actos que demonstrem uma tendência de mudança do hábito da gestão dos recursos e bens públicos. Deveríamos esperar por uma maior responsabilização dos entes públicos. Não é isso que representa esta nomeação.” E recebeu-a ainda com preocupação pelo facto de a medida não ser “isolada levando mesmo a supor que todo este processo de detenção e julgamento de activistas, em Luanda e em Cabinda, nada teve a ver se não para desviar a atenção dos cidadãos em relação ao grande assalto ao interesse público”.

Efeitos em Portugal
Em Portugal, a presença da Sonangol em Portugal faz-se sentir no BCP, onde a petrolífera angolana é a maior accionista, com 18% do capital. De acordo com o plano de reestruturação do grupo estatal, esta será uma das participações que será transferida para uma nova holding que ficará sob a alçada do Ministério das Finanças.

Ainda não é certo, no entanto, o que acontecerá à posição indirecta que a Sonangol detém na Galp, através da Amorim Energia. Esta sociedade, que detém 38,3% da petrolífera portuguesa, é controlada por duas sociedades de Américo Amorim (55%) e pela Esperaza (45%), sociedade que por sua vez é detida pela Sonangol e por Isabel dos Santos (com uma posição minoritária).

A empresária também marca presença em nome individual no capital do BPI, através da Santoro, que é o segundo maior accionista, com 18,5%. Além disso, tem 47% do BIC Portugal (que comprou o antigo BPN). Além da banca e da energia, a filha do presidente de Angola divide o controlo da operadora de telecomunicações NOS com a Sonae (através da ZOPT) e assumiu no ano passado o controlo da Efacec (um negócio onde teve como parceira a Ende, empresa estatal de distribuição eléctrica).

Sonangol em dificuldades
Os sinais de que a saúde financeira da empresa já conhecera melhores dias surgiram no início de 2015, quando se soube que a Sonangol tinha recebido 1062 milhões de dólares (965 milhões de euros) do Estado angolano para conseguir manter-se como principal accionista do BCP e investir no ex-BES Angola (BESA), hoje Banco Económico, e onde se tornou o maior investidor. O financiamento, designado de “prestação suplementar”, foi efectuado em 2014 com o “objectivo de capitalizar a Sonangol”´e permitir o reforço da presença da petrolífera estatal no sector bancário.

Em Junho do ano passado, foi tornado público um documento interno da empresa, assinado por Francisco de Lemos José Maria, onde o sucessor de Manuel Vicente, actual vice-presidente de Angola, criticava opções do passado (embora tenha feito parte do conselho de administração de Manuel Vicente), destacando que “o modelo operacional” da empresa tinha fracassado e “estava falido”. A Sonangol, dizia, tinha deixado de “saber fazer” e aprendeu a “contratar/subcontratar”. Pelo caminho, denunciava a proliferação da contratação de prestação de serviços, incluindo a “contratação connosco próprios (Sonangol)” e a “presença crescente de ‘contratos fantasma’”. O futuro, dizia, passava por “renegar a cultura da dependência de terceiros” e fazer crescer a eficiência da empresa, através de medidas como maior recurso a concursos públicos, redução de custos, avaliação de desempenho dos trabalhadores, crescer na área da produção, e apostar em parcerias de investimento e no gás natural.

Depois, em Outubro, foi Manuel Vicente, enquanto número dois de José Eduardo dos Santos, quem comunicou que o governo angolano tinha decidido criar uma “comissão de avaliação para estudar a situação da Sonangol e do sector dos petróleos” e propor “as bases da sua reestruturação e um modelo de gestão mais eficaz e eficiente”, algo que está agora em implementação. Esta mudança surge com as contas da petrolífera, a principal fonte de rendimentos do país (afectado pela queda do preço do petróleo, tem em curso um pedido de apoio ao FMI), a sofrer uma deterioração. Se em 2014 o resultado líquido já tinha sofrido uma quebra, em 2015 este indicador caiu 68%, situando-se nos 44.148 milhões de kwanzas (cerca de 235 milhões de euros, ao câmbio actual).


Ao contrário de Manuel Vicente, Francisco de Lemos Maria acabou por ter uma carreira curta na liderança da Sonangol, lugar que ocupou desde 2012 até agora (e sem que se saiba que cargo irá exercer em Angola). Já Manuel Vicente esteve nessas funções durante treze anos (os do boom das receitas petrolíferas), entre 1999 e 2012. Aliás, a Sonangol conheceu poucos líderes: antes de Manuel Vicente, só três outras pessoas tinham ocupado esta função após a formação empresa, após a independência do país: Percy Freundenthal, Hermínio Escórcio e Joaquim Duarte da Costa David. Resta agora saber quem é que vai ocupar o cargo que, por inerência, cabia ao presidente da Sonangol: o da vice-presidência do Conselho Estratégico Internacional do BCP.

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