sábado, 14 de setembro de 2013

O labirinto do Financiamento dos Partidos.

Os bastidores de uma notícia diferente

Iluminar o labirinto do financiamento partidário não é fácil. Mas nem tudo é impossível
Quando há seis meses começámos a pensar no que poderíamos fazer de útil sobre as autárquicas, decidimos que chegara a hora de juntar todo o financiamento das últimas campanhas. Quem pagou o quê, quanto e a quem em todas as autárquicas desde 1976.
Sabíamos que era ambicioso e complexo, que a documentação está dispersa, que os partidos reportam à Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, do Tribunal Constitucional, de forma diferente, que nestes 40 anos os políticos tiveram de prestar contas a diferentes instituições, que nos primeiros anos da democracia era tudo demasiado amador e que a transparência da coisa pública está longe de ser natural.
Não esperávamos, mesmo assim, ouvir tantas vezes a palavra "impossível" na primeira reunião na Entidade das Contas. "O que vocês querem é impossível." Nós queríamos, de facto, uma coisa que não conseguimos: que fosse possível consultar, no site do PÚBLICO, a origem de todo o dinheiro que é doado para as campanhas autárquicas - desde o advogado de uma pequena vila ao cidadão mais rico do país.
Conseguimos de qualquer modo um trabalho que nunca ninguém fizera em Portugal, nem a própria Entidade das Contas: abrir parte dos arquivos a toda a sociedade, tornando fácil e acessível a consulta dos dados e a comparação das receitas públicas e privadas e as despesas de cada candidatura aos 308 municípios em 2005 e 2009.
Primeiro, foram meses a extrair dados de relatórios da Entidade das Contas. Depois, meses a organizar e a agregar a informação. A seguir, pensar sobre a melhor forma de mostrar estes dados aos cidadãos. Este trabalho foi possível porque, durante seis meses, a jornalista Raquel Albuquerque dedicou 100% do seu tempo a este trabalho, e porque o PÚBLICO tem uma parceria com o REACTION, um projecto de investigação em jornalismo computacional.
A agregação dos dados num só lugar abre portas para várias análises: permite comparar o financiamento que cada partido recebeu num ano ou que um mesmo partido recebeu em anos diferentes; permite comparar municípios; permite concluir que os donativos particulares caíram mais de metade entre as autárquicas de 2005 e 2009 e tentar perceber porquê; que o financiamento público cobre hoje quase 90% das despesas de campanha e reflectir sobre isso. Etc.
Ficam por concretizar outros falsos "impossíveis". Um deles é tornar pública a identidade dos que, a título privado, contribuem para as campanhas eleitorais, como acontece nos EUA. Independentemente dos vícios e virtudes do sistema de financiamento político americano, Portugal está a anos-luz desse nível de transparência e limita a discussão à privacidade. Bastaria um mecenas que financiasse uma equipa para, papel a papel, digitalizar os milhares de documentos guardados no arquivo da Entidade das Contas. É seguramente tarefa para mais de um ano de trabalho. Mas não é impossível.


