terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Nuno Crespo responde às acusações de racismo no concurso para a Bienal de Veneza / A arte “bienalizada”

  


POLÍTICA CULTURAL

Nuno Crespo responde às acusações de racismo no concurso para a Bienal de Veneza

 

Atacado nas redes sociais e nos jornais por alegadamente ter impedido a escolha de Grada Kilomba por motivações racistas e misóginas, o crítico de arte diz estar a ser alvo de uma campanha difamatória.

 

Luís Miguel Queirós

27 de Dezembro de 2021, 20:11

https://www.publico.pt/2021/12/27/culturaipsilon/noticia/nuno-crespo-responde-acusacoes-racismo-concurso-bienal-veneza-1990053?fbclid=IwAR2vWjOY0D1FRkWHgMK8ScZ9sBLRQ_WLYtKtHxvLDMrO-GZLsbQSZEgv3Ww

 

Acusado de ter sabotado, por motivações racistas, o projecto de Grada Kilomba no concurso que veio a seleccionar Pedro Neves Marques para representar Portugal, em 2022, na Bienal de Arte de Veneza, o crítico de arte Nuno Crespo quebrou o silêncio que até agora vinha mantendo para esclarecer a sua actuação enquanto jurado e para lamentar estar a ser alvo de uma “campanha difamatória” de quem não aceitou que uma artista ficasse em segundo lugar.

 

“Conheço bem o preconceito e a dificuldade de pertencer a uma minoria. Por isso, há anos que estou activamente envolvido no combate social e cultural contra todas as formas de discriminação”, escreve num comunicado enviado esta segunda-feira à imprensa, no qual afirma ainda que “não há palavras para dar conta do choque” provocado pela “injustiça e cegueira” do “discurso de ódio” com que se viu “atacado nas últimas semanas”.

 

Desde o início deste mês, quando a investigadora Ana Teixeira Pinto assinou no PÚBLICO um artigo de opinião em que acusava a decisão do júri que elegera Pedro Neves Marques de ser “racista e misógina”, o académico e crítico de arte do PÚBLICO vem sendo violentamente criticado nas redes sociais pela baixa pontuação que atribuiu ao projecto A Ferida, de Grada Kilomba, com curadoria de Bruno Leitão, alegadamente com a intenção de tornar praticamente impossível que este ganhasse, mesmo que viesse a ter a preferência dos três restantes jurados. Crespo deu-lhe 10 pontos em 20, quando nenhuma outra candidatura foi valorizada abaixo de 16 por qualquer um dos jurados.

 

No passado dia 17, logo após Bruno Leitão ter interposto formalmente recurso junto do Ministério da Cultura (MC), pedindo a revisão do processo de selecção que levou à escolha de Pedro Neves Marques – artista que se assume como não binário e que ganhou com o projecto Vampires in Space –,​ uma centena de personalidades nacionais e estrangeiras, incluindo a artista Leonor Antunes, que representou Portugal na última edição da Bienal de Veneza, o sociólogo Boaventura Sousa Santos ou a curadora Catherine Wood, da Tate Modern, publicou uma carta aberta no semanário Expresso solidarizando-se com Grada Kilomba, que consideram ter sido eliminada “através de uma avaliação grosseira, ignorante, misógina e racista da sua obra e da própria artista, possibilitada também pela falta de capacidade do órgão governamental responsável, a DGArtes no caso, de reconhecer e prevenir dolo”.

 

“Estranhos tempos estes nos quais defender uma proposta artística é visto como filiação ideológica e manipuladora, que torna irrelevantes as características da obra de um artista”, diz Nuno Crespo a abrir o seu comunicado, no qual, citando uma expressão do historiador Robert Klein, defende que “a sobreposição do discurso e da ideologia à produção material artística é o eclipse da obra de arte”, um risco que só pode ser evitado, argumenta, se “admitirmos todos os contributos que promovem a discussão e o pensamento sobre as práticas artísticas contemporâneas sem medo da sua expressão pública”.

