segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Não há, pois, qualquer motivo para desistir da luta pela "democratização da democracia". Limitação de mandatos: não desistir, não desistir nunca

 Não há, pois, qualquer motivo para desistir da luta pela "democratização da democracia".

Limitação de mandatos: não desistir, não desistir nunca

Ultrapassado o quadro das eleições autárquicas, é importantíssimo avançar para uma reforma da lei de limitação de mandatos

1. As decisões do Tribunal Constitucional sobre a limitação de mandatos autárquicos - que, embora respeitáveis e compreensíveis, nada têm nem nada tinham de necessário - representam um revés para todos aqueles que se têm batido pelo aperfeiçoamento da democracia em Portugal. Um revés, mas não mais do isso: um simples revés. Não há, pois, qualquer motivo para desistir da luta pela "democratização da democracia". Ultrapassado o quadro das eleições autárquicas, é, por conseguinte, importantíssimo avançar para uma reforma da lei de limitação de mandatos, fazendo corresponder a sua letra àquele que era o seu verdadeiro desígnio e a percepção pública do mesmo. E naturalmente melhorando algumas lacunas que - como se vai vendo por esse país fora - podem dar origem a situações abusivas.
Note-se que não intercede aqui nenhuma fé ou crença na eficácia mítica ou mágica desta medida. A melhoria do quadro de funcionamento do nosso regime democrático - diminuindo o peso excessivo dos partidos e das suas máquinas, maximizando a igualdade de oportunidades e fomentando a participação cívica - não decorre nem resulta de uma medida única ou isolada, por mais simbólica ou exemplar que se apresente. Depende, isso sim, de um conjunto vasto e diferenciado de melhoramentos, entre os quais se encontra seguramente a extensão do âmbito de aplicação do princípio republicano. E aí tem grande relevância a limitação de mandatos autárquicos, mesmo que beliscada por esta "legitimação" a posteriori da migração de candidatos.

2. Pode e deve, aliás, aproveitar-se o ensejo para levar a cabo uma profunda reforma da lei eleitoral para a Assembleia da República. Uma reforma que, na esteira das possibilidades já previstas na Constituição, permita a aproximação dos eleitos aos eleitores (com círculos uninominais ou muito mais pequenos), a aceitação de listas independentes e a sempre adiada redução do número de deputados. Pode, aliás, equacionar-se a introdução da limitação de mandatos dos eleitos parlamentares. Embora aí se deva ter em conta que os problemas se põem mais intensamente nos cargos executivos de eleição directa (caso do Presidente da República e dos presidentes de executivos autárquicos, se bem que estes como "cabeças de uma lista") do que propriamente nos cargos de natureza legislativa ou até executiva, mas de indicação indirecta (v.g. primeiro-ministro e presidente de governo regional). Não vejo, todavia, nenhuma objecção a uma generalização da aplicação do princípio republicano na sua vertente de princípio de proibição de renovação de mandatos consecutivos. No caso das assembleias legislativas e deliberativas, será avisado ter em conta que a renovação não deve fazer-se integralmente de uma só vez, mas de modo faseado no tempo - efeito que pode conseguir-se de várias maneiras. Insisto, porém, e disso não podemos desistir: em matéria de proibição da renovação, a prioridade vai para os detentores do poder executivo e, em especial, daqueles que são designados em eleições directas.

3. Muitos são os que continuam largamente impressionados pelo argumento do respeito absoluto pela regra da maioria (e há laivos desse fascínio na retórica discursiva do Tribunal Constitucional). Mas importa recordar, uma outra vez, que a democracia não se esgota na regra da maioria e que a liberdade política que se pretende garantir aos já detentores de cargos implica uma privação fáctica da mesma liberdade para quase todos os demais. Nem todos se aperceberam ainda, mas o trilho das democracias ocidentais terá de orientar-se mais para o lado substantivo da democracia (a defesa dos direitos e liberdades) e, porventura menos, para o lado procedimental (o voto e o comando das maiorias). Com efeito, o processo de "desterritorialização" a que assistimos acentua o desajustamento entre os círculos eleitorais em que releva o voto e os "círculos de decisão" - o que obviamente tem enfraquecido o poder do "voto" enquanto instrumento de autodeterminação individual e colectiva. Eis uma tendência que, devendo ser combatida, não pode ser ignorada e que nos obriga a reforçar a dimensão "garantística" e "jusfundamental" para tentar compensar essa "debilitação" do poder inerente à expressão formal do voto. Questão tanto mais decisiva quanto se antolha hoje evidente (como aqui muitas vezes se tem escrito e reescrito) que o actual regime dá sinais sérios de fadiga e de exaustão - o que demanda uma atenção reformista do nível político em nada menos exigente do que as reformas do foro económico.

4. Justamente essa necessidade de reforço das dimensões materiais da democracia, no estádio actual das sociedades políticas ocidentais, é que me predispõe a defender e respeitar o estatuto, o lugar e o papel do Tribunal Constitucional, mesmo quando discordo aberta e até radicalmente de algumas das suas decisões. E é esse mesmo ímpeto que me obriga - em jeito de nota final - a fazer menção a uma crítica fácil, quiçá populista, que fez curso e teve sucesso por entre gente de responsabilidade. Diz ela respeito à circunstância de, em tempo de férias, o Tribunal deliberar em regime de turnos e de o fazer sem olhar à natureza, gravidade ou melindre de matérias que tinha de tratar.
Ao contrário de tantos outros, digo: ainda bem que o fez. Uma das garantias fundamentais da independência dos tribunais é a garantia do juiz natural. Ao observar escrupulosamente as regras de composição, previstas para tempo de férias, o tribunal mostrou que não faz variar os seus critérios de organização e de distribuição do trabalho em função da oportunidade política ou mediática. E essa impassibilidade - que tantos quiseram fazer passar por frivolidade ou leviandade - é um precioso motivo de confiança institucional. Que os deuses nos guardem do dia - que já esteve mais longínquo - em que não se observe a garantia do juiz natural.
Eurodeputado (PSD). Escreve à terça-feira paulo.rangel@europarl.europa.eu

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