Financiamento privado dos partidos caiu para metade nas eleições de 2009


Subida do financiamento público tem acompanhado quebra do financiamento privado, mas há a suspeita de que o privado nem sempre é declarado para os partidos receberem mais verbas do Estado
Os donativos e fundos angariados pelos partidos políticos nas campanhas autárquicas de 2005 e 2009 diminuíram 54% e passaram de aproximadamente 9,3 milhões de euros para 4,3 milhões. Uma descida acompanhada pelo aumento do financiamento público, que continua a ser a principal fonte de receitas de campanha, concluiu o PÚBLICO, no âmbito de um trabalho de recolha de dados relativos ao financiamento eleitoral das autárquicas, com base em informação do Tribunal Constitucional (TC) e da Assembleia da República. Os dados podem ser visualizados por município em www.publico.pt/autarquicas2013/financiamento-das-campanhas.
De uma campanha para a outra, o PS angariou menos dois milhões de euros e o PSD menos 2,7 milhões. Os valores de angariação de fundos são considerados "mínimos", segundo se lê no parecer da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (ECFP), órgão que coadjuva o TC na fiscalização do financiamento dos partidos e das campanhas, relativo às últimas autárquicas.
"É convicção da ECFP que os maiores partidos e coligações terão registado as receitas de angariações de fundos como receita do partido, ou que as não terão pura e simplesmente registado, para maximizar a subvenção do Estado, atribuída à campanha, ainda que a ECFP não possa fazer prova dessa suposição", refere o parecer.
O que liga a subvenção à angariação de fundos é central no financiamento de campanha. Há três fontes legais de receitas: subvenção paga pela Assembleia da República, angariação de fundos ou donativos e contribuição do partido. A subvenção tem como objectivo cobrir despesas. Por isso, se uma candidatura angariou fundos, terá de os usar e os deduzir das despesas. Só a diferença será paga pelo Estado. É nesse sentido que, no entender da ECFP, "há uma diminuição sistemática do recurso a angariação de fundos para se optimizar o valor da subvenção estatal a receber".
O PÚBLICO questionou os partidos com assento parlamentar sobre se consideram existir uma relação directa ou de causalidade entre o aumento da subvenção estatal e a diminuição da angariação de fundos, mas apenas obteve resposta do PS, do PSD e do BE. Os socialistas afirmam que, "ao longo dos últimos anos, tem havido um decréscimo de subvenção" para as autárquicas que, entre 2010 e 2013, configura um corte na ordem dos 20%. Assim, os partidos tiveram de "fazer ajustes ao recebimento de subvenção nos seus orçamentos". Por outro lado, os sociais-democratas consideram que, "nas eleições autárquicas de 2009, a subvenção estatal cobriu as eleições do PSD em 80%". Desse aumento da subvenção, o PSD conclui que "decorre uma menor angariação de fundos a realizar pelo partido". O BE realça que a lei estabelecia uma relação directa entre subvenção e angariação de fundos, "mas de forma inversa", ou seja, quanto maior a angariação de fundos, menor a subvenção. Os bloquistas argumentam que, em 2013, "não se pode dissociar a situação de crise da capacidade de angariação de fundos", explicada pela menor capacidade financeira dos apoiantes, pelo que é provável que os donativos voltem a cair. O partido sublinha ainda que agora as angariações de fundos só são descontadas se a subvenção cobrir todas as despesas, isto é, "impede-se que a campanha tenha lucro", mas, por outro lado, se tiver défice, as angariações servem para o colmatar sem que os partidos percam o direito à subvenção.
Questionada pelo PÚBLICO, a Assembleia da República esclareceu que a subvenção vai continuar a ser "limitada pela despesa efectiva", ou seja, "se a soma das receitas (provenientes da subvenção e da angariação de fundos) for superior à despesa efectiva, há devolução de verbas ao Estado, sendo que tal já acontecia em actos eleitorais anteriores".
As regras dos donativos
Quanto à angariação de fundos e aos donativos, existem regras: cada donativo tem de ser feito por cheque ou meio bancário, identificando a origem e o montante (até 25.560 euros por doador). Na prestação de contas, os partidos têm de apresentar comprovativos dos donativos, mas não são obrigados, por lei, a apresentá-los numa lista. Sobre a privacidade dos nomes dos doadores, a lei é omissa, embora haja diferentes interpretações, segundo o PÚBLICO apurou: por um lado, a posição de que as identidades devem estar protegidas, de acordo com a Lei da Protecção de Dados; por outro, que a protecção de dados não se aplica a este caso e que não há nada que impeça os nomes de serem conhecidos.
Concretamente, o financiamento privado foi de 7% do total das receitas de 2009. Já o financiamento público foi de 68% (o restante diz respeito à contribuição do partido). Nas duas campanhas, o Estado pagou 80 milhões de euros: 36 milhões em 2005 e 44 milhões em 2009. Só na última campanha, a subvenção cobriu 88% das despesas.
O aumento de 20% da subvenção deveu-se à actualização do salário mínimo (de 374 para 426 euros), por ser esse o valor de referência para cálculo do limite de despesas, a partir do qual é calculada a subvenção. Apesar de a lei ter substituído o salário mínimo pelo Indexante de Apoios Sociais (IAS) como referência, os 426 euros continuaram, e ainda continuam, a estar em vigor até que o IAS (419,12€) atinja esse valor.
