As
marcelices de Marcelo
Foi
meter uma cunha ao ministro. Foi em directo na TV, mas não deixou de
ser uma cunha. E é por isso que, em última análise, Marcelo acabou
por se embaraçar a si próprio.
22 de Dezembro de
2016, 7:30
Gosto muito de ter
um Presidente da República espontâneo. Não gosto nada de ter um
Presidente da República impulsivo. O Presidente da República
espontâneo foi aquele que andou este Verão pela Madeira, a consolar
as pessoas que tinham perdido tudo nos fogos do Funchal. O Presidente
da República impulsivo foi o que esteve no fim-de-semana passado na
Cornucópia, a tentar consolar as pessoas que haviam decido encerrar
a companhia de teatro à qual dedicaram uma vida. Não sei se é
possível manter a espontaneidade sem perder a impulsividade, mas sei
que o Presidente da República devia esforçar-se por perceber a
diferença entre uma coisa e outra. A bem do país, e do seu próprio
cargo, Marcelo tem de se deixar de marcelices, e parar de agir duas
vezes antes de pensar.
No seu raide
relâmpago à Cornucópia, o Presidente da República conseguiu o
prodígio de embaraçar, em simultâneo, o ministro da Cultura, o
director da companhia, a separação de poderes, o Estado de Direito
e ele próprio. Não é coisa pouca. Embaraçou o ministro da Cultura
porque o pobre senhor se viu obrigado a desmarcar uma visita planeada
a Castelo Branco assim que soube que Marcelo tinha resolvido
apresentar-se na Cornucópia para o espectáculo de despedida,
arrastando as câmaras de televisão atrás de si. Depois de chegar
afobadíssimo ao teatro, Castro Mendes teve ainda o desprazer de ser
humilhado em directo, sentado no palco a ouvir reprimendas do senhor
professor, e a ver-se obrigado a balbuciar palavras de circunstância
só para não parecer mal-educado, como se aquele fosse não o fim,
mas o princípio, de um longo processo de diálogo entre o ministério
e a companhia.
Embaraçou Luís
Miguel Cintra, que no dia seguinte sentiu necessidade de emitir um
comunicado, onde afirma, com extraordinária elegância: “O Teatro
da Cornucópia acaba no princípio do ano, na realidade já acabou.
Não se tratará, portanto, agora de [pedir] um estatuto de excepção,
porque somos provavelmente excepção. A empresa dissolve-se nos
próximos dias. Às pessoas que elegemos para nos governarem e que se
dispõem a ouvir-nos, não nos passa pela cabeça mentir. Para com
eles, para com todos, mantivemos sempre as mais leais relações.
Assim foi, assim será.” A única vantagem deste comunicado é
mostrar, mais uma vez, que Luís Miguel Cintra é um senhor,
recusando tanto a mão estendida como a vitimização, e
despedindo-se com uma dignidade só ao alcance dos grandes homens.
Marcelo embaraçou
também a separação de poderes, porque não tem nada que andar a
meter o nariz num assunto que não é da sua competência. Se queria
exercer a sua magistratura de influência convidava Luís Miguel
Cintra e Luís Filipe Castro Mendes para almoçarem em Belém.
Aparecer à vigésima quinta hora para tentar resolver um problema de
vários anos à frente das câmaras de televisão é uma marcelice
cruzada com uma costice, ou seja, um excesso de voluntarismo que se
esgota num paleio inconsequente.
Embaraçou ainda o
Estado de Direito porque esse excesso de voluntarismo é um
nepotismozinho light, uma forma de pedir um tratamento de favor para
um artista da sua preferência. É claro que Luís Miguel Cintra é
um vulto maior da cultura portuguesa, mas é igualmente claro que
mesmo os maiores vultos têm limitações no acesso ao financiamento
do Estado. Marcelo foi meter uma cunha ao ministro. Foi em directo na
TV, mas não deixou de ser uma cunha. E é por isso que, em última
análise, Marcelo acabou por se embaraçar a si próprio.
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