O
dia em que os judeus foram expulsos de Portugal
29
Dezembro 2016
Maria
José Oliveira
Faz
520 anos que D. Manuel I assinou o édito de expulsão dos judeus,
uma condição imposta por Espanha para que casasse com D. Isabel.
Milhares tiveram de escolher entre a expulsão ou a conversão.
Em 1492 um decreto
dos reis católicos, D. Isabel e D. Fernando, rompeu com uma longa
tradição de tolerância religiosa em Castela, Leão e Portugal. O
édito foi publicado a 31 de Março: os judeus de Castela e de Aragão
eram obrigados a converterem-se ao cristianismo, sob pena de serem
expulsos de Espanha num prazo máximo de quatro meses.
Desde a Idade Média
que a população judaica era olhada com alguma desconfiança, tanto
em Espanha como em Portugal. E isso tinha uma causa: os judeus
trabalhavam para o rei na cobrança das rendas e na organização da
contabilidade pública. Os ocasionais ataques a judiarias tinham
quase sempre esta motivação. Mas mantinha-se a tolerância quanto à
religião.
No final do prazo
dado pelos reis católicos, em Julho de 1492, milhares de judeus
atravessaram a fronteira, tendo D. João II permitido a entrada dos
refugiados e nomeado locais onde poderiam ser integrados: Olivença,
Arronches, Figueira de Castelo Rodrigo, Bragança e Melgaço. Na
raia, os judeus espanhóis pagavam uma espécie de portagem e, em
troca, recebiam um salvo-conduto. Àqueles que exerciam uma
profissão, os funcionários régios faziam um desconto, uma vez que
eram tidos como mão-de-obra útil à economia nacional: ferreiros,
carpinteiros, oleiros, tecelões.
Ao
longo do tempo a atitude de D. João II para com os judeus expulsos
de Espanha foi ganhando contornos terríveis. Em 1493 ordenou que os
filhos menores fossem retirados aos pais e enviados para São Tomé,
que precisava de ser povoado. A ilha tinha então grande número de
crocodilos, além de um clima hostil, pelo que a maioria das crianças
foi comida pelos animais. As restantes sucumbiram à fome.
A documentação
coeva não permite definir, com rigor, o total de judeus desterrados.
O arqueólogo e etnógrafo Adriano Vasco Rodrigues escreveu que
seriam perto de 100 mil; a historiadora Maria José Ferro Tavares,
autora de uma vasta bibliografia sobre os judeus em Portugal,
preferiu não indicar qualquer número; o historiador Lúcio de
Azevedo estimou 120 mil; Damião de Góis escreveu sobre 20 mil
famílias; e o Abade de Baçal quantificou 40 mil pessoas.
A maioria destes
cidadãos dirigiu-se para as grandes cidades: Lisboa, Porto e Évora.
Contudo, uma parcela considerável da população fixou-se na raia,
na zona de Ribacôa. Por isso mesmo, existiram comunidades hebraicas
em Pinhel, Vila Nova de Foz Côa, Meda, Marialva, Numão, Trancoso,
Guarda e Sabugal, explicou Adriano Vasco Rodrigues. A decisão de
viver em povoações fronteiriças justificava-se pela esperança,
acalentada por muitos refugiados, de que o decreto de expulsão fosse
revogado, possibilitando assim o regresso a Espanha.
A autorização de
entrada atribuída por D. João II tinha, no entanto, um prazo de
validade: o salvo-conduto extinguia-se ao fim de oito meses. Os
judeus poderiam viajar para outras paragens, mas o rei só lhes
permitiu embarcar em navios com destino a Tânger e a Arzila. Alguns
fizeram-no, mas acabaram por regressar a Portugal depois de terem
sido maltratados e roubados pelos mouros.
Ao longo do tempo a
atitude de D. João II para com os judeus expulsos de Espanha foi
ganhando contornos terríveis. Em 1493 ordenou que os filhos menores
fossem retirados aos pais e enviados para São Tomé, que precisava
de ser povoado. A ilha tinha então grande número de crocodilos,
além de um clima hostil, pelo que a maioria das crianças foi comida
pelos animais. As restantes sucumbiram à fome.
“Os
Judeus de Lisboa são riquíssimos, cobram os tributos reais, que
arremataram ao Rei. São insolentes com os cristãos. Têm muito medo
da proscrição, pois o Rei de Espanha ordenou ao Rei de Portugal que
expulsasse os marranos e da mesma forma os Judeus, aliás teria
guerra com ele. O Rei de Portugal, fazendo a vontade ao de Espanha,
ordenou que antes do Natal saíssem do reino todos os marranos.
