“Qualquer
dia arranjamos figurantes para fazer de portugueses”
LILIANA BORGES
05/06/2016 – PÚBLICO
Nas
ruas da Mouraria, Bairro Alto ou da Bica há moradores a lamentar
que, qualquer dia, já não há caras conhecidas entre a vizinhança.
Mas nem tudo é mau: a reabilitação de prédios velhos está a dar
nova cara a Lisboa.
É a vender flores
nas ruas da Mouraria que encontramos Luísa Costa, de 68 anos. Para a
lisboeta, não restam dúvidas: nos bairros, as rendas estão a subir
e os lisboetas a sair. A culpa é dos turistas, acredita. “Estão a
tirar as pessoas dos prédios”, começa por queixar-se. Luísa
Costa nasceu na Mouraria e não conhece outro lar, mas cada vez mais
se sente uma estrangeira no seu próprio bairro. Enquanto fala
connosco, lamenta já não conhecer as caras que passam por si.
“Estou aqui há horas na rua e conto pelos dedos das mãos as
pessoas que conheço”, queixa-se enquanto olha para grupos de
turistas que passam ao seu lado. É fácil distingui-los: de mapa e
máquinas fotográficas na mão, a maioria passeia de roupas frescas
e sandálias, apesar de os lisboetas não se terem ainda deixando
conquistar pelo sol tímido que espreita. “Põem as casas para os
estrangeiros e qualquer dia não há ninguém nos bairros”, antevê,
emocionada, acrescentando que existe “uma mágoa muito grande nas
pessoas”.
Enquanto falamos com
Luísa, um outro habitante da Mouraria aproxima-se. Nuno Franco,
membro da associação Renovar a Mouraria, vai registando as
preocupações da vizinha. “Estão a expulsar-nos para fora de
Lisboa. Qualquer dia não há Baixa, não há bairros, não há
marchas, não há arraial, não há sardinhas, não há nada”,
continua Luísa.
A estratégia
repete-se: os proprietários das casas aumentam substancialmente as
rendas e, num mês, os inquilinos têm de se adaptar às novas rendas
ou sair. Noutros casos, nem lhes é dada a opção. Mesmo
disponibilizando-se a pagar rendas mais caras, os moradores são
obrigados a sair, relatam. Prédios inteiros são vendidos a agências
imobiliárias e a privados que neles investem “para depois arrendar
aos turistas”, apontam. A culpa não é dos visitantes, argumenta
Nuno Franco. Luísa lá concorda. “Mas o Estado tem de se meter
nisto”, afinca.
“Agora é tudo
muito participativo, mas quando chega o momento, afastam-nos”,
acusa Ernesto Possolo, de 50 anos, também da Mouraria. “E os
presidentes da Junta vão ficar sem eleitores”, acrescenta. “E
ficando sem eleitores, ficam sem dinheiro”, complementa Nuno.
Continuamos a percorrer as calçadas e ruelas da Mouraria. Numa
subida íngreme, um casal na casa dos 70, caminha devagar. “Isto
aqui é só ‘camones’”, descreve Pedro Rodrigues, de 77 anos,
enquanto um outro casal, que aparenta a mesma idade, mas com um tom
de pele clara e mapa na mão, procura orientação no meio do bairro.
O prédio onde
habita é um exemplo. O proprietário vendeu andares inteiros e “está
sempre com freguesia estrangeira”. Mas não se queixa. Até agora,
a renda que partilha com Francisca Rodrigues, a sua mulher, não foi
afectada. “Para me aumentar a renda, tem de me arranjar a casa”,
assevera o lisboeta.
A opinião e
preocupação com o futuro de quem paga rendas em Lisboa são
transversais nos bairros mais tradicionais, não só pelo aumento dos
preços das rendas, mas pela inevitabilidade de ter de abandonar os
imóveis. Com casas seculares, comércio tradicional e ao lado da
Baixa, o Bairro Alto é outra das zonas mais procuradas por turistas
e estrangeiros. Mas encontrar moradores no Bairro Alto não é uma
tarefa fácil. Já quase no final da tarde, a maioria das ruas estão
vazias e vemos apenas passar alguns casais de câmara fotográfica na
mão, que vão apontando para uns murais que encontram pelo caminho e
fotografando uma maçaneta mais velha. Os únicos portugueses que
encontramos são os empregados de restaurantes que preparam as mesas
da esplanada, mas nenhum deles habita em Lisboa.
Somos forçados a
tentar a sorte numa das lojas da Rua da Rosa. “Um exagero”. É
assim que Odete Gomes, de 72 anos, e a viver na zona da Bica há
quase cinco décadas, classifica o número de apartamentos destinados
ao turismo. “As pessoas têm as casas e querem fazer dinheiro. Isso
é dos livros, como se costuma dizer”, analisa. “É a lei da
oferta e da procura e é natural que os proprietários respondam à
procura a pensar no lucro”, comenta. Ainda assim, não deixa de
criticar a estratégia e as consequências que isso traz. “Qualquer
dia arranjamos figurantes para fazer de portugueses. Tudo quanto tem
vagado na Bica tem sido para alugar para os turistas. Tudo”,
garante Odete. A lisboeta tem uma amiga à procura de casa há meses,
sem sucesso. À sua frente um apartamento onde mora está a ser
remodelado, “mas para turistas”. “Acho que equilibrar por
decreto não vale a pena”, considera.
Ainda assim, nem
tudo é negativo. “Lisboa precisava desta remodelação, coisa que
não era possível com as rendas congeladas desde o tempo de
Salazar!”. “Se nós tivemos aumentos em tudo, por que é que as
rendas das casas deviam ficar congeladas? Foram muitos anos assim.
Foi muito mau para a cidade de Lisboa. Quem é que conseguia fazer
obras? A cidade envelheceu imenso”, pondera Odete. “As obras que
têm havido são positivas para a cidade, mas não para os cidadãos.
Mas paciência, um dia isso há-de mudar”, acredita. “Em tudo se
exagera sempre um bocadinho. Vão dizer aos senhorios o quê? Que não
podem alugar? As coisas não podem ser assim”. E continua: “Conheço
um caso concreto em que faleceu a senhora que arrendava a casa, que
vivia com o filho, com a nora e com a neta e não lhes deram sequer
hipótese de aumentar a renda. Deram-lhe simplesmente uma ordem de
despejo, porque o prédio está a ser todo arrendado para turistas.
Isso não se faz”, relata emocionada. “Devia haver um equilíbrio.
E é esse equilíbrio que os portugueses não têm”, conclui Odete.
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