Que fazer com o que resta do património arquitectónico do séc. XIX em Lisboa?
Por António Sérgio Rosa de Carvalho
Ressano Garcia concebeu o traçado das principais linhas urbanísticas do século XIX em Lisboa. Ressano Garcia delineou, mas não concebeu em unidade de estilo ou através duma visão cultural unificada o conceito arquitectónico que iria preencher este traçado, criando os boulevards do século XIX lisboeta.
Enquanto numa grande parte da Europa o século XIX romântico, revivalista e historicista concebia um estilo arquitectónico em síntese, que resultava de uma ideia exultada de um certo "período de ouro" do seu passado, o preenchimento do plano urbanístico de Ressano Garcia, das nossas avenidas, era deixado a uma visão especulativa da geração de Rosa Araújo.
Como consequência desta ausência de visão cultural unificada, enquanto Haussmann em Paris formulava esse estilo, indissociável e caracterizador desta nova monumentalidade de Paris, ou Viena desenvolvia a imagem unificada e monumental do Ring, Lisboa vegetava mediocramente entre prédios de rendimento de qualidade diversa e híbrida e palacinhos e palacetes de uma nova alta burguesia abastada ou de novos "condes-barões" nascidos da nossa pseudo-revolução fabril e industrial.
A Lisboa nascida deste processo apresentava um contraste entre uma incontestável qualidade de concepção de traçado urbanístico e uma ecléctica, variável e dispersa qualidade de concepção e execução arquitectónica.
A qualidade existente nalguns conjuntos ou objectos dispersos nesta malha foi determinada pela geração de arquitectos vindos de Paris e formados pela École des Beaux Arts. Aqui falamos de nomes como Ventura Terra, Norte Júnior, José Luís Monteiro.
No entanto, é o que temos, ou, melhor dizendo, em função do processo de demolição e substituição que se tem desenrolado, é o que tínhamos.
O que tem conseguido resistir a este processo de destruição nesta malha urbanística, que pelas características não unificadas em carácter, escala e estilo já referidas era facilmente "penetrável", foram conjuntos que constituem verdadeiros blocos ou "ilhas" de resistência.
Por exemplo o bloco da Versalhes na Av. da República, que se estende desde a esquina do Colégio Moderno, incluindo o prédio da Versalhes, até à próxima esquina com notável edifício com características arte nova, é sintomático para esta "resistência" numa avenida irreconhecível em todos os aspectos, quando consultamos uma gravura da época original.
Ora, precisamente um outro exemplo deste fenómeno de resistência constituiu até agora o conjunto abrangendo na Alexandre Herculano o notável edifício da garagem, o prédio de Ventura Terra, a sinagoga, e o conjunto da entrada da Rua do Salitre, juntamente com a forma de como o complexo do Palácio Palmela, incluindo a fonte, se insere e determina a escala urbana em função da escala e volumetria da "parede" de edificações do Largo do Rato.
Todo este conjunto urbano constitui uma unidade cultural e patrimonial que se poderá absolutamente classificar nesta categoria de "ilha de resistência".
Em relação ao projecto dos arquitectos Aires Mateus e F. Valsassina, com os seus sete pisos, 10.000 m2 e uma linguagem arquitectónica, independentemente da questão da sua qualidade, compacta e impenetrável, a pergunta a pôr é: é este o local para inserir um edifício com estas características e volumetria?
A pergunta a pôr à CML é: perante este caso e o já aprovado e incompreensível "plano de alinhamento de cérceas", o que pretende fazer a CML com o que resta do património arquitectónico do século XIX (e início do séc. XX) incluindo os respectivos interiores, em Lisboa?
Historiador de Arquitectura
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