Jerónimo
Münzer in “Viagem por Espanha e Portugal. 1494-1495”
Em Dezembro de 1494,
o médico alemão Jerónimo Münzer estava em Lisboa. “Os Judeus de
Lisboa são riquíssimos, cobram os tributos reais, que arremataram
ao Rei. São insolentes com os cristãos. Têm muito medo da
proscrição, pois o Rei de Espanha ordenou ao Rei de Portugal que
expulsasse os marranos e da mesma forma os Judeus, aliás teria
guerra com ele. O Rei de Portugal, fazendo a vontade ao de Espanha,
ordenou que antes do Natal saíssem do reino todos os marranos. Eles
fretaram a nau Rainha, belíssimo navio, e no meado de Dezembro irão
para Nápoles; aos Judeus, porém, deu o Rei o prazo de dois anos
[Garcia de Resende diz na sua “Crónica de D. João II” que o
prazo foi de 8 meses] para assim os expulsar do reino menos
violentamente. Em vista disso os Judeus vão-se retirando sem demora
e procuram no estrangeiro lugares próprios para a sua residência”,
escreveu em “Viagem por Espanha e Portugal. 1494-1495”.
D. João II morreu
em 1495, deixando o trono sem sucessor, pois o seu filho, Afonso,
morrera alguns anos antes. A coroa foi então herdada por D. Manuel,
cunhado e primo direito do monarca. Nos primeiros anos do reinado, a
comunidade judaica viveu em paz, tendo o rei escolhido o judeu Abraão
Zacuto para seu médico particular (Zacuto era também matemático e
astrónomo, tendo sido consultado antes de o rei enviar a expedição
de Vasco da Gama para a Índia). D. Manuel I desejava uma união da
Península Ibérica, debaixo da sua coroa, naturalmente, pelo que
propôs casamento a D. Isabel, viúva de Afonso e filha mais velha
dos reis católicos. A proposta foi aceite por D. Isabel e por D.
Fernando, mas sob uma condição: o rei português deveria expulsar
os judeus do país.
Escolher entre a
expulsão ou a conversão
Em Novembro de 1496,
D. Manuel I casou com D. Isabel e logo no mês seguinte decretou a
ordem de expulsão dos judeus (e dos mouros), obrigados a sair do
país até finais de Outubro do ano seguinte. Caso não o fizessem,
seriam condenados à morte e todos os seus bens seriam confiscados
pela coroa. Contudo, a decisão não recolheu consenso no Conselho de
Estado, que alertou para a fuga de capitais do país. Pretendendo
reter os judeus em Portugal, o rei ordenou então que aqueles que se
convertessem ao cristianismo poderiam permanecer no país. E agendou
um prazo para os baptismo: a Páscoa de 1497.
Uma das duas únicas
gravuras sobreviventes ao Terramoto de Lisboa 1755 e ao incêndio da
Torre do Tombo: “Von dem Christeliche – Streyt, kürtzlich
geschehe – jm. M.CCCCC.vj Jar zu Lissbona – ein haubt stat in
Portigal zwischen en christen und newen chri – sten oder juden, von
wegen des gecreutzigisten [sic] got.” (Da Contenda Cristã, que
recentemente teve lugar em Lisboa, capital de Portugal, entre
cristãos e cristãos-novos ou judeus, por causa do Deus
Crucificado”).
Uma das duas únicas
gravuras sobreviventes ao Terramoto de Lisboa 1755 e ao incêndio da
Torre do Tombo: “Da Contenda Cristã, que recentemente teve lugar
em Lisboa, capital de Portugal, entre cristãos e cristãos-novos ou
judeus, por causa do Deus Crucificado”
Denominado “Que os
Judeus e Mouros forros se saiam destes Reinos e não morem, nem
estejam neles”, o édito de 5 de Dezembro decretava o seguinte:
“… sendo Nós
muito certo, que os Judeus e Mouros obstinados no ódio da Nossa
Santa Fé Católica de Cristo Nosso Senhor, que por sua morte nos
remiu, têm cometido, e continuadamente contra ele cometem grandes
males, e blasfémias em estes Nossos Reinos, as quais não tão
somente a eles, que são filhos de maldição, enquanto na dureza de
seus corações estiverem, são causa de mais condenação, mais
ainda a muitos Cristãos fazem apartar da verdadeira carreira, que é
a Santa Fé Católica; por estas, e outras mui grandes e necessárias
razões, que Nos a isto movem, que a todo o Cristão são notórias e
manifestas, havida madura deliberação com os do Nosso Conselho, e
Letrados, Determinamos, e Mandamos, que da publicação desta Nossa
Lei, e Determinação até por todo o mês de Outubro do ano do
Nascimento de Nosso Senhor de mil quatrocentos e noventa e sete,
todos os Judeus, e Mouros forros, que em Nossos Reinos houver, saiam
fora deles, sob pena de morte natural, e perder as fazendas, para
quem os acusar.”
