quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

O que está errado no caso de Alexandra Reis?

 



OPINIÃO

O que está errado no caso de Alexandra Reis?

 

Há uma pergunta que deve ser feita, mesmo considerando que foi escasso o poder decisório do Estado: os ministros com a tutela da TAP tinham conhecimento da indemnização?

 

Carmo Afonso

27 de Dezembro de 2022, 22:30

https://www.publico.pt/2022/12/27/opiniao/opiniao/errado-caso-alexandra-reis-2032930

 

É tão obrigatório como difícil falar sobre o caso de Alexandra Reis. Porque é obrigatório? Porque ouvindo a descrição dos factos – e não se conhecem todos –, é intuitivo concluir que algo não soa bem. E porque é difícil? Porque é altamente previsível que não esteja em causa o cometimento de qualquer ilegalidade e, mesmo no universo dos princípios, é delicado escolher qual foi o princípio de boas práticas que não foi seguido e qual a sua natureza.

 

Alexandra Reis recebeu uma indemnização em sede de acordo que celebrou com a TAP e essa indemnização terá sido calculada tendo em conta a sua remuneração e o tempo que faltava para o termo do seu mandato. A este propósito li o artigo do Daniel Oliveira no Expresso, “O problema do meio milhão de Alexandra Reis é político”, em que é referido que não faz sentido esta forma de cálculo de uma indemnização, porque isso seria impensável para um trabalhador. Ora, nos contratos de trabalho a termo é precisamente esse o cálculo que deve ser feito em caso de cessação, por iniciativa do empregador, antes do fim do termo do contrato. Ou seja: por aí, não só não encontramos qualquer falha legal, como também temos um raciocínio que se aplica a todos os trabalhadores contratados a termo.

 

A iniciativa que culminou na cessação do contrato terá sido da empresa e não de Alexandra Reis. É a lógica do recebimento de uma indemnização que assim o determina. Mas essa iniciativa não é incompatível com a posterior renúncia de Alexandra Reis. Tudo depende dos termos do acordo. Para já, e tendo em conta a informação que se conhece, teremos mesmo de abandonar o terreno da legalidade para discutir este caso.

 

Meio milhão soa mal, sobretudo num país onde a esmagadora maioria das pessoas ganha salários baixos ou muito baixos. O primeiro problema objetivo a apontar a este caso é que ele põe a nu a existência de dois mundos – ou de duas classes – no que diz respeito à valorização do trabalho prestado. A maioria dos trabalhadores da TAP ganha escandalosamente abaixo do nível remuneratório de Alexandra Reis. A partir desse desnível é fácil (não é só fácil, é necessário) que o cálculo de uma indemnização leve a montantes que se afiguram pornográficos para a maioria dos trabalhadores portugueses.

 

E entrámos na política. É aqui que devemos continuar.

 

Se Alexandra Reis chegou a acordo para sair da TAP, ela não ficou restringida em nenhum dos seus direitos enquanto sujeito político e designadamente o de ser contratada para desempenhar funções na NAV ou o de ser nomeada como secretária de Estado do Tesouro.

 

Mas uma análise política exige que vamos mais longe.

 

Alexandra Reis na TAP tinha estado envolvida nos cortes salariais aos trabalhadores da companhia, cortes esses que persistem em vigor. A primeira pergunta a fazer é se esses cortes foram extensíveis a cargos como aquele que a nova secretária de Estado ocupava. É que impor cortes aos outros e não ser atingida pela mesma medida é um problema político. Sobretudo notar que as novas competências de Alexandra Reis vão sempre tocar em finas matérias e que eventualmente estarão aí incluídas as empresas públicas e as empresas participadas que integram o sector empresarial do Estado, ou seja, poderia ser a responsável pelo dossier dos empréstimos à TAP e pelo da anunciada privatização da empresa. Ainda este ano, Alexandra Reis negociava uma indemnização na qualidade de contraparte.

 

Não é Alexandra Reis a primeira da fila para responder perante os portugueses. Temos o próprio Governo. Vejamos: se a TAP pagou a Alexandra Reis pela sua saída, mas o Governo insiste em escolhê-la para cargos e funções de responsabilidade, parece ficar demonstrado que foi escasso o poder decisório do Estado neste processo. A hipótese contrária, que também deve ser equacionada, é ainda pior. E há uma última pergunta que deve ser feita, mesmo considerando que foi escasso o poder decisório do Estado: os ministros da tutela tinham conhecimento da indemnização? Esta é a outra ponta do fio de que é feito este novelo.

 

Andamos a movimentar nenúfares, quando falamos do caso de Alexandra Reis. O sentimento de injustiça que ele suscita não tem acolhimento na lei, mas paira sobre demasiados princípios. Ora, é missão da política trazer ao ordenamento e ao campo das obrigações aquilo que traduz a justa percepção das situações por parte dos cidadãos. Tem de se tornar clara a linha que separa um comportamento incorreto de um comportamento racional que procura optimizar as oportunidades que surgem.

 

Este lusco-fusco encandeia.

 

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

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