Para receberem subvenção, os partidos ou grupos de cidadãos têm de fazer o pedido à Assembleia da República, após a saída dos resultados eleitorais. O cálculo é feito para cada candidatura, tendo em conta o número de votos para a Assembleia Municipal, as despesas e as angariações de fundos. Segundo a lei do financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais, a subvenção a distribuir por todas as candidaturas de um município é igual a 150% do limite de despesas para o município (este ano com um corte de 20%). Desse total, 25% são distribuídos igualmente pelas candidaturas que tenham concorrido aos dois órgãos municipais e tenham obtido representação de pelo menos um elemento directamente eleito ou, no mínimo, 2% dos votos em cada sufrágio. Os restantes 75% são distribuídos proporcionalmente aos resultados para a Assembleia Municipal. Se um partido obtiver 60% dos votos, terá direito a 60% desse valor restante de subvenção.
Este ano, a Assembleia adiantará 50% da subvenção nos 15 dias seguintes ao pedido de pagamento e o restante até ao máximo de 60 dias. Só depois os partidos são obrigados a apresentar contas à ECFP. Estas serão as primeiras eleições em que, por lei, o prazo conta a partir do pagamento integral da subvenção e não da saída oficial dos resultados.
Visto a fiscalização das contas só ser feita após o pagamento da subvenção, se houver pagamento em excesso, cumpre à Entidade das Contas emitir as irregularidades no parecer, para posterior decisão pelo Tribunal Constitucional. De acordo com o que o gabinete da secretária-geral da Assembleia da República disse ao PÚBLICO, "a serem identificadas diferenças, quer na subvenção/receitas, quer nas despesas, devem as forças políticas ser questionadas no sentido de corrigir o valor da subvenção atribuída".
"A democracia tem custos"
"Os partidos não vão perder tempo a angariar fundos e se o fazem é de outra forma", disse ao PÚBLICO Manuel Meirinho, presidente do ISCSP e ex-deputado eleito como independente pelas listas do PSD em 2011. Meirinho considera "manifestamente elevados" os valores de financiamento público, sobretudo numas eleições caracterizadas por uma "dinâmica de proximidade". Para o ex-deputado, o aumento da injecção de dinheiro público nas eleições não se reflectiu numa maior participação eleitoral, como se vê na elevada taxa de abstenção nas autárquicas. "No limite, poderíamos ter o mesmo financiamento de 1976 e não ter variações nenhumas no comportamento eleitoral", considera. "É claro que a democracia tem custos, mas temos é de determinar quais é que pode pagar."
Manuel Meirinho defende uma "lei mais permissiva na angariação de fundos", que permita aos candidatos terem relações mais abertas, "com formas de controlo da regularidade e legalidade, como no modelo americano", evitando assim que consolidem a sua "dependência" do Estado. O ex-deputado rejeita a ideia de que é o financiamento público que assegura um menor financiamento ilícito pelos partidos, até porque há uma dimensão social, "que se traduz em apoios imateriais", podendo ficar fora das contas.
Paulo Morais, vice-presidente da Associação Cívica Transparência e Integridade (TIAC) e director do Instituto de Estudos Eleitorais da Universidade Lusófona do Porto, coloca a questão de outra forma, ao explicar que parece não existir uma relação directa entre o aumento da subvenção estatal e a queda da angariação de fundos por parte dos partidos, "até porque parte do financiamento das campanhas é feito em dinheiro vivo (notas)".
Na avaliação que faz, o próprio aumento da subvenção não constitui por si só um problema. "É preferível que o financiamento seja público, limitado e transparente, em vez de privado, secreto e quase ilimitado", afirma. Mas se o sistema americano, de divulgação pública da lista de contribuintes e dos valores doados para as campanhas, tem algumas virtudes, Paulo Morais acredita que pode não ser a solução para Portugal, onde o peso do Estado na economia é incomparável. "Em Portugal, com a capacidade que os actores do Estado têm de definir quem pode fazer negócios, o financiamento de campanhas é um mecanismo preferencial de tráfico de influências", diz.
Paulo Morais está convicto de que o actual modelo de financiamento beneficia todos os intervenientes. E descreve uma teia em que entram partidos que "não têm limitações nos gastos", "angariadores que arrecadam comissões obscenas", e "financiadores", os que "mais ganham", já que os seus contributos "garantem favores do Estado", sob a forma, por exemplo, "de obras públicas e licenciamento de obras ilegais". O vice-presidente da TIAC traça um cenário negro em que os angariadores de donativos retêm, em média, 40% do montante e entregam o restante aos partidos, "que depois o gastam de forma ilimitada, indiscriminada e sem documentos que atestem as despesas".
Para as próximas autárquicas, em que há um corte de 20% na subvenção, os partidos orçamentaram 9,6 milhões de euros em despesas, um valor que fica longe do que foi gasto nas duas últimas campanhas e abaixo dos 38 milhões de euros de subvenção que a Assembleia da República tem orçamentados para este ano. com Rita Brandão Guerra