A conversão forçada
começou com uma medida trágica. Na Páscoa de 1497, D. Manuel I
mandou que os judeus menores de 14 anos fossem entregues a famílias
cristãs de várias vilas e cidades do país. Pouco depois, a ordem
estendeu-se aos jovens com 20 anos. E os resultados foram horríveis.
Muitos pais mataram os seus filhos, degolando-os ou lançando-os em
poços e rios, contou Damião de Góis. A perseguição não ficou
por aqui. O monarca restringiu ainda o número de portos de embarque
para aqueles que queriam sair do reino, obrigando-os a
concentrarem-se na capital. Segundo Jorge Martins, cerca de 20 mil
pessoas, oriundas de várias zonas, foram encaminhadas para o Palácio
dos Estaus (futura sede da Inquisição, localizada onde é hoje o
Teatro Nacional D. Maria II), ali permanecendo, sem comer e sem
beber, até ao momento do embarque. A ideia de aprisioná-los nos
Estaus tinha um motivo.
Os dois homens
tinham uma missão: persuadir os judeus a converterem-se ao
cristianismo. Muitos acabaram por ser levados para as igrejas da
Baixa e baptizados contra a sua vontade; outros conseguiram fugir e
suicidaram-se, atirando-se a cisternas e a poços.
Enquanto aguardavam
pela partida para o estrangeiro, foram visitados por dois judeus
conversos, Nicolau, médico, e Pedro de Castro, eclesiástico em Vila
Real. Os dois homens tinham uma missão: persuadir os judeus a
converterem-se ao cristianismo. Muitos acabaram por ser levados para
as igrejas da Baixa e baptizados contra a sua vontade; outros
conseguiram fugir e suicidaram-se, atirando-se a cisternas e a poços.
Aqueles que, não
tendo sido baptizados, ficaram no país, já como escravos do rei,
apresentaram uma proposta a D. Manuel I. Aceitavam a conversão, mas
pediam algo em troca: a restituição dos seus filhos; e a garantia
de que o rei não ordenaria qualquer inquérito sobre as suas
práticas religiosas num período de 20 anos. D. Manuel I anuiu. E a
30 de Maio de 1497 foi publicada a proibição de inquirições sobre
as crenças dos recém-convertidos ao cristianismo. Ou seja,
consentiu oficiosamente o judaísmo (daqui nasce o criptojudaísmo, a
prática clandestina da religião). O decreto tinha ainda outras
cláusulas: ao fim de 20 anos, se o cristão-novo fosse acusado de
judaízar, teria direito a conhecer os seus acusadores para que
pudesse defender-se; caso fosse comprovado o crime de heresia, seria
condenado à perda de bens, posteriormente legados aos herdeiros
cristãos; os físicos e os cirurgiões que não sabiam latim
poderiam utilizar livros de medicina em hebraico; finalmente, os
cristãos-novos não deveriam ser tratados de forma distinta, uma vez
que estavam convertidos à Santa Fé.
As garantias
inscritas no decreto não convenceram, porém, uma parte da
comunidade. Muitos optaram por sair do país, levando consigo os seus
bens, e os mais ricos negociaram letras de câmbio com os cristãos,
para depois serem trocadas noutro país. Isto é: uma parte da
riqueza do país estava a fugir. D. Manuel I entendeu que devia agir
e, em 1499, reagiu à fuga das fortunas com a publicação de duas
leis: a primeira proibia o negócio com os judeus; e a segunda
impedia a saída do reino dos conversos de 1497 sem prévia
autorização régia. O incumprimento das normas resultaria no
confisco dos bens dos infractores.
