OPINIÃO COFFEE
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Menos carros. Boa. Agora menos tralha para turistas
É bom tirar os carros das cidades. Mas não chega. É
preciso mais viés do bom senso.
Bárbara Reis
22 de Abril de
2023, 6:33
https://www.publico.pt/2023/04/22/local/opiniao/menos-carros-boa-menos-tralha-turistas-2047084
Em 20 anos, a
única coisa que não mudou na minha rua foi o momento em que as árvores
centenárias que vejo da janela ficam verdes.
É sempre igual e
sempre súbito, nesta ordem:
— a 26 de Março,
as árvores estão carecas,
— a 28 de Março,
as árvores acordam com folhas, tímidas, mas distintivas e,
— na semana
seguinte, mais coisa, menos coisa, as copas ficam cobertas com milhares de
pequenas folhas recém-nascidas.
É todos os anos
assim e todos os anos espanta. Tudo o resto mudou. Umas coisas para melhor,
muitas para pior.
Sim, vou falar da
minha rua e já sei que vão dizer que é paroquial e tudo isso. Mas a qualidade
de vida nas cidades é um tema central do mundo. É por isso que as cidades são
estudadas nas universidades sérias e que as câmaras investem milhões a definir
estratégias, a avaliar tendências e a antecipar o futuro.
Já agora
aproveito para dizer que não tenho carro há sete anos. Digo isto porque, quando
há dias escrevi sobre o problema das trotinetas na capital, vi passar em flash
a vaga-anti-qualquer-coisa-que-se-diga, de braços no ar e a gritar, em tom de
denúncia, “cuidado, ela é do lobby do petróleo!”, como se a crítica ao caos das
trotinetas fosse sinónimo de amor ao carro.
Caro leitor, só
peço duas coisas: menos tralha para turistas e mais viés do bom senso.
É bom tirar os
carros das cidades (como o presidente da câmara, Carlos Moedas, anunciou há
dias). E é bom reduzir o número de trotinetas (como Moedas defendeu há meses).
Mas não chega. É preciso menos de outras coisas.
Faço cinco
sugestões, ordenando-as pelo critério do tropeção, não da importância. Quando
andamos a pé na cidade — a passear, a trabalhar ou a fazer tarefas — estamos
sempre a tropeçar em obstáculos, coisas que não deviam estar ali, que impedem o
caminho.
1. Menos esplanadas.
Há meses que
acompanho a evolução de um café novo. Primeiro, não tinha esplanada. O passeio
é estreito, não dá para tudo: ou há pessoas a andar ou há esplanada. Pouco
depois, apareceram quatro mesas e oito cadeiras. Os peões já não conseguem
andar. A seguir já eram seis mesas e dez cadeiras. E agora, menos de um ano
depois, são 14 mesas e 32 cadeiras. A ganância é tal que há duas mesas
encostadas ao caixote de lixo municipal, o cilindro cinzento preso ao poste com
cinzeiro na tampa. É um passeio que deixou de existir para quem anda a pé.
Correcção: é um
ex-passeio.
Lembro-me da
festa que foi quando começámos a conquistar ruas aos carros. Que modernos que
estávamos. Passaram-se os anos e ainda dizemos que são “ruas pedonais”, mas o
nome tornou-se anacrónico. Agora que as cadeiras conquistam ruas aos peões,
temos de inventar uma palavra nova. Para já, fica “rua anteriormente conhecida
como pedonal”.
Posso estar
distraída, mas há meses que não vejo uma “rua anteriormente conhecida como
pedonal” onde consiga andar sem tropeçar: numa cadeira, numa mesa, num
empregado com um tabuleiro na mão, num cliente que se levantou sem olhar, na
fila dos clientes que esperam por mesa, no cavalete do menu, no plinto com
fotografias da ementa, nos baldes de lixo, numa carrinha a fazer cargas e
descargas.
É uma maravilha
estar numa esplanada a apanhar sol. E quem anda a pé? No meio de toda a tralha
para turistas, resta-nos fazer o truque do ziguezague em
peço-desculpa-contínuo.
Estou a exagerar?
Em 2018, percorri
a Rua Augusta — que vai do Rossio ao arco que abre para o Terreiro do Paço,
frente ao rio Tejo — a contar as cadeiras das esplanadas. Contei 912. Hoje
talvez sejam mais. A atravessar esta “rua anteriormente conhecida como
pedonal”, há várias “ruas anteriormente conhecidas como pedonais”. Estão iguais
ou pior.
As esplanadas
estão cada vez mais compactas: ocupam cada vez mais passeio, têm toldos contra
o sol, biombos de plástico contra o vento, filas de clientes que esperam na
estreita língua de passeio livre que resta.
Isto tem zero que
ver com querer uma aldeia na capital. Não tem nada de bucólico ou melancólico,
muito menos de nostálgico. Tem que ver com bom senso e equilíbrio.
Li há dias uma
entrevista no New York Times a Stephen A. Smith, apresentador do programa First
Take, na ESPN, uma TV por cabo americana dedicada ao desporto, na qual às
tantas ele diz que não é liberal, nem conservador. O que é então? “Sou um
centrista com uma forte inclinação para o bom senso.” Achei graça. É um bom
viés e aplica-se bem ao que precisamos nas cidades contemporâneas: viés do bom
senso.
2. Menos trotinetas.
Há trotinetas a
mais. Madrid tem três milhões de residentes e 4821 trotinetas de alugar. Lisboa
tem meio milhão de residentes e 18 mil trotinetas. São um transporte mais
“limpo” dos que os carros, mas a anarquia actual está a ser o pior
cartão-de-visita para a “mobilidade do futuro”.
3. Menos tuk-tuk.
Acabei de contar
25 tuk-tuk encavalitados à volta de um sinal de trânsito camarário que diz “4
lugares”. Quatro para 25 é uma diferença de 21. Onde estão os 21 tuk-tuk que
não cabem no lugar de estacionamento reservado? A bloquear a rua, em cima da
passadeira, à porta das escadas do monumento nacional que atrai os turistas, em
dupla fila. Quem é que, em Lisboa, não esteve já parado numa fila de trânsito
com dez tuk-tuk à frente e outros dez atrás?
4. Menos lojas de bugigangas.
Depois de contar
cadeiras, fui contar as lojas de bugigangas. Só nas 17 ruas da grelha pombalina
central contei 616 lojas a funcionar, das quais 103 eram lojas de bugigangas
(miniaturas da Torre de Belém, T-shirts do Ronaldo, etc). Nestes cinco anos,
abriram mais dez, mais 20? A isto, somam-se as lojas que não vendem bugigangas,
mas são para turistas, como os alugueres de bicicletas ou venda de tours. Sem o
“mix funcional”, os bairros morrem. No dia em que todas as 616 lojas da Baixa
venderem bugigangas, a Baixa morre.
5. Menos alojamento local.
Os centros das
cidades não podem ser transformados em alojamentos baratos para turistas. Sem
residentes também não há bairros, só há cenários. Quando as cidades são só
cenários, perdem a alma.
O resto pode ser
mais, sff. Mais casas com rendas acessíveis. Mais transportes públicos. Mais
árvores. Mais limpeza. Mais bom senso.
Ouço muitas
vezes dizer que less is more. Neste caso, é mesmo verdade. É preciso bom senso
travar a Disneyficação do centro da capital portuguesa.
Sem isso, daqui a
20 anos, na minha rua só haverá as duas árvores do costume. Não haverá
moradores, nem vida verdadeira. Só bandos de turistas para cima e para baixo a
olharem uns para os outros.
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