“Isabel
dos Santos fará negócio consigo mesma e isso levanta suspeitas”
JOANA GORJÃO
HENRIQUES , ANA BRITO e LUÍS VILLALOBOS 03/06/2016 - 15:21
(actualizado às 17:30)
Advogados
vão questionar se o Presidente, ao nomear a filha, está em colisão
com as normas éticas e jurídicas
Um grupo de juristas
angolanos vai discutir no sábado a possibilidade de impugnar a
nomeação de Isabel dos Santos como presidente do conselho de
administração da petrolífera estatal Sonangol, a maior fonte de
receitas do país. O advogado David Mendes, da associação cívica
Mãos Livres, que organiza o encontro, afirmou ao PÚBLICO que esta
“foi uma nomeação muito estranha, tendo em conta que Isabel é
filha do Presidente e tem muitos interesses no mundo do petróleo e
no mundo financeiro”. Assim, no caso de assumir o cargo, esses
interesses “entrarão em colisão” com a Sonangol. “Estando num
órgão tão importante como o conselho de administração faria
negócio consigo mesma ou facilitaria negócios com o seu próprio
grupo. Isso levanta suspeitas.”
Dentro do espírito
da lei da probidade pública, de 2010, sobre o exercício de funções
públicas e que tem como objectivo travar o enriquecimento ilícito,
querem analisar se “esta nomeação não viola as normas”. Vão
questionar: o Presidente, José Eduardo dos Santos, independentemente
da faculdade que tem de nomear os conselhos de administração, ao
nomear a filha isso não choca com as normas éticas e jurídicas?
“Se chegarmos à conclusão que o acto do Presidente viola a lei,
entramos numa acção judicial para impugnar esse acto.”
[“Apesar de as
expectativas da probabilidade de êxito serem muito baixas, o] pior é
não tentarmos”, comenta. “[Fazem-no também] para que a
sociedade saiba que não estamos de acordo e, se houve uma violação,
há uma norma violada e o Presidente, como garante da lei e da
Constituição, deve ter em conta [esse facto].” “Vamos ver qual
é a reacção dos tribunais”, acrescenta.
Em Angola, esta
nomeação está a ser lida como “mais um indicativo de que José
Eduardo dos Santos não vai deixar o poder”, observa. “Quem pensa
deixar o poder não comete estes erros. O próximo Presidente poderia
anular estes actos praticados de forma ilícita ou que beneficiam a
própria família.” David Mendes descreve “uma contestação
muito grande, particularmente nas redes sociais, e nos encontros das
pessoas nos transportes públicos”. As pessoas “começam a sentir
que o Presidente está passando dos limites da apropriação ilícita
do bem público”.
Se é verdade que os
olhos estão agora postos em Isabel dos Santos, José Eduardo dos
Santos já antes tinha colocado outro dos seus filhos, José Filomeno
dos Santos, num dos lugares mais importantes da economia angolana: a
presidência do Fundo Soberano de Angola (FSDEA) que gere cinco mil
milhões de dólares e tem como missão rentabilizar dinheiro do
petróleo e pensar no futuro do país. O cargo foi-lhe atribuído em
Junho de 2013, altura em que José Filomeno dos Santos substituiu
Armando Manuel (que tinha ido então para a pasta das Finanças). Até
essa altura era administrador do FSDEA.
Além desta ligação,
David Mendes acrescenta que “as alfândegas, as empresas de água
de distribuição e produção de electricidade estão nas mãos de
familiares do Presidente”. “A sociedade começa a compreender que
se está a gerir o país como propriedade privada.” E conclui: “Se
fizermos um somatório das empresas públicas dirigidas pela família
do Presidente, chegamos à conclusão que Angola é gerida pela
família do Presidente.”
Rafael Marques fala
de monarquia
O encontro de
juristas angolanos, no sábado, ocorre depois de Isabel dos Santos
ter sido designada, na quinta-feira, para presidir ao conselho de
administração (não executivo) da petrolífera Sonangol, o maior
grupo angolano e o mais internacional. A companhia estatal passará a
contar com um modelo de governação com um chairman e um presidente
executivo (CEO). A nomeação foi formalizada por despacho
presidencial, assinado pelo pai, José Eduardo dos Santos.
Ao PÚBLICO o
jornalista e activista dos direitos humanos Rafael Marques comentou
que a notícia “está a ser recebida com choque pelos incautos”.
Trata-se, segundo diz, “do passo essencial para a legitimação da
monarquia em Angola”. “Primeiro, o controlo da principal fonte de
receitas [a Sonangol], através da qual se compram os apoios
políticos e se mantém o controlo da máquina de repressão. Depois
o assalto ao poder propriamente dito, a presidência. É preciso
travá-la.” E acrescentou: “O Presidente perdeu toda a vergonha.
Só lhe falta nomear o gato da família para ministro do ambiente. A
culpa é do MPLA, o partido no poder, que se transformou apenas num
carimbo para os abusos de José Eduardo dos Santos.”