Para Maria José
Ferro Tavares a intenção de D. Manuel I era estimular a integração
dos conversos na sociedade portuguesa. Notou a historiadora que,
entre 1497 e 1499, o rei promulgou uma lei que proibia o casamento
entre cristãos-novos. O objectivo consistia em inserir a minoria nas
famílias de cristãos-velhos. Mas não só: interessava também
partilhar o dinheiro e os bens dos ex-judeus. Nada resultou, segundo
a historiadora. Não apenas porque subsistia o sentimento
anti-judaico na maioria cristã, mas também porque os
cristãos-novos, ainda que em número reduzido, estavam no pódio das
grandes fortunas. Após a conversão ganharam mais poder, ascenderam
à nobreza, às universidades, à administração real e municipal.
Pogrom em Lisboa
A 19 de Abril de
1506, Domingo de Pascoela, a minoria cristã-nova sentiu, pela
primeira vez em Portugal, uma inaudita violência sobre pessoas e
bens. Lisboa estava então assombrada pela peste que assolava a
capital desde Outubro do ano anterior. Um período de seca matara os
campos nos arrabaldes; escasseavam alimentos; a fome tomava conta da
cidade.
Damião de Góis
escreveu que naquele dia a igreja do convento de São Domingos estava
repleta de cristãos-velhos, pois surgira um rumor de que a 15 do
mesmo mês, acontecera um milagre naquele templo dominicano. Os
crentes aguardavam uma repetição. E ele aconteceu, aos olhos dos
cristãos: uma luz brilhou no crucifixo da igreja e a multidão
rejubilou. Menos uma pessoa. Que chamou a atenção para o facto de
se tratar de um reflexo de uma das muitas candeias que estavam
acesas. Esta pessoa era um cristão-novo, mas para os cristãos-velhos
era um judeu e, por isso, alvo de ódio.
Os
gritos deram início ao massacre. Os crentes espalharam-se pelas ruas
de Lisboa; a esta multidão juntou-se, segundo o historiador António
Borges Coelho, a chusma das naus da Índia, que, atiçada pela
pregação dos frades, violou, matou e queimou milhares de pessoas.
Arrombavam as portas das casas, em busca de cristãos-novos,
perseguiam quem tentava fugir, carregavam mortos e vivos para as
fogueiras que iam sendo ateadas em vários locais da cidade, como o
Rossio e a zona ribeirinha.
O homem foi
arrastado para rua e, em poucos minutos, mataram-no e queimaram-no no
Rossio. Sabendo do que acontecera, o irmão acorreu ao local e quando
gritou pelos assassinos, foi igualmente morto e queimado numa
fogueira. No meio da agitação, um frade dominicano bradou um
discurso contra os judeus. Em seu redor, a turba vociferava contra a
comunidade judaica. Dois frades, Frei João Mocho e Frei Bernardo,
juntaram-se ao que estava a discursar, exibindo o crucifixo do
“milagre” e gritando: “Heresia! Heresia! Destruam o povo
abominável!”.
Os gritos deram
início ao massacre. Os crentes espalharam-se pelas ruas de Lisboa; a
esta multidão juntou-se, segundo o historiador António Borges
Coelho, a chusma das naus da Índia, que, atiçada pela pregação
dos frades, violou, matou e queimou milhares de pessoas. Arrombavam
as portas das casas, em busca de cristãos-novos, perseguiam quem
tentava fugir, carregavam mortos e vivos para as fogueiras que iam
sendo ateadas em vários locais da cidade, como o Rossio e a zona
ribeirinha.
A matança e as
pilhagens prosseguiram por três dias. Segundo os cronistas da época
terão sido mortos entre duas mil a quatro mil pessoas; Alexandre
Herculano e o historiador norte-americano Yosef Yerushalmi registaram
duas mil, o número que obtém mais consenso entre os especialistas.
Damião de Góis, que tinha apenas quatro anos quando aconteceu a
chacina, descreveu desta forma o massacre, na sua “Crónica do
Felicíssimo Rei D. Manuel”:
“No mosteiro de
sam Domingos da dicta cidade está hua capella aque chamão Iesu, &
nella hum Cruçifixo, em que foi entam visto hum sinal, a que dauão
cor de milagre, com quantos hos que se na egreja acharam julguam ser
ho contrairo, dos quais hu cistão nouo dixe q lhe pareçia hua
candea açesa que estaua posta no lado da imagem de Iesu, ho que
ouuindo algus homes baixos, ho tiraram pelos cabellos arrasto fora da
egreja & ho mataram, & queimaram logo ho corpo no resio.
