sábado, 21 de setembro de 2013

Autárquicas . Uma Avalanche de Populismo e Oportunismo. Das 56 listas independentes, 48% provêm de querelas partidárias. Não é ainda a hora dos cidadãos.


Um fracasso mais que esperado


Dizer mal dos autarcas, ridicularizar as rotundas, apontar vezes sem conta os processos judiciais que os ameaçam tornou-se um desporto nacional que deixa incólume um outro problema grave do municipalismo nestes tempos de chumbo: a degradação da vida cívica e a clausura a que o poder autárquico sujeitou as comunidades locais em grande parte do país. Sim, os problemas das autarquias não estão apenas na corrupção (mais visível mas em escala menor do que a da administração central), nem sequer na má gestão (o poder local que no mundo desenvolvido menos gasta do Orçamento do Estado tem até resultados aceitáveis): o pântano das autarquias, um pântano que faria corar de vergonha Alexandre Herculano, Oliveira Martins, Teófilo Braga e todos os grandes pensadores que encontraram nos municípios a fonte primordial das virtudes pátrias, está no caciquismo, no nepotismo, na apropriação do espaço público por uma franja de autarcas que mais parecem régulos do tempo dos Vátuas do que representantes eleitos de um regime democrático.
Pensava-se que a lei eleitoral de 2001, que concede às associações de cidadãos o direito de concorrer às autarquias, iria mudar essa nódoa negra, mas o veneno do caciquismo está tão consolidado que só uma terapia violenta o pode expurgar. Olhando para as mais de 90 candidaturas independentes nota-se que muito poucas resultam da vontade ou da dinâmica de cidadãos. Porque na verdade na maioria dos municípios não há vida pública democrática. Com honrosas excepções, a maioria dos movimentos ditos "independentes" limita-se a exprimir ajustes de contas entre o pessoal político que há décadas se dedicou a suprimir a participação cívica.
Nas autarquias do interior (leiam-se os programas da oposição para se ficar com uma ideia clara) o medo do senhor presidente e dos seus apaniguados existe em larga escala. Por isso se depreciaram as assembleias municipais, por isso se esganaram com o garrote da publicidade jornais ou rádios livres, por isso muitas das associações culturais ou cívicas se tornaram entes moribundos perante a imposição do autarca que tudo sabe, tudo controla, tudo decide. O espaço de debate livre e de discussão existe, quando existe, no seio dos comités tutelados pelo presidente, ou, em vésperas de eleições, nos círculos da oposição que anseiam poder repetir a fórmula do controlo mudando-lhe apenas os rostos. Tudo o resto é um mundo onde o medo e a retaliação que o alimenta, a pobreza e a dependência económica que a exaspera se conjugam e se perpetuam. É esse senhorio das consciências que alimenta a corrupção, que privilegia a mediocridade, que contribuiu para que grande do interior se tenha transformado num deserto ideal para a preservação dos dinossauros.
A fraude das candidaturas independentes torna obrigatório um olhar mais atento para esse mundo. O que o poder local fez nascer, alimentou e preserva é uma excrescência da democracia que não se combate à força do decreto. Esgotada há muito a era das infra-estruturas, o poder local só se reinventará, só recuperará o seu lugar de onde emerge vitalidade, resistência e valores comunitários, se todo o desenho do Estado entrar em discussão. Enquanto entre os municípios e o Estado central houver a distância invencível que hoje os separa, nada mudará na democracia local. Longe dos que têm o verdadeiro poder, perto de mais dos que não têm poder nenhum, o modelo actual fomenta o autarca-tiranete e retira à democracia local os checks and balances que a podiam garantir. Sem regiões administrativas, o poder local continuará a apodrecer e a apodrecer o espírito cívico das comunidades onde é exercido.

O que fazer com estes independentes?

Editoral / Público
Das 56 listas independentes, 48% provêm de querelas partidárias. Não é ainda a hora dos cidadãos
Há dois meses eram 78 candidaturas. Hoje, a uma semana do voto, são 96. Todas elas se dizem independentes mas, como já era previsível, a maioria das candidaturas autárquicas que se apresentam sob essa geral designação (54%) provêm dos partidos, ou melhor, de cisões temporárias ou definitivas com os seus aparelhos. Os casos são, na sua maioria, de antigos autarcas que nestas eleições foram preteridos ou não concordaram com as escolhas do partido para as candidaturas oficiais. Romperam então os laços com a sigla e, ao lado, criaram outra. Dois exemplos, dos vários que nesta edição analisamos (ver págs. 2/3): na Anadia, Litério Marques, do PSD, criou o MIAP como forma de se recandidatar (embora como segundo na lista; em primeiro colocou a sua vice-presidente); e em Almeirim, José Sousa Gomes, do PS, impedido de se candidatar devido à lei de limitação de mandatos, lançou o Movimento Zé Gomes (muito imaginativo, o título) para uma candidatura paralela à lançada pelo PS, que não lhe agradou; à frente, pôs a sua chefe de gabinete; e colocou-se a si próprio em segundo lugar, também como candidato a presidente da assembleia municipal.

