quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Beethoven uma vida minada pelo álcool.

Beethoven uma vida minada pelo álcool

O autor da Nona Sinfonia e do Hino à Alegria tinha uma tendência imoderada para a bebida. Terá começado beber aos 17 anos para afogar a mágoa provocada pela morte da mãe. O resultado da autópsia não deixa margem para dúvidas: uma falha do fígado provocada por cirrose alcoólica
Ludwig van Beethoven: a sua obra musical imensa, a sua terrível surdez... e as discussões sem fim sobre as causas da sua morte e das suas doenças. Quase dois séculos depois do seu desaparecimento, a 27 de Março de 1827, aos 56 anos de idade, o caso médico do compositor alemão continua a intrigar médicos e investigadores. E é com alguma regularidade que novas teorias são publicadas em revistas médicas e científicas.
É certo que, neste domínio, o autor da Nona Sinfonia e do Hino à Alegria está longe de rivalizar com o seu compatriota Wolfgang Amadeus Mozart, que morreu algumas décadas antes dele (em 1791), aos 35 anos. Pelo menos 140 causas foram avançadas como estando na origem da morte do compositor de A Flauta Mágica e de Don Giovanni. Mas não faltou imaginação aos especialistas para tentarem explicar os sintomas crónicos - a começar pela surdez - de que sofria Beethoven e identificar a doença que provocou a sua morte.
Retrospectivamente, e tendo fé nas descrições do seu relatório de autópsia, da sua correspondência (excessiva), dos escritos dos seus amigos e dos seus médicos, o ilustre compositor padecia de sífilis, de uma doença inflamatória do intestino, de tuberculose, da doença de Paget (uma patologia de remodelagem dos ossos que pode levar à surdez) e de alcoolismo... É sobretudo a partir das cartas do músico e de documentos dos seus próximos que foi reconstituída, de forma bem precisa, a evolução da sua surdez, cujos primeiros sintomas começaram antes dos 30 anos, acabando por o atirar para o silêncio nos últimos anos da sua vida.
O alívio do álcool
Os escritos de Beethoven e dos seus médicos também se revelaram preciosos para documentar outros problemas de saúde (problemas digestivos e depressão, entre outros), e sobretudo a sua tendência imoderada para a bebida. A correspondência de Beethoven é rica em alusões ao prazer e o alívio que o álcool lhe proporciona, em particular o vinho. No leito da morte, numa altura em que se encontra num estado físico deplorável, com um quadro clínico que indica a falha das funções renais (dores abdominais, icterícia, ascite e edema dos membros), ele ainda quer mais um remédio. "Como poderei agradecer-vos por este excelente champagne, como ele me restaurou, como ele me vai restaurar ainda mais!", escreve o compositor ao barão Johan Pasqualati, naquela que será umas das suas últimas cartas, datada de Março de 1827 (extracto do livro Les Lettres de Beethoven, Actes Sud, 2010).
A autópsia realizada, ao que tudo indica a pedido do próprio, confirma que os seus órgãos estavam minados pelo álcool.
"A cavidade abdominal está cheia a quatro quartos de um líquido avermelhado e turvo. O tamanho do fígado está reduzido a metade. Está compacto e tem uma consistência enrugada, de cor verde azulado, e a sua superfície está coberta de nódulos do tamanho de feijões", está escrito no relatório da autópsia, traduzido do latim por François Martin Mai, cujo artigo foi publicado no Journal of the Royal College of Physicians of Edinburgh em 2006. O baço é descrito como muito inchado, bem como o pâncreas. Os rins estão muito danificados...
Mesmo na ausência de exames dermopatológicos (análise ao microscópio de tecidos), que não existiam na altura, o diagnóstico não deixa margem para dúvidas. Foi uma falha do fígado provocada por cirrose alcoólica, complicada por uma peritionite, que levou Beethoven à morte, concluiu François Martin Mai. A lesão do pâncreas também pode ser explicada pelo excesso de álcool. "Alguns autores sugeriram uma origem viral. Mas as hepatites B e C não eram conhecidas antes do século XX, e a hepatite A não se complica por causa da cirrose", sublinha este médico canadiano.
