POLÍTICA CULTURAL
Nuno Crespo responde às acusações de racismo no concurso
para a Bienal de Veneza
Atacado nas redes sociais e nos jornais por alegadamente
ter impedido a escolha de Grada Kilomba por motivações racistas e misóginas, o
crítico de arte diz estar a ser alvo de uma campanha difamatória.
Luís Miguel
Queirós
27 de Dezembro de
2021, 20:11
Acusado de ter
sabotado, por motivações racistas, o projecto de Grada Kilomba no concurso que
veio a seleccionar Pedro Neves Marques para representar Portugal, em 2022, na
Bienal de Arte de Veneza, o crítico de arte Nuno Crespo quebrou o silêncio que
até agora vinha mantendo para esclarecer a sua actuação enquanto jurado e para
lamentar estar a ser alvo de uma “campanha difamatória” de quem não aceitou que
uma artista ficasse em segundo lugar.
“Conheço bem o
preconceito e a dificuldade de pertencer a uma minoria. Por isso, há anos que
estou activamente envolvido no combate social e cultural contra todas as formas
de discriminação”, escreve num comunicado enviado esta segunda-feira à
imprensa, no qual afirma ainda que “não há palavras para dar conta do choque”
provocado pela “injustiça e cegueira” do “discurso de ódio” com que se viu
“atacado nas últimas semanas”.
Desde o início
deste mês, quando a investigadora Ana Teixeira Pinto assinou no PÚBLICO um
artigo de opinião em que acusava a decisão do júri que elegera Pedro Neves
Marques de ser “racista e misógina”, o académico e crítico de arte do PÚBLICO
vem sendo violentamente criticado nas redes sociais pela baixa pontuação que
atribuiu ao projecto A Ferida, de Grada Kilomba, com curadoria de Bruno Leitão,
alegadamente com a intenção de tornar praticamente impossível que este
ganhasse, mesmo que viesse a ter a preferência dos três restantes jurados.
Crespo deu-lhe 10 pontos em 20, quando nenhuma outra candidatura foi valorizada
abaixo de 16 por qualquer um dos jurados.
No passado dia
17, logo após Bruno Leitão ter interposto formalmente recurso junto do
Ministério da Cultura (MC), pedindo a revisão do processo de selecção que levou
à escolha de Pedro Neves Marques – artista que se assume como não binário e que
ganhou com o projecto Vampires in Space –, uma centena de personalidades
nacionais e estrangeiras, incluindo a artista Leonor Antunes, que representou
Portugal na última edição da Bienal de Veneza, o sociólogo Boaventura Sousa
Santos ou a curadora Catherine Wood, da Tate Modern, publicou uma carta aberta
no semanário Expresso solidarizando-se com Grada Kilomba, que consideram ter
sido eliminada “através de uma avaliação grosseira, ignorante, misógina e
racista da sua obra e da própria artista, possibilitada também pela falta de
capacidade do órgão governamental responsável, a DGArtes no caso, de reconhecer
e prevenir dolo”.
“Estranhos tempos
estes nos quais defender uma proposta artística é visto como filiação
ideológica e manipuladora, que torna irrelevantes as características da obra de
um artista”, diz Nuno Crespo a abrir o seu comunicado, no qual, citando uma
expressão do historiador Robert Klein, defende que “a sobreposição do discurso
e da ideologia à produção material artística é o eclipse da obra de arte”, um
risco que só pode ser evitado, argumenta, se “admitirmos todos os contributos que
promovem a discussão e o pensamento sobre as práticas artísticas contemporâneas
sem medo da sua expressão pública”.
Resumindo o papel
que desempenhou enquanto “membro especialista da comissão de apreciação da
representação de Portugal na 59.ª Bienal de Arte de Veneza”, Crespo diz que,
“convocado a fazer este exercício de pensamento crítico sobre quatro projectos
expositivos, previamente seleccionados pela Direcção-Geral das Artes”, entendeu
que a proposta que “reunia as melhores condições para representar Portugal foi
a apresentada pela curadora Sara Matos com a artista Luísa Cunha”. Um juízo que
não venceu, com a soma aritmética da pontuação dos quatro jurados a dar a
vitória a Pedro Neves Marques, cujo projecto tem curadoria de Luís Silva e João
Mourão.