Estes exemplos não representam todos os outros, mas de norte a sul não faltam casos de candidatos que, sendo militantes ainda dos seus partidos ou tendo-se afastado deles de forma não categórica, lançaram listas para fazer valer o seu nome e as suas propostas contra a das siglas que até há bem pouco tempo defendiam. Para além do despeito e de zangas internas, a perda de influência dos partidos tradicionais ajuda a esta "onda" que, infelizmente, não é ainda a que emana da cidadania pura e simples. Em 2009, candidaturas apresentadas como independentes ganharam sete autarquias. Em 2013, câmaras de relevo como as de Gaia, Matosinhos ou Sintra podem seguir idêntico caminho. Só mais tarde se saberá o real valor de tais "independências". E qual o seu benefício para os cidadãos e munícipes.

Guilherme Aguiar não se conformou com a escolha do PSD para suceder a Menezes e avançou pelos seus próprios meios
Cisões dentro dos partidos na origem de mais de metade dos independentes

Dos 96 movimentos de cidadãos, 52 (54%) têm origem em guerras fraticidas nos partidos. Bases do PS e do PSD sob pressão, mas lideranças desvalorizam
Independentes, episódio número um: José Sousa Gomes, presidente da Câmara de Almeirim eleito pelo PS, está impedido de se recandidatar por força da lei da limitação de mandatos, mas desenganem-se os que acreditavam numa renovação política na vila ribatejana. José Sousa Gomes não gostou do nome do PS escolhido para a sua sucessão e sob a capa das candidaturas independentes lançou o Movimento Zé Gomes, que será liderado pela sua chefe de gabinete, Rosa Nascimento, e no qual ele será não apenas o número dois mas também o cabeça de lista à assembleia municipal.
Independentes, cena número dois: uns 150 km a norte, na Anadia, Litério Gomes, um dinossauro do PSD, não tolerou que o seu legado fosse entregue ao presidente da concelhia do partido, José Manuel Ribeiro, e patrocinou o MIAP, que será encabeçado pela sua vice-presidente e no qual a sua pessoa ocupará o segundo lugar da lista.
Independentes, história número três: Miguel Rodrigues e Adérito Figueira nunca lideraram a Câmara Municipal de Alijó, no distrito de Vila Real, mas o ex-número um do PSD juntou-se ao ex-número dois e até agora vice-presidente da autarquia do PS para formarem uma lista de independentes em protesto contra os partidos que os afastaram da corrida pela liderança do município.
Um pouco por todo o país o retrato de Almeirim, de Anadia ou de Alijó repete-se. Entre as 96 candidaturas autárquicas independentes, 52 resultam de dissidências ocorridas no seio dos partidos nos dois últimos anos. Se forem considerados casos como os de Avelino Ferreira Torres, em Marco de Canavezes, ou de Patacão Rodrigues, em Vila Viçosa, afastados há anos dos partidos, comprova-se que só uma pequena parte dos independentes resulta da associação de cidadãos para "livremente" elegerem "representantes seus nos órgãos do poder político" e para contribuírem "para a tomada de decisões e a resolução dos problemas sociais", como, no entender da Comissão Nacional de Eleições, determina o espírito da lei de 2001 que extinguiu o monopólio dos partidos na política local. Na maior parte dos casos, em vez do associativismo cívico, o que mobiliza os independentes são ódios pessoais, interesses particulares, quezílias familiares, guerras de facções ou ideias baseadas na crença do líder providencial. "Uma farsa na democracia", lamenta Marco António Costa, coordenador e porta-voz do PSD.