Aho qual aluoroço
acodio muito pouo, aquem hum frade fez hua pregaçam conuocandoho
cotra hos cristãos nouos, apos ho que sairão dous frades do
mosteiro, com hum Cruçifixo nas mãos bradando, heresia, heresia, ho
que imprimio tanto em muita gente estrangeira, popular, marinheiros
de naos que entam vieram de Holãda Zlenada, Hoestelãda & outras
partes, assi homes de terra, da mesma condiçam & pouca calidade,
que jutos mais de quinetos, começaram a mattar todolos cristãos
nouos que achauam pelas ruas & hos corpos mortos & meos vivos
lauçauão & queimauam em fogueiras que tinham feitas na ribeira
& no resio, aho qual negoçio lhes seruião escrauos & moços,
que cõ muita diligençia acarretauam lenha, & outros materiaes
pera açender ho fogo, no qual domingo de Pascoella mattaram mais de
quinhentas pessoas. A esta turma de maos homes, & dos frades, que
sem temor de Deos andauam pelas ruas conçitando ho pouo a esta
tamanha crueldade, se ajuntaram mais de homes da terra, da calidade
dos outros, que todos juntos à segunda feira continuaram nesta
maldade com mór crueza, & por já nas ruas nam acharem nenhus
christãos nouos, foram cometter com vaiues & escadas, has casas
em que viuiam, ou onde sabiam que estauam, & tirandohos dellas
arrasto pelas ruas, co seus filhos, molheres, & filhas, hos
lançauam de mistura viuos, & mortos nas fogueiras, sem nenhua
piedade, & era tamanha há crueza q até nos mininos, & nas
crianças que estauão no breço há executauam, tomandohos pelas
pernas fendeo hos em pedaços, & esborachandohos darremeso nas
paredes. Nas quaes cruezas se nam esqueçiam de lhes metter a saquo
has casas, & roubar todo ho ouro, prata & enxouaes que nellas
achauam, vindo ho negoçio a tanta dissoluçam que das egrejas
tirauão muitos homes, molheres, moços, moças, destes inocentes,
desapegandohos dos sacrarios; & das images de nosso Senhor, &
nossa Senhora & outros Sanctos, com que ho medo da morte hos
tinha abraçados & dalli hos tirauam, mattando & queimando
misticamente sem nenhu temor de Deos assi a ellas quomo a elles.
Neste dia pereçeram
mais de mil almas sem hauer na çidade quem ousasse de resistir, pola
pouca gete de forte que nella havia, por estarem hos mais honrrados
fora, por caso da peste. (…)”
Nesta mesma crónica,
o historiador descreveu ainda a actuação do rei, que foi informado
do que estava a acontecer em Lisboa quando estava em Aviz, a caminho
de Beja para visitar a mãe, a infanta D. Beatriz. D. Manuel I ficou
“triste” e “enojado”, tendo dado de imediato poderes ao Prior
do Crato e a D. Diogo Lobo para castigarem os culpados. O problema
era identificar os culpados. Uma cidade inteira revoltara-se contra
os judeus e matara aqueles que não conseguiram escapar. Muitos
portugueses (Damião de Góis conta que, entre os assassinos, estavam
também estrangeiros, quase todos marinheiros, que recolheram às
naus com os saques) foram presos e condenados à forca. Góis
escreveu que Frei João Mocho e Frei Bernardo foram queimados na
fogueira, num local público, mas o ensaísta e professor António
José Saraiva defendeu que os dois frades escaparam à condenação,
argumentando que, 36 anos depois do massacre, ambos estavam vivos e
ao serviço de D. João III em Roma.
Para castigar os
habitantes de Lisboa, D. Manuel retirou uma série de privilégios à
cidade: aqueles que tinham se provara terem participado no morticínio
perderam todos os seus bens; os que não estavam envolvidos, mas nada
fizeram para deter a multidão, perderam um quinto dos seus bens; foi
suspensa a eleição dos representantes da Casa dos Vinte Quatro e
dos seus quatro representantes na vereação municipal da cidade.
O pogrom de Abril de
1506 continua hoje a ser recordado em dois monumentos erguidos no
Largo de São Domingos, onde começou a tragédia, inaugurados em
Abril de 2008, numa iniciativa da autarquia em conjunto com as
comunidades judaica e católica.