Na sequência de
um primeiro recurso apresentado por Bruno Leitão em audiência de interessados,
em Novembro, duas juradas, Ana Cristina Cachola e Giulia Limoni, subiram de 19
para 20 a nota que originalmente tinham atribuído à obra de Kilomba, que mesmo
assim não conseguiu atingir a pontuação obtida por Vampires in Space.
“São falsas e
manipuladoras as acusações de que, intencionalmente e motivado por propósitos
racistas, xenófobos e misóginos, boicotei um dos projectos apresentados. As
pontuações foram atribuídas por uma comissão cumprindo um regulamento conhecido
por todos”, escreve Nuno Crespo no seu comunicado. “Esta é uma campanha
difamatória baseada unicamente no facto de não se aceitar que, resultante da
fórmula aritmética concursal, uma proposta tenha ficado em segundo lugar”.
Contra as
acusações de racismo, diz que o seu trabalho “como crítico, curador e professor
universitário de teoria da arte fala por si” e lembra que, só entre 2018 e o
final de 2021, organizou “mais de 20 eventos (conferências, seminários e
exposições) sobre práticas artísticas relacionadas com a reflexão sobre o
decolonialismo e o debate da reparação”.
E sublinha que a
derrota da proposta que valorizava mais, a de Luísa Cunha, não o impede de se
rever, “com enorme orgulho, na decisão – legal, democrática e muito discutida –
da comissão colectiva” de seleccionar Pedro Neves Marques. “Estou certo de que,
em conjunto com os dois curadores de excelência, Luís Silva e João Mourão,
farão um trabalho singular, histórico, pertinente e de altíssima qualidade”,
conclui.
Após o primeiro
recurso apresentado pelo curador do projecto de Grada Kilomba, a Direcção-Geral
das Artes, ouvidos os seus serviços jurídicos, considerou que não houve
qualquer ilegalidade no processo de selecção. O MC tem agora um mês para
responder ao novo recurso de Bruno Leitão, contado desde o dia em que este deu
entrada, e Graça Fonseca não fez até ao momento quaisquer declarações sobre o
assunto.
A arte “bienalizada”
António Guerreiro
24 de Dezembro de
2021, 9:00
https://www.publico.pt/2021/12/24/culturaipsilon/cronica/arte-bienalizada-1989538
A polémica que se
instalou a propósito das discrepâncias de avaliação, no seio do júri, das
candidaturas ao programa de apoio de projectos artísticos para a representação
de Portugal na 59ª Bienal de Veneza foi potenciada por uma especulação: um dos
jurados teria atribuído uma nota estrategicamente calculada para impedir que a
artista Grada Kilomba ficasse em primeiro lugar. A decisão final, a polémica,
os protestos e todo o processo são uma consequência bastante risível das
lógicas discursivas que governam uma parte considerável do mundo da arte
contemporânea e, muito especialmente, as bienais.
Ao lermos a
argumentação desenvolvida por cada um dos jurados, justificando a nota que
atribui a cada uma das candidaturas, ficamos com a impressão de que o objecto
desses discursos são provavelmente programas de investigação, teses de
doutoramento ou outras provas académicas, mas não projectos artísticos. Aí
mencionam-se e avaliam-se as “problemáticas”, os “temas” que os projectos
propõem para desenvolvimentos e reflexão, a pertinência de determinados
projectos para o “pensamento contemporâneo”, as “pesquisas artísticas sobre
questões de género”, as “temáticas fundamentais para pensar e fazer o
contemporâneo”, tais como “o racismo persistente, a crise climática, a
história”. Só falta discutir a bibliografia obrigatória para cada um dos
trabalhos.