 

Resumindo o papel que desempenhou enquanto “membro especialista da comissão de apreciação da representação de Portugal na 59.ª Bienal de Arte de Veneza”, Crespo diz que, “convocado a fazer este exercício de pensamento crítico sobre quatro projectos expositivos, previamente seleccionados pela Direcção-Geral das Artes”, entendeu que a proposta que “reunia as melhores condições para representar Portugal foi a apresentada pela curadora Sara Matos com a artista Luísa Cunha”. Um juízo que não venceu, com a soma aritmética da pontuação dos quatro jurados a dar a vitória a Pedro Neves Marques, cujo projecto tem curadoria de Luís Silva e João Mourão.

 

Na sequência de um primeiro recurso apresentado por Bruno Leitão em audiência de interessados, em Novembro, duas juradas, Ana Cristina Cachola e Giulia Limoni, subiram de 19 para 20 a nota que originalmente tinham atribuído à obra de Kilomba, que mesmo assim não conseguiu atingir a pontuação obtida por Vampires in Space.

 

“São falsas e manipuladoras as acusações de que, intencionalmente e motivado por propósitos racistas, xenófobos e misóginos, boicotei um dos projectos apresentados. As pontuações foram atribuídas por uma comissão cumprindo um regulamento conhecido por todos”, escreve Nuno Crespo no seu comunicado. “Esta é uma campanha difamatória baseada unicamente no facto de não se aceitar que, resultante da fórmula aritmética concursal, uma proposta tenha ficado em segundo lugar”.

 

Contra as acusações de racismo, diz que o seu trabalho “como crítico, curador e professor universitário de teoria da arte fala por si” e lembra que, só entre 2018 e o final de 2021, organizou “mais de 20 eventos (conferências, seminários e exposições) sobre práticas artísticas relacionadas com a reflexão sobre o decolonialismo e o debate da reparação”.

 

E sublinha que a derrota da proposta que valorizava mais, a de Luísa Cunha, não o impede de se rever, “com enorme orgulho, na decisão – legal, democrática e muito discutida – da comissão colectiva” de seleccionar Pedro Neves Marques. “Estou certo de que, em conjunto com os dois curadores de excelência, Luís Silva e João Mourão, farão um trabalho singular, histórico, pertinente e de altíssima qualidade”, conclui.

 

Após o primeiro recurso apresentado pelo curador do projecto de Grada Kilomba, a Direcção-Geral das Artes, ouvidos os seus serviços jurídicos, considerou que não houve qualquer ilegalidade no processo de selecção. O MC tem agora um mês para responder ao novo recurso de Bruno Leitão, contado desde o dia em que este deu entrada, e Graça Fonseca não fez até ao momento quaisquer declarações sobre o assunto.



A arte “bienalizada”

 

António Guerreiro

24 de Dezembro de 2021, 9:00

https://www.publico.pt/2021/12/24/culturaipsilon/cronica/arte-bienalizada-1989538

 

A polémica que se instalou a propósito das discrepâncias de avaliação, no seio do júri, das candidaturas ao programa de apoio de projectos artísticos para a representação de Portugal na 59ª Bienal de Veneza foi potenciada por uma especulação: um dos jurados teria atribuído uma nota estrategicamente calculada para impedir que a artista Grada Kilomba ficasse em primeiro lugar. A decisão final, a polémica, os protestos e todo o processo são uma consequência bastante risível das lógicas discursivas que governam uma parte considerável do mundo da arte contemporânea e, muito especialmente, as bienais.

 

Ao lermos a argumentação desenvolvida por cada um dos jurados, justificando a nota que atribui a cada uma das candidaturas, ficamos com a impressão de que o objecto desses discursos são provavelmente programas de investigação, teses de doutoramento ou outras provas académicas, mas não projectos artísticos. Aí mencionam-se e avaliam-se as “problemáticas”, os “temas” que os projectos propõem para desenvolvimentos e reflexão, a pertinência de determinados projectos para o “pensamento contemporâneo”, as “pesquisas artísticas sobre questões de género”, as “temáticas fundamentais para pensar e fazer o contemporâneo”, tais como “o racismo persistente, a crise climática, a história”. Só falta discutir a bibliografia obrigatória para cada um dos trabalhos.