O impacte nos partidos
Para os partidos, há desafios no horizonte para os quais não há ainda respostas. Pela perda de influência política, mas também pelo impacte das fracturas internas. Os independentes conquistaram sete autarquias em 2009 (Alandroal, Amares, Estremoz, Gondomar, Oeiras, Redondo e Sines) e se em Alandroal e Gondomar um impedimento do Tribunal Constitucional obsta à repetição desse sucesso, os partidos correm o risco de perder cidades relevantes como Gaia, Matosinhos ou Sintra. Com menos âncoras no terreno e com as âncoras que persistem mais debilitadas, a base partidária está, para alguns, sob stress. "Os partidos sempre recorreram às câmaras ou às suas estruturas concelhias para se enraizarem localmente. Se perderem esse acesso, isso vai ter impacte no seu papel ao nível nacional", estima Carlos Jalali, professor de Ciência Política da Universidade de Aveiro.
O PSD é considerado pelos seus militantes o partido "mais português de Portugal" por força da sua implantação no território. A hegemonia política nacional que tem partilhado com o PS está associada à sua capacidade de mobilização em todo o território. Não admira, por isso, que seja o partido mais vulnerável à erosão dos "falsos independentes". Uma erosão que, no entanto, não preocupa o partido. "O PSD tem uma enorme capacidade de se auto-regenerar", diz Marco António Costa. E acrescenta: "Há pessoas que fazem o mesmo mal aos partidos estando dentro ou fora das suas estruturas." Apesar desta convicção, o coordenador e porta-voz do PSD defende que os independentes "condicionam" o sistema partidário e, a título pessoal, admite que a lei deveria contemplar "um período de nojo para os que saem dos partidos". Uma solução cada vez mais partilhada, mas que pode estar comprometida por limitações de natureza constitucional.
Não foi a lei de 2001 que trouxe à superfície os conflitos, por vezes azedos, no seio das estruturas locais dos partidos. Carlos Jalali recorda que nas disputas das comissões políticas locais sempre houve acusações de fraude, demissões e recurso aos tribunais. Mas se até então o dissídio e o ressentimento acabavam com pactos internos ou com a derrota assumida por uma das facções, depois de 2001 essas divergências encontraram nas candidaturas independentes um espaço ideal para se perpetuarem. As zangas temporárias deram lugar a rupturas definitivas.
No caso do PS, os novos estatutos, que concedem aos órgãos concelhios a prerrogativa de elegerem os candidatos, agravou os riscos de conflito. Em muitos casos o resultado desse "exercício natural de democracia", como o define Miguel Laranjeiro, secretário nacional do partido para a organização, consumou-se em divergências que acabaram em movimentos de independentes. "A natureza humana é assim desde os gregos", diz Laranjeiro, que desvaloriza eventuais impactes negativos no aparelho do partido. "Os eleitores saberão distinguir os independentes dos dissidentes", sublinha.

A extinção dos dinossauros
A multiplicação de listas de independentes (foram 54 em 2009) foi acelerada pela lei que obrigou as estruturas locais dos partidos a escolher sucessores dos presidentes com mais de três mandatos consecutivos. Nesse processo (que sugere "um desmame", como nota Marco António Costa) a crispação atingiu novos máximos com a multiplicação de candidatos a disputar a herança do autarca cessante. Feitas as escolhas, o pessoal político até então reunido em torno do presidente divide-se em facções. Em vários casos, os independentes são vices-presidentes, como acontece, por exemplo, em Almodôvar, Cabeceiras de Basto, Nisa, Vila Nova de Cerveira ou Grândola. Depois, há casos em que presidentes de junta exprimem da mesma forma o seu protesto, como acontece em Chaves, na Calheta ou em Sintra. Igualmente abundantes são os casos de vereadores que sacodem os laços da militância partidária e entram na corrida em movimentos personalizados, como acontece em Idanha-a-Nova, Covilhã, Salvaterra de Magos ou Ourém. Ou de presidentes de assembleia municipal, como em São João da Pesqueira.
As dissidências e o novo impulso dos independentes levaram os principais partidos autárquicos a rever as suas estratégias no terreno. Em muitos casos, o PS ou o PSD esforçam-se por aproveitar as fracturas dos adversários tradicionais para os debilitar através de coligações com os independentes. Acontece, por exemplo, em Aguiar da Beira, onde o ex-PSD Joaquim Bonifácio recebeu o apoio do PS e do CDS/PP. Para o Bloco e para o CDS os independentes estão a servir para dissimular as suas débeis capacidades de implantação.
Mas o sucesso de movimentos como o MUDA do Alandroal, que em 2009 elegeu João Grilo, é já suficiente para abrir conflitos na própria galáxia dos independentes, que acabam por emular as velhas práticas de combate político dos partidos. No caso, o independente MUDA foi impedido de concorrer às eleições após uma queixa interposta no TC pelo independente DITA, liderado pelo ex-socialista João Nabais.
Com o passar dos anos e com a experiência do poder, as candidaturas independentes têm-se normalizado e aproximado das experiências dos partidos. Em Almeirim é José Sousa Gomes que dá a cara pelo movimento encabeçado por Rosa Nascimento, como fazia até agora na qualidade de eleito pelo PS. E se José Barbosa tinha sido eleito em 2009 numa lista de independentes em Amares, no Minho, e se a limitação de mandatos o obriga a ceder o seu lugar a Sara Leite, nada o inibe de se manter na liderança. O que mudou, então? Sara Leite desvaloriza as semelhanças com a política "normal" e sublinha que a diferença está nas pessoas. O movimento ao qual dá a cara tem "organização e hierarquia" (garantida pelo presidente da câmara), mas em vez dos rituais de eleições internas ou de plenários de militantes, ali reina a "espontaneidade" - até porque não há órgãos sociais. A escolha de Sara Leite para suceder a José Barbosa fez-se por isso sem urnas de voto nem eleições plenárias. Fez-se num jantar.

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