"Estas lesões apontam para uma fase terminal de cirrose hepática nodular, como aquela que é possível observar nos alcoólicos", confirma o médico Frédéric Maître, dermopatologista do Instituto de Medicina Legal de Paris. "A peritonite é uma complicação clássica nestes doentes, já que o líquido presente na cavidade abdominal infecta facilmente, a partir de uma infecção pulmonar, por exemplo."
Os médicos que realizaram a autópsia descrevem também, muito minuciosamente, a anatomia das partes externa, média e interna das orelhas do compositor surdo. "Não há argumento a favor de uma otosclerose, um diagnóstico em tempos evocado para Beethoven. A lesão principal é a degeneração dos nervos cocleares, que atrofiaram", resume Frédéric Maître. O especialista sublinha igualmente que a autópsia do compositor alemão foi a primeira efectuada por Karl von Rokitansky, que se irá tornar um famoso patologista e que estará na origem da criação de protocolos para estes exames post mortem.
De onde vem o chumbo?
Beethoven seria portanto um alcoólico que, como tantos outros, sucumbiu a uma cirrose? Não apenas. Os exames feitos ao longo da última década aos seus cabelos e mais recentemente a ossos do seu crânio estabeleceram que o compositor sofria também de saturnismo, ou seja, uma intoxicação crónica de chumbo. A história destas "relíquias" é ela própria edificante, como conta o médico de urgências Patrick Pelloux, no seu livro publicado em Março, On ne meurt qu"une fois mais c"est pour si longtemps.
As mechas de cabelo foram cortadas por um jovem admirador, que ajudou a preparar o corpo de Beethoven depois da sua morte. E, após um longo périplo, esses cabelos reapareceram num leilão da Sotheby"s. A origem dos fragmentos de crânio é bem mais sórdida. "Durante a autópsia, os médicos esconderam-se atrás das cortinas. Depois esmagaram o crânio e roubaram pedaços de ossos, como um bando de ladrões a pilharem um local histórico", escreve Pelloux.
Mas de onde vinha todo aquele chumbo e que sintomas pode ele explicar?
Em 2007, um médico austríaco, Christian Reiter, avançou com a hipótese que foram as compressas embebidas com chumbo aplicadas pelo seu médico, Andreas Wawruch, cada vez que fazia uma punção para retirar líquido da cavidade abdominal do doente.
A explicação é bem mais trivial, considera a equipa de Michael Stevens (universidade de Utah). "Embora o chumbo possa ser proveniente de numerosas fontes externas, como a louça, as garrafas de vinho, o cristal e a água das estações tremais, pensamos que, no caso de Beethoven, a fonte mais provável é o próprio vinho", escrevem eles num artigo publicado em Maio na The Laryngoscope, revista da Sociedade americana de Otorrinolaringologia. "É bem conhecido que naquela época o chumbo era acrescentado ilegalmente aos vinhos baratos para melhorar o seu sabor. Beethoven apreciava particularmente os vinhos adulterados da Hungria."
Para apoiar a sua teoria, estes autores americanos insistem no longo passado de consumidor de álcool de Beethoven, que terá começado a embebedar-se aos 17 anos para afogar a mágoa provocada pela morte da sua mãe. E sublinham também o caracter familiar deste vício, notando que o pai e a avó do músico também morreram de complicações ligadas ao álcool.
A intoxicação de chumbo, que começou bem cedo na vida de Beethoven, pode estar na origem das lesões dos nervos auditivos e, portanto, da sua surdez, considera a equipa de Stevens. E esse saturnismo poderá explicar um bom número de sintomas: as suas alterações de humor, a falência do fígado, dos rins... as suas crises de dores abdominais. Directa ou indirectamente, foi sem dúvida a sua queda para o vinho que matou Beethoven.

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