Assim entendidos
e avaliados, os projectos artísticos são sempre “sobre” alguma coisa,
apresentam-se como um desenvolvimento de temas e teorias. O que os legitima é
uma função discursiva, eminentemente teórica, que os torna permeáveis à adesão
doutrinária ou à moralidade inútil e servil. E assim entramos nos meandros da
arte engagée. Mas atenção: este discurso dos jurados é sobre os projectos que,
no fundo, são invenções dos curadores, que têm a função “criadora” do sentido e
do objectivo do trabalho dos artistas. Ou seja, a lógica discursiva dos jurados
responde à função discursiva dos curadores (as candidaturas são da autoria de
curadores e não dos artistas), e estes, por sua vez, respondem aos critérios e
objectivos da Direcção Geral das Artes, formulados como injunções que começam
com estes verbos no infinitivo: prosseguir, enquadrar, dinamizar, valorizar,
fomentar, promover. Esta é a linguagem da política cultural que nada tem que
ver com a arte. O melhor que pode acontecer é que o artista, aceitando
tacticamente o papel didáctico e de agente cultural que lhe é requerido, acabe
por desactivar e subverter, com a força da sua obra, esta engrenagem
ideológico-culturalista.
Percebemos assim
que, afinal, por mais estranho que à arte e à crítica de arte seja a
argumentação dos jurados e os seus critérios, eles estão apenas a respeitar as
regras de um jogo estabelecidas pelas entidades oficiais e aceites pelas
candidaturas. E assim se institui uma cadeia discursiva por mimetismo: cada
instância mimetiza o discurso da instância anterior, intensificando-o. Quando
se chega à instância do artista, o fenómeno da ascensão da teoria, da
tematização, da “problematização” de questões sociais, políticas, ecológicas,
culturais, etc, já chegou a um ponto de exasperação. E, aí, ou o artista
consegue romper com estes princípios doutrinários e com a lógica da arte
“sobre” um tema que a enquadra numa função didáctica e teórica, ou limita-se a
prosseguir esta desenfreada lógica discursiva que aniquila a arte. E dizer isto
não é defender a arte pela arte. Há grandes obras de arte que têm um efeito de
problematização e teorização de temas sociais e políticos; mas não são aquelas
que se apresentam como ilustrações desse a priori conteudístico, que é no fundo
aquilo a que induzem as exigências destes concursos para representações nas
bienais (de Veneza ou outras quaisquer). O nome para estes procedimentos e para
aquilo que eles induzem no mundo da arte contemporânea já foi inventado há
muito tempo: “bienalização” da arte.
Basta consultar a
“proposição temática” de Cecilia Almani, a comissária da próxima Bienal de
Veneza, para percebermos o que significa a “bienalização”, para verificar que o
discurso de todas as instâncias envolvidas na candidatura e na escolha do
projecto que irá representar Portugal, afinal, encontra razão de ser na
invenção discursiva com que a comissária exerce a sua função criadora: a bienal
deve falar da condição pós-humana, das nossas responsabilidades perante o
planeta, das questões que emergem neste momento da história em que a própria
sobrevivência da espécie humana está ameaçada. Ah, a arte!
Livro de
recitações
“A primeira dama
é o alvo de uma infoxicação questionando a verdadeira identidade”
Le Monde, 20 de
Dezembro de 2021
Esta infoxicação
— um neologismo cada vez mais necessário — tem o aspecto de uma bela fábula,
que vem na sequência de antigas especulações sobre a suposta homossexualidade
de Emmanuel Macron: Brigitte Macron, a mulher do Presidente, segundo uma
daquelas “investigações” que alguém divulga na Internet (neste caso, uma
jornalista ligada à extrema-direita) para se propagar a grande velocidade, não
foi sempre uma mulher, é uma mulher trans. E assim se dá mais um passo na
diluição das fronteiras entre a verdade e a mentira porque o que interessa é o
efeito que se cria. Os factos alternativos não se limitam a ser falsos e, por
isso, de nada serve desmenti-los com provas. Eles desafiam a realidade. E
também não precisam de recorrer aos protocolos e processos de verosimilhança
porque se situam num plano que não é o da ficção.
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