 

Assim entendidos e avaliados, os projectos artísticos são sempre “sobre” alguma coisa, apresentam-se como um desenvolvimento de temas e teorias. O que os legitima é uma função discursiva, eminentemente teórica, que os torna permeáveis à adesão doutrinária ou à moralidade inútil e servil. E assim entramos nos meandros da arte engagée. Mas atenção: este discurso dos jurados é sobre os projectos que, no fundo, são invenções dos curadores, que têm a função “criadora” do sentido e do objectivo do trabalho dos artistas. Ou seja, a lógica discursiva dos jurados responde à função discursiva dos curadores (as candidaturas são da autoria de curadores e não dos artistas), e estes, por sua vez, respondem aos critérios e objectivos da Direcção Geral das Artes, formulados como injunções que começam com estes verbos no infinitivo: prosseguir, enquadrar, dinamizar, valorizar, fomentar, promover. Esta é a linguagem da política cultural que nada tem que ver com a arte. O melhor que pode acontecer é que o artista, aceitando tacticamente o papel didáctico e de agente cultural que lhe é requerido, acabe por desactivar e subverter, com a força da sua obra, esta engrenagem ideológico-culturalista.

 

Percebemos assim que, afinal, por mais estranho que à arte e à crítica de arte seja a argumentação dos jurados e os seus critérios, eles estão apenas a respeitar as regras de um jogo estabelecidas pelas entidades oficiais e aceites pelas candidaturas. E assim se institui uma cadeia discursiva por mimetismo: cada instância mimetiza o discurso da instância anterior, intensificando-o. Quando se chega à instância do artista, o fenómeno da ascensão da teoria, da tematização, da “problematização” de questões sociais, políticas, ecológicas, culturais, etc, já chegou a um ponto de exasperação. E, aí, ou o artista consegue romper com estes princípios doutrinários e com a lógica da arte “sobre” um tema que a enquadra numa função didáctica e teórica, ou limita-se a prosseguir esta desenfreada lógica discursiva que aniquila a arte. E dizer isto não é defender a arte pela arte. Há grandes obras de arte que têm um efeito de problematização e teorização de temas sociais e políticos; mas não são aquelas que se apresentam como ilustrações desse a priori conteudístico, que é no fundo aquilo a que induzem as exigências destes concursos para representações nas bienais (de Veneza ou outras quaisquer). O nome para estes procedimentos e para aquilo que eles induzem no mundo da arte contemporânea já foi inventado há muito tempo: “bienalização” da arte.

 

Basta consultar a “proposição temática” de Cecilia Almani, a comissária da próxima Bienal de Veneza, para percebermos o que significa a “bienalização”, para verificar que o discurso de todas as instâncias envolvidas na candidatura e na escolha do projecto que irá representar Portugal, afinal, encontra razão de ser na invenção discursiva com que a comissária exerce a sua função criadora: a bienal deve falar da condição pós-humana, das nossas responsabilidades perante o planeta, das questões que emergem neste momento da história em que a própria sobrevivência da espécie humana está ameaçada. Ah, a arte!

 

Livro de recitações

“A primeira dama é o alvo de uma infoxicação questionando a verdadeira identidade”

Le Monde, 20 de Dezembro de 2021

 

Esta infoxicação — um neologismo cada vez mais necessário — tem o aspecto de uma bela fábula, que vem na sequência de antigas especulações sobre a suposta homossexualidade de Emmanuel Macron: Brigitte Macron, a mulher do Presidente, segundo uma daquelas “investigações” que alguém divulga na Internet (neste caso, uma jornalista ligada à extrema-direita) para se propagar a grande velocidade, não foi sempre uma mulher, é uma mulher trans. E assim se dá mais um passo na diluição das fronteiras entre a verdade e a mentira porque o que interessa é o efeito que se cria. Os factos alternativos não se limitam a ser falsos e, por isso, de nada serve desmenti-los com provas. Eles desafiam a realidade. E também não precisam de recorrer aos protocolos e processos de verosimilhança porque se situam num plano que não é o da ficção.

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