Partidos ainda não pagaram coimas das últimas autárquicas




Quatro anos depois e a duas semanas de o país ir a votos novamente para o poder local, ainda não são conhecidas as coimas relativas à eleição autárquica que decorreu em 2009
Em Maio deste ano, depois de um parecer da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (ECFP), o Tribunal Constitucional (TC) emitiu um acórdão em que aponta falhas aos partidos nas eleições autárquicas de 2009. Entre as questões remetidas ao Ministério Público (MP) estão os meios e serviços de campanha que não se reflectem directa ou indirectamente nas contas da campanha, receitas que só são depositadas depois do dia das eleições, duplicação de despesas ou donativos que levantam dúvidas.
Segundo o PÚBLICO apurou, o MP já poderá ter decidido as coimas a aplicar aos partidos, mas a palavra final cabe ao TC, cujo acórdão ainda não é conhecido.
Paulo Morais, vice-presidente da Associação Cívica Transparência e Integridade e director do Instituto de Estudos Eleitorais da Universidade Lusófona do Porto, atribui este hiato à "típica lentidão da justiça", mas sobretudo à "normalidade" de os partidos serem sempre condenados em questões de financiamento e prestação de contas. "Se há área em que os partidos são sempre condenados é essa, já não constitui uma surpresa para os cidadãos eleitores. Os cidadãos sabem de antemão que a informação é negativa, os partidos não conseguem sequer cumprir as leis que eles próprios elaboram", afirma Paulo Morais.
Se olharmos para o passado, o desfecho das eleições autárquicas de 2005 só aconteceu em Março de 2010. No total, os partidos com assento parlamentar foram obrigados a desembolsar mais de 120 mil euros.
Os mais penalizados foram PS e PSD, com coimas de 30 mil euros para os respectivos partidos e de três mil para os mandatários financeiros. O CDS foi obrigado a despender 14 mil euros, mais 3000 imputáveis ao seu mandatário financeiro. Mais à esquerda, o PCP teve de responder a uma coima de 20 mil euros, acrescida de 3000 ao seu mandatário financeiro e o BE foi chamado a desembolsar uma coima de 12 mil euros mais 2500 a pesarem sobre a mandatária financeira do partido.
Entre as contra-ordenações apontadas no acórdão referente às eleições de 2005, estão, por exemplo, facturas com data de emissão posterior à do acto eleitoral (CDU), não apresentação no prazo de 90 dias de todos os balanços das contas da campanha (BE, CDU), assim como a falta da totalidade dos extractos das contas bancárias associadas à campanha até que as mesmas sejam canceladas (PS, PSD, BE, CDS, CDU). Também mereceram sinal vermelho do TC os montantes de angariações de fundos cujos doadores não foi possível identificar (PS, BE), doações depositadas depois das eleições (PS), sobreavaliação da subvenção estatal (PS, PSD, BE, CDS) ou incumprimento do dever de reflectir adequadamente nas contas da campanha todas as receitas e despesas (PSD, CDS, CDU).
O procedimento de escrutínio do acto eleitoral é complexo. No primeiro patamar, cabe à ECFP realizar uma auditoria às contas das campanhas. A palavra é devolvida aos partidos para justificarem falhas e irregularidades detectadas. Só depois a ECFP elabora um parecer que remete ao TC. Os juízes do Palácio Ratton decidem então sobre a regularidade do processo, enviando as conclusões para o Ministério Público, a quem cabe a promoção das coimas que entender aplicáveis. O processo volta então ao Tribunal Constitucional, que profere a decisão final. É esse desfecho que ainda se aguarda sobre as eleições de 2009.

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