José Patrocínio,
da Organização Não-Governamental Omunga, diz que recebeu a notícia
com surpresa: “Todo o contexto angolano indica a necessidade de uma
imagem de transparência, principalmente num momento em que se tem a
visita do FMI. Angola precisa de recursos externos, empréstimos e
obviamente necessita de mostrar vontade e actos que demonstrem uma
tendência de mudança do hábito da gestão dos recursos e bens
públicos. Deveríamos esperar por uma maior responsabilização dos
entes públicos. Não é isso que representa esta nomeação.” E
recebeu-a ainda com preocupação pelo facto de a medida não ser
“isolada levando mesmo a supor que todo este processo de detenção
e julgamento de activistas, em Luanda e em Cabinda, nada teve a ver
se não para desviar a atenção dos cidadãos em relação ao grande
assalto ao interesse público”.
Efeitos em Portugal
Em Portugal, a
presença da Sonangol em Portugal faz-se sentir no BCP, onde a
petrolífera angolana é a maior accionista, com 18% do capital. De
acordo com o plano de reestruturação do grupo estatal, esta será
uma das participações que será transferida para uma nova holding
que ficará sob a alçada do Ministério das Finanças.
Ainda não é certo,
no entanto, o que acontecerá à posição indirecta que a Sonangol
detém na Galp, através da Amorim Energia. Esta sociedade, que detém
38,3% da petrolífera portuguesa, é controlada por duas sociedades
de Américo Amorim (55%) e pela Esperaza (45%), sociedade que por sua
vez é detida pela Sonangol e por Isabel dos Santos (com uma posição
minoritária).
A empresária também
marca presença em nome individual no capital do BPI, através da
Santoro, que é o segundo maior accionista, com 18,5%. Além disso,
tem 47% do BIC Portugal (que comprou o antigo BPN). Além da banca e
da energia, a filha do presidente de Angola divide o controlo da
operadora de telecomunicações NOS com a Sonae (através da ZOPT) e
assumiu no ano passado o controlo da Efacec (um negócio onde teve
como parceira a Ende, empresa estatal de distribuição eléctrica).
Sonangol em
dificuldades
Os sinais de que a
saúde financeira da empresa já conhecera melhores dias surgiram no
início de 2015, quando se soube que a Sonangol tinha recebido 1062
milhões de dólares (965 milhões de euros) do Estado angolano para
conseguir manter-se como principal accionista do BCP e investir no
ex-BES Angola (BESA), hoje Banco Económico, e onde se tornou o maior
investidor. O financiamento, designado de “prestação
suplementar”, foi efectuado em 2014 com o “objectivo de
capitalizar a Sonangol”´e permitir o reforço da presença da
petrolífera estatal no sector bancário.
Em Junho do ano
passado, foi tornado público um documento interno da empresa,
assinado por Francisco de Lemos José Maria, onde o sucessor de
Manuel Vicente, actual vice-presidente de Angola, criticava opções
do passado (embora tenha feito parte do conselho de administração
de Manuel Vicente), destacando que “o modelo operacional” da
empresa tinha fracassado e “estava falido”. A Sonangol, dizia,
tinha deixado de “saber fazer” e aprendeu a
“contratar/subcontratar”. Pelo caminho, denunciava a proliferação
da contratação de prestação de serviços, incluindo a
“contratação connosco próprios (Sonangol)” e a “presença
crescente de ‘contratos fantasma’”. O futuro, dizia, passava
por “renegar a cultura da dependência de terceiros” e fazer
crescer a eficiência da empresa, através de medidas como maior
recurso a concursos públicos, redução de custos, avaliação de
desempenho dos trabalhadores, crescer na área da produção, e
apostar em parcerias de investimento e no gás natural.
Depois, em Outubro,
foi Manuel Vicente, enquanto número dois de José Eduardo dos
Santos, quem comunicou que o governo angolano tinha decidido criar
uma “comissão de avaliação para estudar a situação da Sonangol
e do sector dos petróleos” e propor “as bases da sua
reestruturação e um modelo de gestão mais eficaz e eficiente”,
algo que está agora em implementação. Esta mudança surge com as
contas da petrolífera, a principal fonte de rendimentos do país
(afectado pela queda do preço do petróleo, tem em curso um pedido
de apoio ao FMI), a sofrer uma deterioração. Se em 2014 o
resultado líquido já tinha sofrido uma quebra, em 2015 este
indicador caiu 68%, situando-se nos 44.148 milhões de kwanzas (cerca
de 235 milhões de euros, ao câmbio actual).
Ao contrário de
Manuel Vicente, Francisco de Lemos Maria acabou por ter uma carreira
curta na liderança da Sonangol, lugar que ocupou desde 2012 até
agora (e sem que se saiba que cargo irá exercer em Angola). Já
Manuel Vicente esteve nessas funções durante treze anos (os do boom
das receitas petrolíferas), entre 1999 e 2012. Aliás, a Sonangol
conheceu poucos líderes: antes de Manuel Vicente, só três outras
pessoas tinham ocupado esta função após a formação empresa,
após a independência do país: Percy Freundenthal, Hermínio
Escórcio e Joaquim Duarte da Costa David. Resta agora saber quem é
que vai ocupar o cargo que, por inerência, cabia ao presidente da
Sonangol: o da vice-presidência do Conselho Estratégico
Internacional do BCP.
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